Recebi
do colega e amigo Vítor de Carvalho Ferreira um videograma que mostra a
barragem “Diga del Cingino”, em Itália. Na face do dique para jusante veem-se
umas intrigantes manchas pretas. O autor do vídeo interroga os seus
destinatários sobre o que representarão aquelas manchas pretas. Com a
apresentação daquela face do dique em planos cada vez maiores acabamos por
visualizar cabras de patas fixas na referida parede do dique, no lugar daquelas
negras manchas, como se estivessem atraídas por peças de um campo magnético.
“Elas gostam de comer o musgo e o sarro que há mas paredes da barragem” –
informa o autor do videograma.
E
no fim adverte: “Você pensava que já tinha visto de tudo, mas certamente isto
não”.
Face
a esta gostosa provocação, remexi a arca da memória e verifiquei dois factos:
por um lado, ainda que durante pouco tempo, guardei ovelhas e cabras, sendo
que, enquanto aquelas não arriscavam pastar em sítios menos acessíveis, estas
chegavam aos sítios mais inóspitos, de modo que as vi, com aflição minha,
pespegadas em muros ravinados e em lugares abobadados de dorso e lombo para
baixo, bastando que encontrassem musgo, pequenas ervas ou pontas de arbustos e
subarbustos; por outro lado, li e traduzi, no que agora é designado de 8.º ano
de escolaridade, a I e a IV das 10 Bucolica
(plural
neutro do adjetivo grego bukolicós, bukolikê, bucolicón, que significa pastoril e/ou campestre) de Vergílio, subentendendo-se o
nome grego neutro plural poiémata ou
o latino carmina. As bucólicas são
poemas pastoris e campestres. Ajudou-me na tradução o Dr. Mário de Araújo
Pereira Pinto, então professor de latim.
Devo
dizer que Pereira Pinto não terá sido o melhor professor que tive em termos
convencionais, mas foi aquele com quem aprendi mais latim: além de responder ou
de me fazer encontrar resposta a todas as questões que lhe colocava (ano
letivo de 1965/1966),
ensinou-me a perceber a evolução histórica do latim. E deu-me para as mãos os
seguintes livros:
Morphologie historique du latin, d'Alfred
Ernout;
Syntaxe latine d'après les principes de la grammaire historique, d’O.
Riemann; e Précis de phonétique historique du latin, de Max Niedermann.
A recordação desta bibliografia fez-me perceber, depois, quando estudei grego,
que acontecia coisa similar com esta língua – o que me levou a ler: Morphologie
historique du grec, de P. Chantraine; e Phonétique
historique du mycénien et du grec ancien, de Michel Lejeune.
***
Ora
a écloga I, com o subtítulo Tityrus (designações de
gramáticos posteriores)
glosa a vida de dois pastores (Melibeu e Títiro) em situação diferente no
ambiente campesino, que dialogam sobre a sua sorte. Após a batalha de Filipos,
os triúnviros dividiram os campos de Cremona e Mântua (cidades
partidárias de Cássio e Bruto)
pelos seus soldados. Porém, Vergílio, graças à influência de Mecenas, não foi
atingido por esta medida. Por isso, agradece este favor na pele poética de
Títiro, em contraste com Melibeu, a antonomásia dos mantuanos espoliados, cuja
infelicidade aqui se evidencia exponencialmente. E uma das coisas de que
Melibeu irá ter mais saudades é de ver a suas cabrinhas (capellae) suspensas de uma rocha cheia de
silvas, sarças e musgos:
“Ite,
meae, felix quondam pecus, ite, capellae, /Non ego uos posthac, uiridi
proiectus in antro, /Dumosa pendere procul de rupe uidebo: / Carmina nulla
canam; non, me pascente, capellae, /Florentem cytisum et salices carpetis
amaras.” (Ec I, vv 75-79).
Tradução
livre:
“Ide
lá, minhas cabrinhas, andai lá, meu rebanho outrora satisfeito. Já não vos
contemplarei, estendido numa gruta verdejante, dependuradas, lá ao longe, dum
íngreme rochedo enfeitado de silvas. Jamais cantarei as canções do costume. Ó
minhas cabrinhas, já não degustareis, na companhia do vosso pastorinho, o
codesso florido nem os amargos salgueiritos.
***
E, quanto ao
autor das dez Bucólicas, num tempo em que não havia barragens como a de “Diga del Cingino”?
Vergílio ou Virgílio
era homem alto e corpulento, de tez morena e, embora houvesse sido criado no
meio de árvores e bosques, tinha uma saúde delicada, provavelmente em
consequência da humidade climática da Lombardia. Sofrendo de constantes dores
de estômago, garganta e cabeça, muitas vezes expelia sangue com a tosse. Reservado
e introvertido, possuía um generoso e sensível coração e uma grande
afeição pelas pessoas, pelos animais e pela natureza. Esta personalidade
justifica as suas mais notáveis qualidades: o amor pelos pequenos prazeres e
pelos animais, a propensão para a solidão, a imaginação fértil e a sensação de
nostalgia. Foi aceite como profeta, visionário e mágico. O seu estilo e técnica
influenciaram insignes poetas, como Dante Alighieri, que tinha a obra de Vergílio como um verdadeiro
primor, graças à sua arte de escrever, ao seu uso de linguagem e à musicalidade
do verso.
Públio Vergílio
Marão (Publius Vergilius Maro), filho dum casal de camponeses de origem etrusca (Magia Pola e
Istimicon), nasceu a 15 de outubro de 70 a.C.,
em Andes, hoje Pietole, perto de Mântua, no norte da Itália. O pai era
agricultor, artesão, mágico, astrólogo e médico.
Segundo a
lenda, quando estava grávida, Magia sonhou que estava a dar à luz um ramo de
louros, que, ao cair no solo, criou raízes, floresceu e se transformou em
árvore frondosa, cravejada de flores e frutos. Após o despertar do sonho, Magia
e Istimicon foram falar com o poeta e filósofo Tito Lucrécio, irmão de Magia, a
indagar o significado do sonho. O filósofo predisse que a irmã daria à luz um
menino que se tornaria famoso como poeta ou como artista; que, quanto estivesse
crescido, o levassem aos mais famosos poetas para que aprendesse com eles; e que lhe dessem o nome de Vergílio.
Pouco tempo
depois, enquanto deambulava pelos campos ao lado do marido, de súbito
desviou-se da trilha, encostou-se num barranco e deu à luz o menino, que nem sequer
chegou a chorar, tão dócil era o seu temperamento. Segundo o costume epocal, logo
após o parto, a mulher plantou no local do parto um álamo. A muda planta posta
na terra pela mãe de Vergílio cresceu e desenvolveu-se tão rapidamente que em
pouco tempo atingiu o tamanho de outras, que tinham sido plantadas muito antes.
Puseram-lhe o nome de árvore de Vergílio
e passou a ser reverenciada por mulheres grávidas e mães de recém-nascidos, que
faziam junto dela orações em que imploravam um parto tranquilo e uma criança
saudável.
À criança os
pais deram o nome de Públio Vergílio Marão: Públio, porque puplius em latim significa
joelho grande, já que se tratava dum bebé corpulento; Vergílio, de virga (ou verga) a
significar raminho ou coroa de ramos de louros; e Marão, em razão do tom moreno de
sua pele (maro, em latim). A premonição da mãe concretizou-se; o filho deixou à humanidade um legado
de grande valor. Observador, sábio e erudito, Vergílio tornou-se um dos mais
célebres poetas latinos, cujas obras influenciaram grandes escritores e poetas
latinos, sendo considerado um dos modelos de perfeição literária.
Passou
a infância na propriedade do pai e teve uma educação esmerada. Até aos 15
anos de idade estudou na cidade de Cremona, na região de Lombardia. Foi então
que recebeu a toga viril, vestimenta usada pelos cidadãos da Roma Antiga,
segundo o costume, enrolada duas vezes ao redor do corpo e caindo em dobras. A
toga dos homens adultos era branca lisa (a dos meninos tinha uma orla de púrpura
e a dos imperadores e generais uma orla de púrpura bordada).
Depois, foi
para Milão, onde se dedicou afincadamente aos estudos de literatura grega e
romana, latim, matemática e medicina. Todos reconheciam os seus conhecimentos a
ponto de vir a ser chamado pelo cavalariço-mor do imperador Augusto para
examinar os cavalos doentes, tendo Vergílio tratado de vários deles com muita
habilidade e conseguido curá-los.
Mais tarde, foi para Roma, onde
cursou retórica e conheceu poetas e homens de Estado que desempenhariam um
importante papel na sua vida – entre eles, Caio Mecenas e Asínio Pólio. Quando
eclodiu a guerra civil em 49 a.C., espoletada por César, o poeta mudou-se para
Nápoles, onde estudou filosofia. O seu objetivo era a especialização em
direito, mas, depois de uma única e fraca atuação em tribunal, perdeu a
motivação e retornou à sua propriedade para se dedicar à escrita.
Como, em 41 a.C.,
as terras foram confiscadas pelos veteranos de António, que na época era o
senhor de Roma e rival de Augusto, Vergílio foi até à capital em protesto
contra a expropriação das terras. Porém, o seu protetor Asínio Pólio, escritor
e cônsul, determinou que a propriedade fosse restituída a Vergílio e ao irmão,
dado que tinham acabado de perder o pai. Pouco tempo depois, Vergílio viu as
terras expropriadas, mas, desta vez em troca da justa indemnização.
No ano 42 a.C.,
instigado por Pólio, Virgílio empreendeu a composição das Bucólicas,
10 poemas pastoris inspirados nos Idílios do poeta grego Teócrito.
Muito apreciada nos círculos literários, a obra, foi, mais tarde, adaptada
ao teatro. Bucólicas elogiam, em belíssimos versos, a vida
campestre e versam a nostalgia do homem da cidade ante a vida na natureza.
Após a sua
publicação, em 39 a.C., o poeta Horácio, amigo de Vergílio, apresentou-o
a Caio Mecenas, poeta e
cavaleiro da corte imperial. Cercado de letrados ilustres, como Horácio, Cornélio Galo, Propércio, Asínio
Pólio e Valério Messala Corvino, Mecenas convidou Vergílio para
ingressar no seu círculo literário. A partir de então, o mantuano tornou-se o
mais entusiasta colaborador da política restauradora e pacificadora do
imperador Augusto e passou a ser tido como um dos escritores mais estimados do
novo regime, de que se tornou poeta oficial.
Durante 7
anos, Vergílio dedicou-se à composição de Geórgicas,
um belo painel da vida rústica, poema didático sobre a vida e trabalho no
campo, composto por 4 livros: cultivo da
terra e época apropriada para as diversas atividades agrícolas; cultivo das árvores; criação de gado; e criação de abelhas. Nesta obra, de cunho patriótico e social, a
ciência agrária e a poesia fundem-se em unidade perfeita.
Os últimos
anos da sua vida foram dedicados a escrever, por incentivo do imperador, a Eneida, poema épico em 12 livros (ou cantos) que, para celebrar a história do império romano, narra
a queda de Tróia, as aventuras de Eneias, o estabelecimento dos troianos na
Itália e o seu contributo para a fundação de Roma. Os 6 primeiros livros, que
narram os episódios dos amores de Dido e a descida do herói Eneias aos
Infernos, inspiraram-se na Odisseia; os outros 6 livros aproximam-se
mais dos relatos guerreiros da Ilíada, ambos poemas épicos
atribuídos a Homero. Além da influência de Homero, percebe-se a dos poetas
alexandrinos na epopeia do poeta
mantuano, que, recebida pelos contemporâneos como a mais
importante epopeia nacional, teve grande repercussão na literatura
medieval e renascentista.
Nela, Vergílio aperfeiçoou com tanta
habilidade e subtileza a musicalidade e a precisão técnica
do hexâmetro datílico – um padrão rítmico introduzido no verso épico
pelo latino Quinto Énio – sendo esta obra considerada um modelo de perfeição
clássica no campo literário.
Admirador da
cultura helénica, Vergílio sempre anelara por conhecer a Grécia, pretendendo
escrever mais 3 livros da Eneida durante a visita ao berço
daquela cultura, onde teria o ensejo de conhecer in loco os cenários da obra. Contudo, antes do
embarque, consciente da sua precária saúde, deixou instruções aos
amigos Vario Rufo e Plotio Tuca para que queimassem o manuscrito da epopeia, caso alguma coisa lhe
acontecesse antes que a obra fosse concluída, por a considerar imperfeita. Como suspeitava, na viagem de regresso, o estado de saúde do épico agravou-se
e, mal chegou à Itália, faleceu na cidade de Brindisi, no ano 19 a.C. porém, o imperador Augusto, reconhecendo a importância da
obra, não permitiu que ela fosse destruída. Contrariando a instrução virgiliana,
ordenou que a Eneida fosse publicada, tendo-se tornado de imediato um
texto clássico. Não levou, pois, muito tempo para que a obra fosse
considerada a mais importante obra da língua latina e transformasse Vergílio
num dos mais célebres poetas de todos os tempos. Também se
atribui a Vergílio a autoria duma coleção de poemas épicos menores, algumas
elegias e um poema didático – com o título de Appendix Vergiliana –
que teriam sido escritos na sua juventude.
Na Idade
Média foram interpretados significados filosóficos no conteúdo da obra vergiliana,
que revela profundo conhecimento do passado histórico e literário greco-romano
por parte do autor – considerado o poeta do equilíbrio. Por um lado,
a descrição do mundo exterior é vívida, colorida e harmoniosa; por outro,
ninguém poderia expressar melhor o mundo interior humano, retrato da alma, a
delicadeza de sentimentos, a profundidade de emoções, mas sem melodrama.
Não admira
que tenha sido guindado ao estatuto de poeta nacional de Roma “o representante por excelência do génio
latino no pensamento e na arte”, o “pai do Ocidente”, e que a sua obra seja considerada, até hoje, um
monumento à literatura e um modelo de perfeição literária.
Cf Lopes,
Márcia. “Virgílio Vida e Obra”, in Grandes
Autores – Biografias. Editora Nova Cultural 2002;
Perret, Jacques. Virgile – Éneide.
Ivres I-IV. Paris: Les Belles Lettres 1981).
***
Para
quem não saibam aqui ficam os primeiros 4 versos da Eneida, a servir de prelúdio antes da proposição iniciada com o
verso “Arma uirumque cano, Troiae qui
primus ab oris”:
Ille
ego qui quondam gracili modulatus auena /Carmen et egressus siluis uicina coegi
/Ut quamuis auido parerent arua colono, /gratum opus agricolis, at nunca
horrentia Martis
Aqui
o poeta épico identifica-se com o anterior poeta lírico, que modulava o seu
canto sobre uma graciosa flauta de cana, que se sentiu coagido a sair do meio
dos seus bosques e árvores, muito embora os campos fizessem a vontade ao ávido
agricultor. A sua anterior obra poética era do agrado das gentes do campo, mas
agora voltou-se para a problemática de Marte e passa a cantar os feitos do
herói fundante da nacionalidade romana.
Com
efeito, o verdadeiro humanista não se cinge a um único saber, a uma única atividade!
2015.10.20 –
Louro de Carvalho
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