sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Não ando na rua só com a trela nem alugo cão e censuro quem o faça

 

Ao abrigo do estado de emergência por declaração modificada e renovada por decreto presidencial, o Governo decretou confinamento geral muito semelhante ao da primavera de 2020, prometendo tomar as medidas que avaliação do comportamento da pandemia urgir.

Porém, como deixou de fora as escolas e instituições do ensino superior e alguns serviços que pareciam não prejudicar por si o dever geral de confinamento e abateriam a curva do prejuízo económico, os cidadãos, que os decisores políticos dizem (e têm de dizer) que são compreensivos, cooperantes e resilientes, desta feita puseram-se a explorar as exceções. E, mais do que isso, alguns quiseram brincar com a lei. Assim, foram detetados casos de pessoas que andavam na rua a puxar a trela e, questionadas a preceito, diziam que o cão tinha fugido, como se o animal de estimação pudesse escapar-se ao controlo do dono e, sobretudo, sem este dar conta. Mas poderia o passeante não ser o dono, porquanto algures foram detetados passeantes com cães alugados. E, ainda, outros andavam na deambulação com animais exaustos e a manifestar impulso de correr para casa, como alguns andaram acompanhados de animais que nada têm a ver com o passeio higiénico da pessoa ou do animal.

Isto não é só infração à lei, mas é, acima de tudo, gozo com quem tem o ónus da governação e com quem assume o cumprimento cívico do dever, obviamente suportando o incómodo da restrição da liberdade de circulação pelo bem da saúde própria e da saúde pública.

Todavia, não foi só o povo que falhou. Além de festas, jantares e outros ajuntamentos sem observância das normas ditadas pela DGS (Direcção-Geral da Saúde), houve negligências que induziram muitos a pensar no confinamento faz-de-conta. Como é que foi preciso vir à televisão o Primeiro-Ministro dizer que a PSP e a GNR iriam estar mais visivelmente nas ruas e estradas e junto às escolas? É óbvio que a fiscalização é sempre imperfeita e aleatória. Porém, nas operações de Natal, de Ano Novo e da Páscoa, veem-se agentes das forças de segurança nas ruas e estradas. Agora, em tempo de confinamento, tais agentes eram praticamente invisíveis. Por outro lado, as escolas fizeram o que puderam para garantir as condições ditadas pela DGS, pela DGE e pela DGEstE, mas os alunos e pais amontoavam-se junto ao portão.

Será mais importante para o país assistir à discussão se é a GNR ou a PSP quem deve escoltar as viaturas de transporte de vacinas, a PSP opinar publicamente sobre a modificação, extinção ou fusão do SEF ou a GNR reclamar que os comandos superiores sejam confiados a generais da GNR em vez dos generais do exército?

Como é que teve de vir o chefe do Governo pedir aos autarcas que procedessem ao encerramento de parques infantis, espaços de diversão coletiva, bancos de jardins, barramento do acesso às zonas costeiras e ribeirinhas? Não era suposto isso fazer parte do confinamento? Algo parecido sucedeu com o voto antecipado na mobilidade. O competente departamento do Governo fez o trabalho central, mas cabia às autarquias respetivas a acomodação dos votantes aos espaços a disponibilizar. E o que se viu foram as filas enormes de eleitores pela rua fora. É caso para questionar para que se antecipou o voto.

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O confinamento da primavera justificou-se pelo facto de muito pouco se saber sobre o novo coronavírus, o sistema de saúde, em que se desinvestiu ao longo do tempo, não conseguir arcar com o acolhimento necessário, não haver equipamentos de proteção individual e coletiva e de os serviços públicos e os que atendem público não estarem munidos de barreiras de proteção. 

À partida, não deveria ser necessário um novo confinamento. Contudo, o verão ditou alguns abusos e, apesar das restrições, multiplicaram-se os ajuntamentos e as festas familiares e de grupo; os transportes públicos deixaram de cumprir as normas de segurança sanitária; as estruturas de apoio em retaguarda foram desmanteladas; aflorou com notória evidência o problema dos lares de idosos; surgiu a variante britânica (supostamente mais letal de mais fácil transmissão, embora com efeitos diferidos no tempo); acreditou-se na solução vacinal, sem se pensar que o processo de vacinação massivo é moroso; e, sobretudo, não se pensou que o inverno, este ano mais rigoroso, propício a constipações, resfriados, gripes, pneumonias e infeções várias, iria entupir os estabelecimentos hospitalares. Por outro lado, em tempo de guerra contra um vírus demolidor, não se fez a requisição civil do setor privado e do setor social, perdendo-se tempo em negociações para acordo, e não se dotaram os centros de saúde (CS) e unidades de saúde familiar (USF) de equipamentos e pessoal para prestar os cuidados de saúde primários de modo a deixar para o hospital os casos graves. Nem sequer se criaram aí condições de atendimento dos utentes entre portas. Os telefones e correio eletrónico tiveram muita dificuldade em funcionar quando o utente tomava a iniciativa. Muito do pessoal dos CS e das USF teve que ser mobilizado para integrar a autoridade de saúde. Multiplicaram-se as consultas por telefone. E o remédio era a emissão de SMS a ficar em casa e a autoproteger-se.

Foi decretado o confinamento em duas tranches, porque a primeira mobilizou apenas 30% dos cidadãos. É difícil tomar medidas a tempo e horas, pois tanto os políticos como os cientistas dificilmente convergem, ninguém dando a mão à palmatória. E obviamente, há medidas tardias, medidas excessivas e medidas caricatas. O encerramento de escolas do 3.º ciclo e do ensino secundário foi tardio, de certeza; a proibição de compra de livros em supermercado e de venda ao postigo em livraria são excessivas, bem como o encerramento de estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1.º Ciclo; e barrar os bancos de jardim não deixa de ser caricato. É preciso referir que o livro e o jornal são elementos que podem ajudar ao bom desempenho em recolhimento domiciliário, pois as pessoas não podem sentir-se mentalmente encaixotadas. 

Concorda-se com a exceção de as pessoas não infetadas ou não sujeitas a isolamento profilático poderem dar a volta higiénica com o animal de estimação ou sem ele nas imediações da sua residência e percebem-se as outras exceções. Porém, sabe-se que, para o cumprimento do dever de não andar abusivamente na rua, é preciso o patrulhamento. Acredito que a PSP e a GNR não tenham efetivos suficientes. Mas interrogo-me como se decreta um recolher obrigatório sem se prover à mobilização das forças armadas para colaborarem na sua fiscalização, obviamente sob as ordens do Ministério da Administração Interna, porque se trata de estado emergência, e não de sítio, mas enquadradas por comandos e equipamentos militares. E pergunto-me como é que não se adiaram as eleições presidenciais invocando o estado de necessidade, uma vez que a Constituição o pressupõe quando, apesar de ter uma norma disciplinadora sobre a marcação de tais eleições, prevê o reinício de todo o processo eleitoral no caso de morte ou verificação da incapacidade de um dos candidatos.                       

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Outro aspeto que o confinamento deixou de fora – e bem, pois deve incumbir à Igrejas e outras Confissões Religiosas fazer as respetivas determinações, observadas as normas da DGS – foi a manutenção ou não do serviço religioso com participação das comunidades. E, num primeiro momento, a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) manteve a presença de fiéis nas celebrações litúrgicas, sob as orientações emitidas pela DGS: higienização das mãos à entrada, uso obrigatório da máscara, distância entre participantes. Só os batismos, os crismas, os casamentos, as festividades é que foram adiados.

Já era usual com a pandemia verificar-se uma diminuição, nalguns casos acentuada, de pessoas, ficando em casa as que correm maior risco de sofrer com a covid-19, com muita idade ou diagnóstico de doença oncológica, cardíaca ou respiratória, bem como as que, a partir do confinamento da primavera se habituaram a participar nas celebrações pelos meios de comunicação, como se isso tivesse a mesma validade, não advertindo que se tratava de situação excecional e de recurso.

Os fiéis foram-se distribuindo ao longo da tarde de sábado e do dia de domingo, conforme a sua conveniência. Porém, nos últimos meses, com os fins de semana de recolher obrigatório a partir das 13h, suprimiram-se as missas vespertinas, o que originou constrições. Nunca devia ter sido decretado o recolher obrigatório a partir das 13h, que fez com que as pessoas se acumulassem indevidamente da parte da manhã nos diversos locais de abastecimento.

A preocupação das equipas de acolhimento é acomodar as famílias. Uma pessoa sozinha ou um casal senta-se num lugar marcado e garante-se que ninguém se senta imediatamente atrás, à frente ou ao lado. Sendo uma família, podem ter de ficar vazios o banco da frente e o de trás, sendo preferível encaminhá-la para as capelas laterais ou para o coro. E se os membros da família se revezarem, tanto melhor. Mas assistir através de computador ou de televisor não é a mesma coisa: é bom quando não podemos ir ao local de reunião da comunidade, mas falta a sagrada comunhão, tendo como alternativa a comunhão espiritual.

Fazer comparações com os teatros, forçados a fechar, faz sentido do ângulo humano, pois há semelhanças na configuração do espaço e na sua dimensão humanizadora, mas não há comparação possível ao novel da fé

Parecerá contrassenso a CEP ter suspendido a celebração pública de missas na primeira vaga e mantê-las agora, que o número de infetados com covid-19 é muitíssimo mais elevado. No entanto, a situação é diferente: a situação atual em março seria caótica, pois as pessoas não estavam habituadas a desinfetar as mãos, a usar máscara, a manter distância, ao passo que agora está feita a aprendizagem. Os fiéis aproximam-se de máscara, em passo lento ou a passo largo, conforme a hora. Desinfetam as mãos à porta nos dispensadores de gel alcoólico, sentam-se nos lugares indicados e dispõem-se a participar na celebração de forma mais ativa ou mais passiva.

Em muitos lugares, há sinalização nos bancos e no chão; noutros, as pessoas simplesmente sabem que têm de cumprir o distanciamento regulamentar e só tiram a máscara para comungar. O condutor da assembleia faz as convenientes advertências.

Todavia, algumas paróquias, sobretudo as que têm mais casos ativos, decidiram suspender as missas durante a semana e outras suspenderam também as missas dominicais. E o Santuário de Fátima suprimiu algumas missas, anunciando que privilegiará os canais online.  

A pandemia mudou muitas coisas. Instalou-se o receio e a preocupação; e as paróquias foram chamadas a intervir mais na comunidade, mormente junto da população mais idosa – prevalecente em muitos lugares – cujo isolamento lhe aumentou a solidão. Na verdade, o vírus roubou fiéis, pelo menos presenciais, pois, com a proibição das celebrações no primeiro confinamento, muitos deixaram de frequentar por desinteresse ou por simples perda de hábito.

E corre-se o risco de se perder a igreja como espaço para todos e ser a catequese lugar onde os jovens buscam o convívio e encontram amizades, pois a pandemia está a privá-los de muitas coisas, tendo de se adaptar a forma de dar catequese. Na verdade, a igreja não deixa de ser espaço de encontro para jovens e para mais velhos, pois, mesmo que mantendo a distância obrigatória, muitos continuam a procurar o conforto emocional que ela proporciona.

Em todo o caso, com o agravamento da situação pandémica a ditar uma subida acentuada como nunca de números de infetados, internados, sujeitos a cuidados intensivos e, sobretudo, mortos de covid-19, a que se juntam os números de mortos por outras morbosidades, o Governo apurou o confinamento.

Por seu turno, a CEP, considerando que “é um imperativo moral para todos os cidadãos, e particularmente para os cristãos, ter o máximo de precauções sanitárias para evitar contágios, contribuindo para ultrapassar esta situação”, determinou “a suspensão da celebração ‘pública’ da Eucaristia a partir de 23 de janeiro de 2021, bem como a suspensão de catequeses e outras atividades pastorais que impliquem contacto”, sendo que “as Dioceses das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira darão orientações próprias”. Recomendou, em alternativa, o recurso às “possíveis ofertas celebrativas, transmitidas em direto por via digital”; determinou que as exéquias cristãs sejam celebradas de acordo com as orientações da CEP de 8 de maio de 2020 e das autoridades competentes; instou a que, “a nível individual, nas famílias e nas comunidades, se mantenha uma atitude de constante oração a Deus pelas vítimas mortais da pandemia, pedindo ao Senhor da Vida que as acolha nos seus braços misericordiosos, e manifestou o “apoio fraterno aos seus familiares em luto”; e exprimiu “especial consideração, estima e gratidão a quantos (…) continuam a lutar com extrema dedicação para salvar as vidas em risco”, pedindo a Deus que “abençoe este inestimável testemunho de humanidade e generosidade e que eles possam contar com a solidariedade coerente e responsável de todos os cidadãos”, para que possamos, com a colaboração de todos, “superar esta gravíssima crise e construir um mundo mais solidário, fraterno e responsável”.   

Na verdade, os números são assustadores a denunciar catástrofe geral, que ocorrerá se tentarmos salvar a economia à custa da saúde ou se deixarmos que o sistema de saúde colapse. Por outro lado, é dever da Igreja solidarizar-se com o todo da nação que sofre as vicissitudes da pandemia, sobretudo evitando a criação por si de focos de contágio, de modo que, sobretudo os mais vulneráveis – e são muitos os que deste grupo frequentam as celebrações – sejam ironicamente punidos pela Igreja por frequentarem o culto e as atividades formativas. Ademais, há em muitos lugares templos em que dificilmente se podem observar as normas da DGS, sendo desejável, por outro lado, nestas circunstâncias, criar um mínimo de uniformidade para não desorientar os fiéis, que tantas vezes aduzem que, em Igreja, há umas leis para uns e outras para outros.

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Enfim, como diz o Bispo de Setúbal e presidente da CEP, “quando dizemos que prezamos a vida como valor essencial, sobre o qual se apoiam todos os outros valores – porque é o dom fundamental que recebemos de Deus, é o dom da vida –, evidentemente se isto é importante como cidadãos, dum ponto de vista dum cidadão que tem fé, ainda ganha nova importância”.

Seja!

2021.01.22 – Louro de Carvalho

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