sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Recado do Presidente ao legislador constituinte

Decorreu hoje, dia 8 de outubro, a cerimónia da abertura do ano judicial. Nesta circunstância, o Presidente da República (PR), sendo esta a última vez que falava nesta qualidade presidencial perante aquelas entidades e o auditório que emolduram a cerimónia, aproveitou o ensejo para apresentar para memória futura uma reflexão sobre os poderes constitucionais do Presidente, deixando algumas sugestões em concreto.
Pensa que, longe de esquecer que a revisão constitucional é competência única e exclusiva dos deputados que, nos termos constitucionais, entendam dever assumir poderes constituintes, considerou “ser este o momento certo”, para que a reflexão ora apresentada “seja percecionada de forma serena e responsável, enquanto registo e inventário de uma experiência da qual os responsáveis pela revisão da Constituição farão o uso que livremente entenderem”.
Por outro lado, sabe que não está “em curso qualquer processo de alteração da Lei Fundamental. Não obstante, quis deliberadamente, “perante este auditório tão qualificado” aproveitar a oportunidade de expor uma reflexão à “comunidade dos intérpretes da Constituição”, que “seja encarada sem quaisquer equívocos”. Mesmo não pretendendo “condicionar futuras revisões constitucionais”, disponibiliza “um testemunho para memória futura, passível de contribuir para eventuais revisões da Constituição, que terão ou não lugar de acordo com a vontade soberana dos Deputados e no momento que estes entendam ser adequado”.
Sem o declarar expressamente, alinha com o desconforto político que atingiu o general Ramalho Eanes, que, após a promulgação da Lei Constitucional n.º 1/1982, de 30 de setembro, que configura a 1.ª revisão constitucional – promulgação que o PR não podia nem pode recusar – se dirigiu ao país a explicar a sua posição ante a alegada diminuição dos poderes presidenciais. Recordo-me de que passou então para a opinião pública que a redefinição dos poderes do PR fora obra de complô combinado entre PSD e PS tendo em vista a figura de Eanes.
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Porém, do meu ponto de vista, não resultou da 1.ª revisão constitucional uma efetiva diminuição dos poderes presidenciais; terá, antes, havido um aumento dos poderes. Vejamos:
O que fez criar a perceção daquela capitis diminutio foi o condicionamento do poder de exoneração do primeiro-ministro, que no texto originário da CRP, de 1976, parecia ser um poder igual ao da nomeação. Agora, o PR “só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (cf CRP, art.º 195.º/2). Porém, segundo o texto originário, para nomear o primeiro-ministro (PM), o PR, além de considerar os resultados eleitorais e ouvir os partidos representados na Assembleia da República (AR), tinha de ouvir o Conselho de Estado (vd art.º 190.º da CRP, 1976). De acordo com o atual texto da CRP (vd art.º 187.º/1) não há qualquer referência à obrigação de ouvir o Conselho de Estado, órgão para o qual transitaram as competências do Conselho da Revolução (CR) na sua vertente de órgão de consulta do PR.
Por outro lado, levantou-se o problema da responsabilidade do Governo. Também aqui texto da CRP não configura alteração substancial. O atual art.º 190.º dispõe que “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”, ao passo que o art.º 193.º do texto de 1976, dispunha que “o Governo é responsável politicamente perante o Presidente da República e a Assembleia da República”. Como se pode verificar, a alteração consiste na supressão do advérbio “politicamente”. Alguns opinavam que se tratava de responsabilidade institucional; outros, que se mantinha a responsabilidade política; outros ainda falavam da responsabilidade substantiva.
Convém ainda referir que Ramalho Eanes, ao abrigo do art.º 190.º da CRP, na sua redação de 1976, exonerou Mário Soares das funções de PM, sem dispor duma alternativa governativa e, a conselho de um notável constitucionalista que, aduzindo o raciocínio de que “o mais contém o menos”, obrigou o PM a permanecer no exercício de funções até à posse do novo governo. Agora o art.º 186.º resolve a questão ao determinar que “as funções do Primeiro-Ministro iniciam-se com a sua posse e cessam com a sua exoneração pelo Presidente da República” (n.º 1) e que “em caso de demissão do Governo, o Primeiro-Ministro do Governo cessante é exonerado na data da nomeação e posse do novo Primeiro-Ministro (n.º 4). E o n.º 5 do mesmo artigo dispõe, sobre a índole do governo demissionário, que “antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”.
Nem sequer se pode deduzir do texto da CRP a contraindicação de formar governos de iniciativa presidencial – o que a prática pode efetivamente desaconselhar e dificultar (não a CRP).
E em que sentido se poderá dizer que os poderes do PR foram aumentados?
1. Foram acrescentadas as competências das alíneas n), o) e p) do art.º 133.º:
n) Nomear cinco membros do Conselho de Estado e dois vogais do Conselho Superior da Magistratura;
o) Presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional [CSDN];
p) Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
As competências da alínea p) tinham a ver com a composição do CR a que o PR presidia (como agora preside ao Conselho de Estado), mas o PR não se pronunciava sobre a designação dos chefes militares nem sobre a composição do CR. E os assuntos do CSDN era atribuição do CR.
2. São novas as competências das alíneas c), g), h) e i) do art.º 134.º:
c) Submeter a referendo questões de relevante interesse nacional, nos termos do artigo 115.º, e as referidas no n.º 2 do artigo 232.º e no n.º 3 do artigo 256.º;
g) Requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas constantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais;
h) Requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão;
i) Conferir condecorações, nos termos da lei, e exercer a função de grão-mestre das ordens honoríficas portuguesas.
A alínea c) foi introduzida apenas com a revisão de 1989 (LC n.º 1/89, de 20 de setembro).
Quem apreciava a constitucionalidade dos diplomas legais era o CR (assessorado pela Comissão Constitucional, de que um dos membros era de nomeação do PR), ao qual tinham de ser enviados todos os decretos que deviam ser promulgados, ao mesmo tempo que ao PR. E este, se invocasse urgência de promulgação, tinha de ouvir previamente o CR (vd art.º 277.º da CRP, 1976). Por outro lado, há ainda atribuições que eram do CR (vd art.º 142.º, 1976) e que transitaram para o PR (vd CRP art.º 120.º): “O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”. As atribuições sublinhadas são novas.
Além disso, o PR já não é substituído nas suas ausências pelo Presidente da AR, mas apenas no seu impedimento temporário (cf art.º 135.º da CRP, 1976; e art.º 132.º da CRP na redação atual).
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Voltando ao discurso de cavaco Silva, veja-se o que o PR diz dos poderes presidenciais:
- No âmbito da distribuição de competências definidas pela CRP, as suas traves-mestras são ajustadas ao equilíbrio das funções do Estado e à observância do “princípio da separação e interdependência de poderes entre os diversos órgãos de soberania”; e, no essencial, o nosso sistema de governo revelou “uma notável maleabilidade e uma excecional capacidade de adaptação às vicissitudes e à evolução” da vida política.
- No quadro dos poderes presidenciais, o conjunto das competências atribuídas ao PR “é adequado e proporcionado ao lugar que a Constituição lhe atribui, na interação com o Parlamento, o Governo e os tribunais” e no atinente “à distribuição interorgânica de competências, o sistema vigente demonstrou as suas qualidades e a sua eficácia”, sendo que “o sistema constitucional nunca representou impedimento à ação do Presidente da República e, de um modo geral, ao normal funcionamento das instituições democráticas”. A CRP confere, pois, “ao Chefe do Estado as competências necessárias para o pleno exercício das suas funções e mostra-se ajustada ao modelo, que deve ser mantido, de eleição presidencial por sufrágio direto”.
- Considerando não se justificar “uma substancial alteração do acervo dos poderes presidenciais, seja no sentido da sua redução, seja, ao invés, no sentido da sua ampliação”, pensa que se impõe “uma leitura adequada e equilibrada da Constituição, a Lei Fundamental que jurou cumprir e fazer cumprir”.
Porém, o PR entende existirem “aspetos pontuais que podem suscitar uma ponderação por parte dos titulares do poder de revisão constitucional, ou seja, os senhores deputados à Assembleia da República”, para melhor espelhar a índole semipresidencial do sistema. Assim:
A atribuição ao PR da faculdade de designar alguns juízes do Tribunal Constitucional (TC) reforçaria “a perceção de independência que os Portugueses têm deste órgão de garantia da Constituição”.
Trata-se se de matéria que vem sendo discutida já desde a 1.ª revisão constitucional. Também penso – sem que tal envolva qualquer crítica à independência, isenção e competência do TC – que a sua composição não deveria ter origem apenas na AR. Na totalidade de 13 juízes, entendo que 5 deveriam ser eleitos na AR, 2 designados pelo Conselho Superior de Magistratura, 3 designados pelo PR e 3 cooptados pelos restantes.
Também, em nome do “reforço dos mecanismos de garantia da Constituição”, o prazo de que o PR dispõe para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade deveria ser “alargado para limites temporais mais razoáveis e adequados à crescente complexidade, jurídica e não só, da legislação produzida pela Assembleia da República e pelo Governo”, já que o prazo de oito dias é demasiado curto.
Por outro lado, dado que o atual texto da CRP não clarifica a maioria exigível para a confirmação dos diplomas vetados pelo PR, aprovados na AR por maioria de 2/3 dos deputados, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções e tendo em conta o postulado pelos “equilíbrios político-constitucionais”, será aconselhável que a confirmação de um diploma vetado pelo PR ocorra, “em todos os casos, por maioria não inferior a 2/3 dos Deputados.
Julgo razoáveis estas duas sugestões, pelo facto de o PR ser um órgão unipessoal e o volume e complexidade dos diplomas a analisar ser eventualmente de grande monta.
O PR também contesta a norma – de resquício das constituições monárquicas do século XIX – que “faz depender a deslocação ao estrangeiro do Presidente da República de uma autorização prévia do Parlamento”, sob pena de perda do mandato. Ora, não encontrando “justificação num mundo globalizado em que, por vezes, o exercício de funções presidenciais, nomeadamente de representação do Estado português no plano externo, exige uma atuação rápida e até urgente”, deverá o legislador constituinte “encontrar uma solução normativa que, por exemplo, preveja a dispensa dessa autorização em situações de urgência ou particularmente relevantes ou até, no limite, suprimir esta exigência constitucional” – e eu acrescentaria, com a obrigação de comunicação prévia da circunstância excecional por parte do PR ao Presidente da AR.
Também dada a relevância do lugar cada vez maior dos bancos centrais “na vida económica dos diversos países e, em especial, na supervisão e regulação da atividade financeira”, Cavaco sugere que “o processo de nomeação do governador do Banco de Portugal” seja consagrado na CRP, “à semelhança do que acontece com os titulares dos mais altos cargos do Estado português”. Assim, a nomeação do governador deveria ser feita por parte do Presidente da República, sob proposta do Governo e após audição parlamentar.
Concordo obviamente, mas entendo que o legislador ordinário pode, entretanto, legislar sobre a matéria, sem necessidade de esperar por uma revisão da CRP, embora a CRP dê maior garantia de estabilidade normativa. Basta alterar a lei orgânica do BdP.
Ademais, atendendo a que o PR é o Comandante Supremo das Forças Armadas, Cavaco Silva entende que a Constituição deveria prever que “o Chefe do Estado designasse alguns membros do Conselho Superior de Defesa Nacional” – o que “contribuiria para diversificar a composição deste órgão de consulta para os assuntos relativos à Defesa Nacional e às Forças Armadas”.
Penso que o PR tem razão nesta matéria, mas o legislador ordinário pode resolver a questão, já que o n.º do art.º 274.º da CRP estabelece: “o Conselho Superior de Defesa Nacional é presidido pelo Presidente da República e tem a composição que a lei determinar, a qual incluirá membros eleitos pela Assembleia da República”. O segmento sublinhado abre a porta para a resposta ao PR. Basta mexer na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.
Entretanto, diga-se que o Presidente estudou a lição e quis marcar a sua posição. Assim, rejeita implicitamente a tendência política de eliminar a figura os representantes do governo nas regiões autónomas, em nome do Estado unitário, e explicitamente o estabelecimento do representante único para Açores e Madeira, em razão da proximidade e desconhecimento da realidade regional, que seriam deficitários com aquela opção. Por outro lado, sugere que se reencontre um modelo (já foi assim quando se designavam por ministros da República) em que se preveja “a sua presença no Conselho de Ministros”, para facilitar uma comunicação ágil e eficiente entre o poder central e os órgãos regionais.
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Será inoportuno e até abusivo da autoridade de que o Presidente está investido o arrazoado presidencial, mas é de reler este testamento político-constitucional do professor de economia, tornado “político” negando ser político.

2015.10.08 – Louro de Carvalho

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