Decorreu
hoje, dia 8 de outubro, a cerimónia da abertura do ano judicial. Nesta
circunstância, o Presidente da República (PR),
sendo esta a última vez que falava nesta qualidade presidencial perante aquelas
entidades e o auditório que emolduram a cerimónia, aproveitou o ensejo para
apresentar para memória futura uma reflexão sobre os poderes constitucionais do
Presidente, deixando algumas sugestões em concreto.
Pensa que,
longe de esquecer que a revisão constitucional é competência única e exclusiva
dos deputados que, nos termos constitucionais, entendam dever assumir poderes
constituintes, considerou “ser este o momento certo”, para que a reflexão ora
apresentada “seja percecionada de forma serena e responsável, enquanto registo
e inventário de uma experiência da qual os responsáveis pela revisão da
Constituição farão o uso que livremente entenderem”.
Por outro
lado, sabe que não está “em curso qualquer processo de alteração da Lei
Fundamental. Não obstante, quis deliberadamente, “perante este auditório tão
qualificado” aproveitar a oportunidade de expor uma reflexão à “comunidade dos
intérpretes da Constituição”, que “seja encarada sem quaisquer equívocos”. Mesmo
não pretendendo “condicionar futuras revisões constitucionais”, disponibiliza “um
testemunho para memória futura, passível de contribuir para eventuais revisões
da Constituição, que terão ou não lugar de acordo com a vontade soberana dos
Deputados e no momento que estes entendam ser adequado”.
Sem o
declarar expressamente, alinha com o desconforto político que atingiu o general
Ramalho Eanes, que, após a promulgação da Lei Constitucional n.º 1/1982, de 30
de setembro, que configura a 1.ª revisão constitucional – promulgação que o PR
não podia nem pode recusar – se dirigiu ao país a explicar a sua posição ante a
alegada diminuição dos poderes presidenciais. Recordo-me de que passou então
para a opinião pública que a redefinição dos poderes do PR fora obra de complô
combinado entre PSD e PS tendo em vista a figura de Eanes.
***
Porém, do meu
ponto de vista, não resultou da 1.ª revisão constitucional uma efetiva
diminuição dos poderes presidenciais; terá, antes, havido um aumento dos
poderes. Vejamos:
O que fez
criar a perceção daquela capitis diminutio
foi o condicionamento do poder de exoneração do primeiro-ministro, que no texto
originário da CRP, de 1976, parecia ser um poder igual ao da nomeação. Agora, o
PR “só pode demitir o Governo quando tal
se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições
democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (cf CRP, art.º 195.º/2). Porém, segundo o texto originário, para nomear o
primeiro-ministro (PM), o PR, além de considerar os
resultados eleitorais e ouvir os partidos representados na Assembleia da
República (AR), tinha de ouvir o Conselho de
Estado (vd art.º 190.º da
CRP, 1976). De acordo
com o atual texto da CRP (vd
art.º 187.º/1) não há
qualquer referência à obrigação de ouvir o Conselho de Estado, órgão para o
qual transitaram as competências do Conselho da Revolução (CR) na sua vertente de órgão de consulta do PR.
Por outro
lado, levantou-se o problema da responsabilidade do Governo. Também aqui texto
da CRP não configura alteração substancial. O atual art.º 190.º dispõe que “o Governo é responsável perante o Presidente
da República e a Assembleia da República”, ao passo que o art.º 193.º do
texto de 1976, dispunha que “o Governo é
responsável politicamente perante o Presidente da República e a Assembleia da
República”. Como se pode verificar, a alteração consiste na supressão do
advérbio “politicamente”. Alguns opinavam que se tratava de responsabilidade
institucional; outros, que se mantinha a responsabilidade política; outros
ainda falavam da responsabilidade substantiva.
Convém ainda
referir que Ramalho Eanes, ao abrigo do art.º 190.º da CRP, na sua redação de
1976, exonerou Mário Soares das funções de PM, sem dispor duma alternativa
governativa e, a conselho de um notável constitucionalista que, aduzindo o
raciocínio de que “o mais contém o menos”, obrigou o PM a permanecer no
exercício de funções até à posse do novo governo. Agora o art.º 186.º resolve a
questão ao determinar que “as funções do
Primeiro-Ministro iniciam-se com a sua posse e cessam com a sua exoneração pelo
Presidente da República” (n.º 1) e que “em caso de demissão do Governo, o
Primeiro-Ministro do Governo cessante é exonerado na data da nomeação e posse
do novo Primeiro-Ministro (n.º 4). E o n.º 5
do mesmo artigo dispõe, sobre a índole do governo demissionário, que “antes da apreciação do seu programa pela
Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à
prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”.
Nem sequer se
pode deduzir do texto da CRP a contraindicação de formar governos de iniciativa
presidencial – o que a prática pode efetivamente desaconselhar e dificultar (não a CRP).
E em que sentido se poderá dizer que os poderes do PR foram aumentados?
1. Foram acrescentadas as competências das alíneas n), o) e p) do art.º
133.º:
n) Nomear cinco membros do
Conselho de Estado e dois vogais do Conselho Superior da Magistratura;
o) Presidir ao
Conselho Superior de Defesa Nacional [CSDN];
p) Nomear e
exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas,
o Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os
Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois
últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
As
competências da alínea p) tinham a ver com a composição do CR a que o PR
presidia (como agora preside ao Conselho de Estado), mas o PR não se pronunciava
sobre a designação dos chefes militares nem sobre a composição do CR. E os assuntos
do CSDN era atribuição do CR.
2.
São novas as competências das alíneas c), g), h) e i) do art.º 134.º:
c) Submeter a
referendo questões de relevante interesse nacional, nos termos do artigo 115.º,
e as referidas no n.º 2 do artigo 232.º e no n.º 3 do artigo 256.º;
g) Requerer ao
Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de
normas constantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais;
h) Requerer ao
Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas
jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão;
i) Conferir
condecorações, nos termos da lei, e exercer a função de grão-mestre das ordens
honoríficas portuguesas.
A alínea c) foi introduzida apenas com a revisão de
1989 (LC n.º 1/89, de 20 de setembro).
Quem apreciava a constitucionalidade dos diplomas
legais era o CR (assessorado
pela Comissão Constitucional, de que um dos membros era de
nomeação do PR), ao qual tinham de ser enviados todos os decretos que deviam
ser promulgados, ao mesmo tempo que ao PR. E este, se invocasse urgência de
promulgação, tinha de ouvir previamente o CR (vd art.º 277.º da CRP, 1976). Por
outro lado, há ainda atribuições que eram do CR (vd art.º 142.º, 1976) e que
transitaram para o PR (vd CRP art.º
120.º): “O
Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional,
a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas
e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”. As atribuições sublinhadas são
novas.
Além
disso, o PR já não é substituído nas suas ausências pelo Presidente da AR, mas
apenas no seu impedimento temporário (cf art.º 135.º da CRP,
1976; e art.º 132.º da CRP na redação atual).
***
Voltando ao
discurso de cavaco Silva, veja-se o que o PR diz dos poderes presidenciais:
- No âmbito da
distribuição de competências definidas pela CRP, as suas traves-mestras são
ajustadas ao equilíbrio das funções do Estado e à observância do “princípio da
separação e interdependência de poderes entre os diversos órgãos de soberania”;
e, no essencial, o nosso sistema de governo revelou “uma notável maleabilidade
e uma excecional capacidade de adaptação às vicissitudes e à evolução” da vida
política.
- No quadro
dos poderes presidenciais, o conjunto das competências atribuídas ao PR “é
adequado e proporcionado ao lugar que a Constituição lhe atribui, na interação
com o Parlamento, o Governo e os tribunais” e no atinente “à distribuição
interorgânica de competências, o sistema vigente demonstrou as suas qualidades
e a sua eficácia”, sendo que “o sistema constitucional nunca representou
impedimento à ação do Presidente da República e, de um modo geral, ao normal
funcionamento das instituições democráticas”. A CRP confere, pois, “ao Chefe do
Estado as competências necessárias para o pleno exercício das suas funções e
mostra-se ajustada ao modelo, que deve ser mantido, de eleição presidencial por
sufrágio direto”.
-
Considerando não se justificar “uma substancial alteração do acervo dos poderes
presidenciais, seja no sentido da sua redução, seja, ao invés, no sentido da
sua ampliação”, pensa que se impõe “uma leitura adequada e equilibrada da
Constituição, a Lei Fundamental que jurou cumprir e fazer cumprir”.
Porém, o PR
entende existirem “aspetos pontuais que podem suscitar uma ponderação por parte
dos titulares do poder de revisão constitucional, ou seja, os senhores deputados
à Assembleia da República”, para melhor espelhar a índole semipresidencial do
sistema. Assim:
A atribuição
ao PR da faculdade de designar alguns juízes do Tribunal Constitucional (TC) reforçaria “a perceção de independência que os Portugueses
têm deste órgão de garantia da Constituição”.
Trata-se se de
matéria que vem sendo discutida já desde a 1.ª revisão constitucional. Também
penso – sem que tal envolva qualquer crítica à independência, isenção e
competência do TC – que a sua composição não deveria ter origem apenas na AR.
Na totalidade de 13 juízes, entendo que 5 deveriam ser eleitos na AR, 2
designados pelo Conselho Superior de Magistratura, 3 designados pelo PR e 3
cooptados pelos restantes.
Também, em
nome do “reforço dos mecanismos de garantia da Constituição”, o prazo de que o
PR dispõe para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade
deveria ser “alargado para limites temporais mais razoáveis e adequados à
crescente complexidade, jurídica e não só, da legislação produzida pela
Assembleia da República e pelo Governo”, já que o prazo de oito dias é
demasiado curto.
Por outro
lado, dado que o atual texto da CRP não clarifica a maioria exigível para a
confirmação dos diplomas vetados pelo PR, aprovados na AR por maioria de 2/3
dos deputados, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em
efetividade de funções e tendo em conta o postulado pelos “equilíbrios
político-constitucionais”, será aconselhável que a confirmação de um diploma vetado
pelo PR ocorra, “em todos os casos, por maioria não inferior a 2/3 dos
Deputados.
Julgo
razoáveis estas duas sugestões, pelo facto de o PR ser um órgão unipessoal e o
volume e complexidade dos diplomas a analisar ser eventualmente de grande
monta.
O PR também
contesta a norma – de resquício das constituições monárquicas do século XIX – que
“faz depender a deslocação ao estrangeiro do Presidente da República de uma autorização
prévia do Parlamento”, sob pena de perda do mandato. Ora, não encontrando “justificação
num mundo globalizado em que, por vezes, o exercício de funções presidenciais,
nomeadamente de representação do Estado português no plano externo, exige uma atuação
rápida e até urgente”, deverá o legislador constituinte “encontrar uma solução
normativa que, por exemplo, preveja a dispensa dessa autorização em situações
de urgência ou particularmente relevantes ou até, no limite, suprimir esta
exigência constitucional” – e eu acrescentaria, com a obrigação de comunicação
prévia da circunstância excecional por parte do PR ao Presidente da AR.
Também dada a
relevância do lugar cada vez maior dos bancos centrais “na vida económica dos
diversos países e, em especial, na supervisão e regulação da atividade financeira”,
Cavaco sugere que “o processo de nomeação do governador do Banco de Portugal”
seja consagrado na CRP, “à semelhança do que acontece com os titulares dos mais
altos cargos do Estado português”. Assim, a nomeação do governador deveria ser
feita por parte do Presidente da República, sob proposta do Governo e após
audição parlamentar.
Concordo
obviamente, mas entendo que o legislador ordinário pode, entretanto, legislar
sobre a matéria, sem necessidade de esperar por uma revisão da CRP, embora a
CRP dê maior garantia de estabilidade normativa. Basta alterar a lei orgânica do
BdP.
Ademais,
atendendo a que o PR é o Comandante Supremo das Forças Armadas, Cavaco Silva
entende que a Constituição deveria prever que “o Chefe do Estado designasse
alguns membros do Conselho Superior de Defesa Nacional” – o que “contribuiria
para diversificar a composição deste órgão de consulta para os assuntos
relativos à Defesa Nacional e às Forças Armadas”.
Penso
que o PR tem razão nesta matéria, mas o legislador ordinário pode resolver a
questão, já que o n.º do art.º 274.º da CRP estabelece: “o Conselho Superior de Defesa Nacional é presidido pelo Presidente da
República e tem a composição que a lei
determinar, a qual incluirá membros eleitos pela Assembleia da República”.
O segmento sublinhado abre a porta para a resposta ao PR. Basta mexer na Lei de
Defesa Nacional e das Forças Armadas.
Entretanto,
diga-se que o Presidente estudou a lição e quis marcar a sua posição. Assim,
rejeita implicitamente a tendência política de eliminar a figura os
representantes do governo nas regiões autónomas, em nome do Estado unitário, e
explicitamente o estabelecimento do representante único para Açores e Madeira,
em razão da proximidade e desconhecimento da realidade regional, que seriam
deficitários com aquela opção. Por outro lado, sugere que se reencontre um
modelo (já
foi assim quando se designavam por ministros da República) em que se preveja “a sua
presença no Conselho de Ministros”, para facilitar uma comunicação ágil e
eficiente entre o poder central e os órgãos regionais.
***
Será
inoportuno e até abusivo da autoridade de que o Presidente está investido o
arrazoado presidencial, mas é de reler este testamento político-constitucional
do professor de economia, tornado “político” negando ser político.
2015.10.08 – Louro de Carvalho
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