O título em
latim “Ite, Synodus est” (Ide, o Sínodo é a partir de agora) deduz-se das palavras finais da
alocução do Papa Francisco no encerramento dos trabalhos da assembleia sinodal,
a 24 de outubro. Com efeito, ao ler as palavras finais da sua mensagem – “para a Igreja, encerrar o Sínodo significa voltar realmente a caminhar
juntos para levar a toda a parte do mundo, a cada diocese, a cada
comunidade e a cada situação a luz do Evangelho, o abraço da Igreja e o apoio
da misericórdia Deus” – pronunciadas em tom exclamativo, com intenção
exortativa, lembrei-me da fórmula de encerramento da celebração eucarística “Ite, missa est”.
É certo que o
significado do termo “missa” naquela expressão é muito discutível. No entanto,
sabendo que a expressão era utilizada, nos primórdios em duas ocasiões
distintas: no fim da liturgia da palavra (ou missa dos catecúmenos), para despedir os que, não sendo ainda batizados ou sendo penitentes
públicos, não podiam participar na celebração da Eucaristia, mas tinham o dever
de participar nas orações, na escuta da Palavra de Deus e na sua celebração
festiva, no ensino dos servidores da Palavra e na profissão da fé (eram despedidos porque tinham de ir
aprendendo a confrontar a vida com a Palavra escutada e explicada – era de
algum modo a missão que lhes era possível desempenhar); e no fim da celebração
eucarística, como acontece hoje – depois de instruídos e confortados pela
Palavra, apresentavam as ofertas, celebravam o memorial do sacrifício redentor
e participavam do banquete no corpo e sangue de Cristo (era, de momento, a sua tarefa ou
missão específica).
Celebrados os divinos ministérios, era necessário que os que neles tinham
participado viessem para a família, para o trabalho ou para a evangelização e
catequese explícitas testemunhar a alegria de viver do Espírito e do
Ressuscitado. Os que celebraram ficavam mandatados para a missão.
Missa, palavra
da família de mittere (enviar, mandar),
de missus (enviado) e de missio (missão, envio) equivaleria então à palavra missio. Com efeito, a substituição da
forma abstrata missio pela
forma concreta missa é processo linguístico comum no latim. Assim, também oblatio, collectio e
ultio foram
substituídos respetivamente por oblata,
collecta e ulta (antes, formas neutras dum
particípio do verbo respetivo). Também os nomes promessa e remessa vieram de promissa e remissa,
que estão em vez de promissio
e remissio, da mesma raiz que missa.
Ademais, a palavra missa saiu da expressão Ite, missa est, que indicava
apenas o termo de uma parte do ofício e a vida que se lhe seguia, mas não termo
do ofício todo.
Acresce referir que a expressão Ite,
missa est já existia no
latim antes de passar para o uso eclesiástico. Era a fórmula usada para terminar as
audiências do paço e dos tribunais de justiça. Diz Avito de Viena que nas
igrejas e nas cortes do imperador e do prefeito se dizia missa est ao despedir o povo da audiência. Ainda hoje, depois duma acareação importante, a
pessoa mais relevante no colóquio diz coisa parecida como o seguinte. “Obrigado, vá lá a sua vida”.
O “Ite,
Synodus est” recorda-me a palavra do padre Cândido de Azevedo à porta da
sua igreja matriz à multidão ali reunida, no encerramento do Congresso
Eucarístico Concelhio de Sernancelhe, em 13-11-1988: “De que estais à espera.
Ide, o Congresso é a partir de agora nas vossas terras” – na vossa vida, famílias,
comunidades, trabalhos, sofrimentos e alegrias.
Tenha-se em conta que o termo congresso é o equivalente latino do
grego sýnodos. Congressus, de congredior
(caminhar em conjunto,
reunir, lutar em conjunto…).
***
Ora, no ainda
breve pontificado de Francisco, a assembleia sinodal reuniu duas vezes e sob
temática semelhante ou interconexa. E o Papa, na sua mensagem, agradeceu “ao
Senhor por ter guiado o nosso caminho sinodal nestes anos através do Espírito
Santo, que nunca deixa faltar à Igreja o seu apoio”. Note-se, que este Bispo de
Roma não poupa os agradecimentos a todos os que trabalham pelo bem da Igreja e
da Sociedade, o que também faz em relação ao Sínodo, terminando mesmo a
alocução com o seu “Obrigado”.
Porém, o Papa
revelou que, no acompanhamento dos trabalhos sinodais, se interrogava sobre o
significado, para a Igreja, do
encerramento deste Sínodo dedicado à família. E agora explicita largamente
a resposta, dizendo claramente que não significa: o esgotamento dos temas
inerentes à família, mas a procura da sua iluminação pelo Evangelho, pela
tradição e pela história bimilenária da Igreja, infundindo-lhes a alegria da esperança,
sem cair na fácil repetição do que é indiscutível ou já se disse; ou o encontro
de “soluções exaustivas para as dificuldades e dúvidas que atingem a família,
mas a colocação das “dificuldades e dúvidas sob a luz da Fé”, com exame
cuidadoso e abordagem sem medo e autoilusão.
Por outro
lado, sublinha: que todos foram convidados a compreender a importância da
família e do matrimónio entre homem e mulher, fundado na unidade e
indissolubilidade e a apreciá-la como base fundamental da sociedade e da vida
humana; que foram escutadas as famílias e os pastores da Igreja que vieram a
Roma carregando sobre os ombros os fardos e as esperanças, as riquezas e os
desafios das famílias do mundo inteiro; que foram dadas provas da vitalidade da
Igreja, que não teme abalar as consciências anestesiadas ou sujar as mãos
discutindo, animada e francamente, sobre a família; que foram olhadas e lidas
as realidades de hoje com os olhos de Deus, para acender e iluminar, pela fé,
os corações dos homens, neste período histórico de desânimo e crise social,
económica, moral e de prevalecente negatividade; e que se testemunhou que o
Evangelho é sempre para a Igreja a fonte viva de novidade eterna contra quem
pretenda “endoutriná-lo” como um acervo de pedras mortas para as jogar contra
os outros.
Porém,
Francisco, censurando o farisaísmo de alguns setores declara que o Sínodo:
“Significa também que espoliámos os corações fechados
que, frequentemente, se escondem mesmo por detrás dos ensinamentos da Igreja ou
das boas intenções para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com
superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas”.
A que ousa
contrapor o seguinte significado:
“Afirmámos que a Igreja é Igreja dos pobres em espírito
e dos pecadores à procura do perdão e não apenas dos justos e dos santos, ou
melhor dos justos e dos santos quando se sentem pobres e pecadores”. E “procurámos
abrir os horizontes para superar toda a hermenêutica conspiradora ou perspetiva
fechada, para defender e difundir a liberdade dos filhos de Deus, para
transmitir a beleza da Novidade cristã, por vezes, coberta pela ferrugem duma
linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível”.
***
Sobre a experiência
da caminhada sinodal, o Pontífice destaca a livre expressão das “diferentes
opiniões”, nem sempre de forma inteiramente benévola, mas a enriquecer e animar
o diálogo, “proporcionando a imagem viva duma Igreja que não usa impressos
prontos, mas que, da fonte inexaurível da sua fé, tira água viva para
saciar os corações ressequidos”.
De igual
modo, o Papa recorda a pluralidade de visão das realidades em conformidade com
as culturas de cada região donde provieram os prelados, sem que alguma vez se questionasse
o dogma e as orientações do magistério da Igreja. Tudo, porque as culturas são
muito diferentes entre si e cada princípio geral, para ser observado e
aplicado, precisa de ser inculturado.
A este
respeito, recorda que o Sínodo de 1985, que assinalou o 20.º aniversário do
encerramento do Concílio Vaticano II, definiu a inculturação como a “íntima transformação dos
autênticos valores culturais mediante a integração no cristianismo e a
encarnação do cristianismo nas várias culturas humanas” e declarou que ela, não debilitando os verdadeiros valores,
“demonstra a sua verdadeira força e autenticidade”, já que eles se adaptam sem
se alterarem e “transformam pacífica e gradualmente as várias culturas”.
Mais afirma o
Bispo de Roma que a experiência sinodal mostra que “os verdadeiros defensores
da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas
o homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão” – o
que não significa “diminuir a importância das fórmulas”, “das leis e dos
mandamentos divinos”, mas “exaltar a grandeza do verdadeiro Deus”, que nos
trata não pelos nossos méritos nem pelas nossas obras, mas “unicamente segundo a generosidade sem limites da
sua Misericórdia”.
Esta postura,
segundo o Papa, significa “vencer as tentações constantes do irmão mais velho” da
parábola do filho pródigo (cf Lc 15,25-32) ou dos “trabalhadores invejosos” da
vinha (cf Mt 20,1-16); significa “valorizar ainda mais as leis e os
mandamentos, criados para o homem e não vice-versa” (cf Mc 2,27). Assim, o arrependimento, as obras
e os esforços humanos ganham um sentido mais profundo, não como preço da
Salvação realizada de graça por Cristo na Cruz, mas “como resposta Àquele que
nos amou primeiro e salvou com o preço do seu sangue inocente”.
Segundo o
olhar papal, a experiência da caminhada sinodal acentuou, pela riqueza da
diversidade, o grande desafio de hoje e de sempre colocado à Igreja: “anunciar
o Evangelho ao homem de hoje, defendendo a família de todos os ataques ideológicos
e individualistas”. E levou os padres sinodais a, sem nunca caírem no “perigo
do relativismo ou de demonizar os outros, procurarem “abraçar plena e
corajosamente a bondade e a misericórdia de Deus, que ultrapassa os nossos
cálculos humanos e apenas quer que todos
os homens sejam salvos, de modo a “integrar e viver este Sínodo no contexto
do Ano Extraordinário da Misericórdia que a Igreja está chamada a viver”.
E Francisco,
apoiando-se nas suas próprias convicções e nas palavras de Paulo VI, de João
Paulo II e de Bento XVI sobre a misericórdia divina como tarefa da Igreja,
proclama:
“O primeiro dever da Igreja não é aplicar
condenações ou anátemas, mas proclamar a misericórdia de Deus, chamar à
conversão e conduzir todos os homens à salvação do Senhor” (cf Jo 12,44-50).
A partir
desta experiência, a palavra família
já não soa como antes do Sínodo, mas como “o resumo da sua vocação e o
significado de todo o caminho sinodal”. Por isso, “Ite, Synodus est”, ou seja, a experiência no centro foi positiva,
constituiu um ensinamento, sendo agora necessário fazer sínodo nas periferias
aonde a Igreja e os seus membros é vocacionada a ir em saída, mas caminhando em
conjunto e não em isolamento ou desgarramento. Ide, é a missa, a missão, o
sínodo. A Igreja é caminho, é sínodo (caminho em conjunto, em diálogo e em escuta d’Aquele que quer
caminhar connosco – o Pai),
é missão, é missa, é celebração festiva! E ninguém pode ficar excluído deste
Povo que caminha, tornado família de famílias (cf Angelus,
de 25 de outubro).
***
Também
na homilia da Missa na conclusão da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo, a
25 de outubro, Francisco, acomodou a reflexão, a partir dos textos da Liturgia
da Palavra à espiritualidade sinodal: as leituras do XXX domingo do tempo comum
apresentam a compaixão de Deus, a sua paternidade, que se revela plena e definitivamente
em Jesus. E o Pai, com a sua orientação sábia, terna e misericordiosa, potencia
a caminhada de todos, com a inclusão dos esquecidos, como o cego Bartimeu.
Assim,
o Papa recorda que Jeremias, “enquanto o povo é deportado pelos inimigos,
anuncia que o Senhor salvou o povo” (Jr 31,7), justamente porque é Pai; e,
como Pai, cuida dos filhos, acompanha-os no caminho, sustenta “o cego e o coxo,
a grávida e a que deu à luz” (Jr 31,8). O Pai abre aos filhos um caminho
desimpedido e de consolação para tantas lágrimas e amarguras, garantindo que, se
o povo de filhos permanecer fiel, se mudará o cativeiro em liberdade, a solidão
em comunhão.
Depois, o
Presidente da concelebração sublinha que a Carta aos Hebreus evidencia a
compaixão de Jesus, que “Se revestiu de fraqueza” (cf Heb 5,2), para “sentir compaixão pelos que
estão na ignorância e no erro. Ele “é o Sumo Sacerdote grande, santo,
inocente”, mas também o “que tomou parte nas nossas fraquezas e foi provado em
tudo como nós, exceto no pecado (cf Heb 4,15). Por isso, enquanto o mediador da nova e definitiva aliança, dá-nos a
salvação.
Por seu
turno, o Evangelho de Marcos liga-se ao aludido texto de Jeremias, pois, “como
o povo de Israel foi libertado graças à paternidade de Deus, assim Bartimeu foi
libertado graças à compaixão de Jesus, que participa das caraterísticas do Pai
e que se deteve para responder ao grito de Bartimeu, comovido pelo seu pedido,
interessado pela sua situação.
E o Papa
comenta:
Não Se contenta em dar-lhe esmola, mas quer encontrá-lo
pessoalmente. Não lhe dá instruções nem respostas, mas faz uma pergunta: Que queres que te faça? (Mc 10,51).
Pode parecer uma pergunta inútil: que pode um cego desejar senão a vista? Todavia,
com esta pergunta feita face a face, direta mas respeitosa, Jesus mostra querer
escutar as nossas necessidades. Deseja um diálogo com cada um de nós, feito de
vida, de situações reais, que nada exclua diante de Deus. Depois da cura, o
Senhor, vendo a fé dele e confiando nele, diz ao homem: “A tua fé te salvou” (Mc 10,52).
Salientando o detalhe de Jesus pedir aos discípulos que chamem Bartimeu,
Francisco explicita:
Dirigem-se ao cego usando duas palavras, que só Jesus
utiliza no resto do Evangelho. Primeiro, dizem-lhe: coragem! – palavra que significa, literalmente, tem confiança, faz-te ânimo! É que só o
encontro com Jesus dá ao homem a força para enfrentar as situações mais graves.
A segunda palavra é: levanta-te! –
como Jesus dissera a tantos doentes, tomando-os pela mão e curando-os. Os seus
limitam-se a repetir as palavras encorajadoras e libertadoras de Jesus,
conduzindo diretamente a Ele sem fazer sermões.
Veja-se a
lição que o Pontífice tira do episódio, em que o cego se levantou e, de um
salto, mas desenvencilhando-se da capa (como se ela constituísse um empecilho), foi ao encontro de Jesus:
“A isto são chamados os discípulos de Jesus, também
hoje: pôr o homem em contacto com a Misericórdia compassiva que salva. Quando o
grito da humanidade se torna, como o de Bartimeu, ainda mais forte, não há
outra resposta senão adotar as palavras de Jesus e, sobretudo, imitar o seu
coração. As situações de miséria e de conflitos são para Deus ocasiões de
misericórdia. Hoje é tempo de misericórdia!”.
Porém,
Francisco sublinha duas tentações a partir do episódio, incluindo-se no rol dos
tentados:
- Nenhum dos
discípulos para, como Jesus. Continuam a caminhar como se nada fosse. Se
Bartimeu é cego, eles são surdos: o seu problema não é problema deles. Este é o
nosso risco: face aos contínuos problemas, o melhor é continuar em frente. Como
aqueles discípulos, estamos com Jesus, mas não pensamos como Ele. Estando no
seu grupo, perdemos a abertura do coração, a admiração, a gratidão e o
entusiasmo; e arriscamo-nos a ser “consuetudinários da graça”. Falando d’Ele e trabalhando
para Ele, vivemos longe do seu coração, que Se inclina para quem está ferido. É
a tentação da espiritualidade da miragem: caminhamos pelos desertos da
humanidade não vendo o que deveras existe, mas o que gostaríamos de ver; somos
capazes de construir visões do mundo, mas não aceitamos o que o Senhor nos
coloca diante dos olhos. Ora, conclui o Papa, “uma fé que não sabe radicar-se
na vida das pessoas, permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos”.
- Outra
tentação é cair numa “fé de tabela”. Caminhamos com o povo
de Deus, mas com a nossa tabela de marcha, onde tudo está previsto: sabemos
aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos, pois,
qualquer inconveniente nos perturba. Corremos o risco de nos tornarmos como muitos do Evangelho que perdem a
paciência e repreendem Bartimeu. Pouco antes repreenderam as crianças (cf Mc10,13), agora o mendigo cego: quem
incomoda ou não está à altura há que excluí-lo. Jesus, ao invés, quer incluir,
sobretudo quem está relegado para a margem e grita por Ele. Os que são como
Bartimeu têm fé, porque saber-se necessitado de salvação é o melhor passo para
encontrar Jesus.
O resultado
da atenção de Jesus à fé de quem grita é: “Bartimeu põe-se a seguir Jesus ao
longo da estrada (cf Mc
10,52). Recupera a vista
e une-se à comunidade dos que caminham com Jesus”.
***
Por fim, como
na mensagem de 24 de outubro, o Papa Francisco reconhece que os padres sinodais
– os “queridos Irmãos sinodais” – e ele caminharam juntos, agradece-lhes pela
estrada que compartilharam com o olhar fixo no Senhor e nos irmãos, “à procura
das sendas que o Evangelho indica, no nosso tempo, para anunciar o mistério de
amor da família”. Porém, é preciso continuar “pelo caminho que o Senhor deseja”.
E, porque se torna imperativo o “Ite, Synodus
est!”, Francisco recomenda:
“Peçamos-Lhe um olhar são e salvo, que
saiba irradiar luz, porque recorda o esplendor que o iluminou. Sem nos
deixarmos jamais ofuscar pelo pessimismo e pelo pecado, procuremos e vejamos a
glória de Deus que resplandece no homem vivo”.
Que efetivamente
os Bispos tragam de Roma o Sínodo!
2015.10.26 – Louro de Carvalho
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