domingo, 31 de janeiro de 2021

Maravilhados por Ele ensinar com autoridade e não como os escribas

 

O trecho do Evangelho selecionado para o 4.º domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 1, 21-28) relata-nos o episódio em que Jesus, a um sábado, movido pelo sentido de pertença ao povo de Israel, entra na sinagoga de Cafarnaum para a liturgia sinagogal e, impelido pela paixão messiânica de pregar o dinamismo do Reino, começa a ensinar e todos se maravilham com a sua doutrina, uma doutrina nova, e porque os ensinava com autoridade e não como os escribas.

Estamos na primeira parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30) cujo objetivo é levar-nos à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. E Marcos fá-lo através dum percurso catequético em que nos convida a acompanhar a revelação de Jesus, escutando as suas palavras e o seu anúncio, fazendo-nos discípulos da sua proposta de salvação/libertação – um percurso de descoberta a culminar em Mc 8,29-30 com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe “Tu és o Messias(“sy eî ho Khristós”), que é a confissão que se espera de cada crente, depois de ter pari passu acompanhado o percurso de Jesus.

O trecho desta dominga aparece quase no início desta caminhada de encontro com o Messias e o seu anúncio de salvação. Rodeado pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar a salvação. É Cafarnaum (em hebraico, “Kfar Nahum”, ou seja, a “aldeia de Naum”), cidade na costa noroeste do Lago Kineret (Mar da Galileia), onde Jesus se vai instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia, pois ali viviam vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João.

A comunidade está reunida na sinagoga de Cafarnaum em dia de sábado. Jesus, recém-chegado, entra como bom judeu para participar na liturgia sabática. A celebração comunitária começava com a “profissão de fé” (cf Dt 6,4-9), a que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da Torah e outra dos Profetas), o comentário às leituras e as bênçãos. É provável que Jesus tivesse sido convidado para fazer a leitura dos Profetas e tecer o comentário às leituras feitas. Fê-lo de forma original, diferente dos comentários que as pessoas estavam habituadas a ouvir aos estudiosos das Escrituras. E as pessoas ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque os ensinava como tendo autoridade (“hôs exousían ékhôn”) e não como os escribas” (Mc 1,22).

A referência à autoridade (em grego, “exousía”; em latim, “potestas” ou “auctoritas”) das suas palavras sugere que Jesus vem de Deus e a sua doutrina tem a marca de Deus. “Auctoritas” é nome cognato do verbo “augeo”, que significa aumentar, fazer crescer, valorizar, garantir; e “potestas” é nome cognato do verbo “posssum”, que significa poder, tornar possível, influenciar mudar, mas sem ter de utilizar o “imperium”, o poder absoluto e ilimitado, o poderio militar que tudo varre. A “autoridade” que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se em ações concretas, que secundam a autoridade das palavras servindo-lhes de aval, caução ou garantia.

Dom António Couto, Bispo de Lamego, parte da declaração apocalíptica de Deus “Eis que faço novas todas as coisas(Ap 21,5) para comentar este passo do Evangelho. E frisa que são de tal modo novas as coisas que Deus faz que “ninguém pode dizer: ‘Já o sabia’.” (Is 48,7). Assim, na sinagoga deles (dos habitantes de Cafarnaum e de alguns dos discípulos), Jesus “ensinava e ordenava tudo de forma nova”, a ponto de inutilizar “todas as comparações e catalogações”.

Com efeito, como verifica o prelado especialista em Sagrada Escritura, Jesus “não era membro de nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional ou instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma autoridade” e “nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o precedia”. Na verdade, o seu poder e autoridade estavam no ato de dizer e/ou fazer. E os cafaurnitas, tomados de espanto, verificaram ali que saía dos seus lábios e das suas mãos um mundo novo, ordenado segundo a bitola da Criação.

Diz o venerando prelado que “um vendaval manso de graça e de bondade encheu Cafarnaum e transvazava como perfume novo de amor e louvor por toda a região da Galileia e da missão” (Mc 1,28), tornando-se evidente que a cidade “não podia conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo”: “a fama de Jesus divulgou-se por toda a parte em toda a região da Galileia”.

As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que e como diziam os escribas. Repetiam até à exaustão as velhas doutrinas como se fossem peças museológicas e valorizavam os inúmeros preceitos que os doutores vinham impondo ao povo, sem que eles lhes tocassem com um dedo sequer. Recitando no vazio, compraziam-se nas suas próprias palavras e nada acontecia. Porém, tendo Jesus começado a falar, as pessoas sentiram “um estremecimento novo” (cf Is 66,2.5). Foi como se acabassem de escutar a palavra há tanto tempo esperada e desejada.

Estranhamente, como anota Dom António Couto, nada nos diz aqui o narrador acerca do conteúdo do ensinamento de Jesus em Cafarnaum, o que sugere que, mais do que as suas palavras, o que interessa verdadeiramente é a pessoa de Jesus.   

Na sequência das palavras de Jesus e que transmitem aos ouvintes um sinal incontornável da presença de Deus, surge “um homem com um espírito impuro”. Os judeus estavam convencidos que todas as doenças eram provocadas por espíritos maus que se apropriavam dos homens e os tornavam prisioneiros. As pessoas afetadas por tais males deixavam de cumprir a Lei e, ficando em situação de impureza, estavam afastadas de Deus e da comunidade. Na ótica judaica, os espíritos maus que afastavam os homens da órbita de Deus tinham um poder absoluto que os homens não podiam ultrapassar. Cria-se que só Deus, com o seu poder e autoridade, era capaz de vencer os espíritos maus e devolver aos homens a vida, a dignidade e a liberdade perdidas.

Por conseguinte, as pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que eram e como se faziam os exorcismos, muito em voga ao tempo: longos, esquisitos, complexos, cheios de ritos e fórmulas mágicas. Jesus, porém, profere uma palavra criadora: “Cala-te e sai desse homem(“phimôthêti kaì éxelthe ex autoû”), e tudo ficou resolvido (cf Mc 1,25-26).

Na verdade, Marcos, com singular poder evocador, põe em cena o espírito mau, que domina um homem ali presente, a interpelar Jesus. Sugere que, ante da libertação que Jesus veio trazer, os espíritos maus, responsáveis pelas cadeias e grilhões que oprimem os homens, ficam inquietos por sentirem que o seu poder sobre a humanidade chegou ao fim.

E a ação desta cura constitui a prova inequívoca de que Jesus traz a libertação que vem de Deus, ou seja, pela ação de Jesus, Deus vem ao encontro do homem para o salvar de tudo o que o impede de ter vida em plenitude.

Para Marcos, este episódio é uma apresentação do programa de ação de Jesus: vem ao encontro dos homens para os libertar de tudo o que os aprisiona e lhes rouba a vida; já está em marcha a libertação que Deus oferece à humanidade; o Reino de Deus instalou-se no mundo: Jesus, cumprindo o desígnio de Deus, pela palavra e pela ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.

E, face àquele prodígio nunca visto da cura dum homem possesso, as pessoas perguntam “ O que é isto?(“tì estin toûto;” – Mc 1,27). Nova doutrina, nova autoridade!

Trata-se apenas do início da jornada do anúncio do Evangelho de Deus (Mc 1,14). Logo a abrir o Evangelho, Marcos ensina que a jornada iniciada naquele sábado em Cafarnaum extravasa os cânones habituais: indo de madrugada a madrugada, faz aflorar a subjacência da madrugada da Ressurreição. Com efeito Jesus começa de manhã na sinagoga; caminha 30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da febre a sogra de Pedro; à tardinha, posto o sol, no primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes; de madrugada, Jesus sai sozinho para rezar; e os discípulos correm a procurá-Lo para O trazerem de volta a Cafarnaum, pois todas as pessoas O querem ver e ter – ninguém O quer perder.

Porém, o anúncio do Evangelho tem de prosseguir noutros lugares. Com o “vamos a outros lugares” (Mc 1,38), Jesus desinstala e agrega si os discípulos para o trabalho de anúncio da Boa Nova por toda a parte e a todos, com estas marcas: ensinar, libertar, acolher, curar, recriar.

E a caraterística do arauto do Evangelho não assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe confia a mensagem que deve anunciar, pois é em Seu nome que diz o que diz e que diz como diz; e no enviado se há de ver o rosto do enviante, pois no enviado é Deus que visita o seu povo. E, cheio de Deus, Jesus leva Deus aos seus irmãos. É esta a sua autoridade.

A passagem do Livro do Deuteronómio assumida como 1.ª leitura desta dominga (Dt 18,15-20) anuncia um profeta novo, como Moisés, o que nos abre, desde logo, o caminho para Jesus, a Quem Deus confiará as palavras que há de dizer ao Povo.

Para os teólogos deuteronomistas, Moisés é o modelo do verdadeiro profeta. Isto significa que Deus está na origem e no centro da vocação de Moisés. Não foi este que, por sua iniciativa, se candidatou à missão profética, nem conquistou, pela sua ação ou qualidades, o direito à profecia. A iniciativa foi de Deus que gratuitamente o escolheu, chamou e enviou em missão. A consagração do profeta resulta da ação gratuita de Deus que, segundo critérios muitas vezes ilógicos na ótica humana, escolhe aquela pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para a enviar aos seus irmãos.

Depois, a mensagem transmitida não era a mensagem de Moisés, mas de Deus. O verdadeiro profeta não é o que transmite uma mensagem pessoal ou diz o que os homens querem ouvir, mas é o que, frontal e corajosamente, testemunha fielmente o desígnio de Deus para os homens e para o mundo, pelo que é preciso discernir entre falsa e verdadeira profecia. Porém, as palavras do profeta devem ser escutadas e acolhidas cuidadosamente, pois são palavras de Deus. E Deus pedirá contas a quem fechar ouvidos e coração aos desafios que Deus, pelo profeta, apresenta ao mundo. Ora, Jesus nunca ousará dizer o que Deus não Lhe mandou, muito menos falará em nome de outros deuses. Mas ser-nos-ão pedidas contas se não O escutarmos.  

Então Jesus é o profeta como Moisés e o profeta mais do que Moisés, pois a sua boca vem repleta das palavras de Deus (cf Dt 18,18), que perpassam as mãos e o coração, muito diferente dos escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde, que, no deserto, dispensam a Palavra de Deus, ávidos de pão e carne. O que recolheu menos, no deserto, diz-nos o relato do Livro dos Números 11,31-35, recolheu 4500 kg de codorniz (cf Nm 11,32). E, tendo começado a meter a carne à boca, fizeram-no com tanta avidez que morreram de náusea e foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes, por mastigar (cf Nm 11,33). Por isso, como acentua António Couto, urge libertar mãos, boca e coração, pois “vive-se da Palavra” e “morre-se de náusea”.

Face à urgência de pormos a vida em conformidade com a profecia, a santidade e o amor de que Jesus é autor e arauto, há que reler Paulo na passagem (1Cor 7,32-35) que apela à Primeira e Última Grandeza perante a qual tudo fica relativizado – a única grande devoção, cheia de amor, a nortear a nossa vida, é a total dedicação a Cristo, sem oscilação nem distração.  

Subjacente às afirmações que Paulo faz no trecho proposto como 2.ª leitura, está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras e efémeras e nunca devem ser absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo ou uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura, mas de avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida do homem. É uma reflexão que nos leva a repensar as nossas prioridades e a não ancorar a nossa vida em realidades transitórias.

Por consequência, é bom que nos persuadamos de que não podemos adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos e indiferentes. O Salmo 95 (hoje, salmo responsorial à 1.ª leitura), que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (rezam-no sexta-feira ao pôr-do-sol), e é, para os cristãos, o invitatório recitado em quase todas as manhãs, deve ser o despertador que nos põe em alerta permanente para a adoração a Deus e para a escuta da sua Palavra. “Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações”, antes “Vinde, prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor que nos criou, pois Ele é o nosso Deus e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho”. Aqui subjaz todo o nosso destino último.

2021.01.31 – Louro de Carvalho

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