– Severidade, marcação de linhas vermelhas ou
lucidez eclesial?
A
Comunicação Social rotulou a intervenção de Francisco, na abertura do Sínodo de
2015, ou melhor a homilia da missa de abertura, como intervenção de tom severo,
a marcar linhas vermelhas que os padres sinodais não podiam ultrapassar na
discussão sinodal. Ora, passada que foi a assembleia sinodal de 2014, cujo
escopo era, sem deixar de atender ao Espírito Santo, escutar o mundo com os
desafios dos dramas familiares e conexos, há que atentar, de momento, sobretudo
no tema “A vocação e a missão da família
na Igreja e no mundo contemporâneo”.
Sem
nunca ficar na corda bamba a doutrina da Igreja sobre a família e o matrimónio,
radicada no Evangelho, o que tem estado em causa e suscitado a discussão
acalorada são as questões atinentes ao acolhimento e acompanhamento: aos
membros da família abandonados por situação de separação e/ou divórcio; aos
recasados pelo civil; e às pessoas homossexuais. Por outro lado, foi decretada
a simplificação e agilização do processo de declaração de nulidade matrimonial.
Por isso, o Sínodo, sem deixar de repensar quanto está em cima da mesa, deve
tirar conclusões sobre o tema deste sínodo à luz da doutrina, com vista a uma
sólida ação pastoral e apostólica.
Isto
não são linhas vermelhas nem severidade, mas lucidez eclesial. Mal haja aos
que, a troco de desilusão sobre as suas falsas expectativas, venderem a partir
de agora a simpatia que nutriam pelo Papa do cabo do mundo, só porque não
alinha nos parâmetros da mundanidade!
A perspetiva
papal na abertura da assembleia sinodal pode ver-se em três momentos: a vigília de oração preparatória
da assembleia sinodal, na Praça
de São Pedro, a 3 de outubro; a homilia na missa de abertura, na
Basílica Vaticana, no dia 4; e o discurso na aula sinodal, no dia 5.
***
Na vigília de oração preparatória da
assembleia sinodal
O Papa, partindo da metáfora da insuficiência da
pequena candeia acesa para vencer as trevas e do medo que, a cada passo, toma
conta de nós, como aconteceu com o profeta Elias, sugere a escuta assídua e
atenta do Espírito Santo. E tal como Elias, retirado no Horeb, não encontrou a
resposta de Deus “no vento impetuoso que fendia as rochas, nem no terramoto,
nem sequer no fogo”, também nós não a encontraremos aí, mas, como o profeta, na
Graça de Deus captável na brisa suave, ligeira, nascente, fecunda, nova e renovadora
– no murmúrio do Espírito, “de que se apercebem todos aqueles que estão prontos
a ouvir a sua brisa suave: exorta-os a sair, a voltar para o mundo, testemunhas
do amor de Deus pelo homem, para que o mundo creia…”
Por isso, Francisco incita à oração para que o Sínodo
“saiba reconduzir a uma figura de homem na sua plenitude a experiência conjugal
e familiar; reconheça, valorize e proponha quanto nela há de belo, bom e santo;
abrace as situações de vulnerabilidade, que a põem à prova: a pobreza, a guerra, a doença, o luto, as
relações feridas e desfeitas de que brotam contrariedades, ressentimentos e ruturas;
lembre a estas famílias [as participantes naquela vigília], como a todas as famílias, que o Evangelho permanece
uma boa notícia donde recomeçar”. O
Pontífice quer que “do tesouro da tradição viva os Padres [sinodais] saibam tirar palavras de consolação e diretrizes de
esperança para famílias chamadas a construir, neste tempo, o futuro da
comunidade eclesial e da cidade do homem”.
Depois, focando-se na família de Nazaré, em que se
forma a história humana de Jesus, recolhe a partir de Carlos de Foucauld, o alcance da espiritualidade que emana do mistério
da Sagrada Família, da relação diária de Jesus com os pais e os vizinhos, do
trabalho silencioso, da oração humilde – que leva a inclinarmo-nos sobre o próximo
e a elevarmo-nos para Deus. Com efeito, à luz de Nazaré, segundo o Papa,
“A família é
lugar de santidade evangélica, realizada nas condições mais comuns. Nela se
respira a memória das gerações e mergulham raízes que permitem chegar longe. É
lugar do discernimento, onde nos educam a reconhecer o desígnio de Deus acerca
da nossa própria vida e a abraçá-lo com confiança. É lugar de gratuidade, de
presença discreta, fraterna e solidária, que ensina a sair de si mesmo para
acolher o outro, para perdoar e ser perdoados.”
A partir da família assim concebida, o Bispo de Roma
ensina a encontrar a espessura duma Igreja que é mãe, capaz de
gerar para a vida e cuidadosa em dar continuamente a vida, em acompanhar com
dedicação, ternura e força moral”. E assim apresenta outras vertentes da
Igreja: a Igreja que é família, que sabe assumir a responsabilidade paterna do
guardião próximo e amoroso; a Igreja de filhos “que se reconhecem irmãos, considerando o outro, não “como um
fardo, um problema, um custo, uma preocupação ou um risco”, como “um dom, que
continua a ser tal mesmo quando percorre estradas diferentes”. E sintetiza:
“A Igreja é
casa aberta, alheada de grandezas exteriores, acolhedora no estilo sóbrio dos
seus membros e, por isso mesmo, acessível à esperança de paz que existe dentro
de cada homem, incluindo os que, provados pela vida, têm o coração ferido e
atribulado. Uma Igreja assim pode verdadeiramente iluminar a noite do homem,
apontar-lhe credivelmente a meta e compartilhar os seus passos, precisamente
porque ela foi a primeira que viveu a experiência de ser incessantemente regenerada
no coração misericordioso do Pai.”
É a pequena candeia acesa tornada luz do mundo, por
mercê do Deus misericordioso!
***
Na homilia na missa de abertura da assembleia sinodal
O Papa
comentou as leituras bíblicas do XXVII Domingo do tempo comum, que lhe “parecem
escolhidas de propósito para o evento de graça que a Igreja está a viver”, “centradas
em três argumentos: o drama da solidão, o amor entre homem-mulher e a família”.
Quanto à solidão, Francisco
partindo da solidão do homem do Éden – que só encontrou companhia e ajuda
satisfatórias num ser da mesma semente (sui similis), a mulher, e
não em qualquer outro dos seres – escalpeliza o drama da solidão da
contemporaneidade, concretizado no mundo das pessoas sozinhas ou das fechadas
no egoísmo, melancolia, violência destrutiva, escravidão do prazer ou do
deus-dinheiro:
“Penso nos idosos abandonados até
pelos seus entes queridos e pelos próprios filhos; nos viúvos e nas viúvas; em
tantos homens e mulheres, deixados pela sua esposa e pelo seu marido; em muitas
pessoas que se sentem realmente sozinhas, não compreendidas nem escutadas; nos
migrantes e prófugos que escapam de guerras e perseguições; e em tantos jovens
vítimas da cultura do consumismo, do usa
e joga fora e da cultura do descarte”.
No respeitante ao amor entre homem e mulher, o Bispo de Roma verifica a tristeza de Deus por ver a solidão do homem
e sonhou com a felicidade da sua criatura humana: “vê-la realizada na união de amor
entre homem e mulher [não
homem e homem ou mulher e mulher]; feliz no caminho comum, fecunda na doação recíproca”. É o
sonho-desígnio que Jesus resume no Evangelho:
“Desde
o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará
seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto,
já não são dois, mas um só” (Mc 10,6-8; cf. Gn 1,27; 2,24).
Com efeito,
perante a pergunta que Lhe colocaram como uma cilada, para fazê-Lo odioso “à
multidão que O seguia e que praticava o divórcio”, considerado inatacável, a resposta do Mestre é franca e inesperada:
leva tudo à origem da criação, para ensinar que “Deus abençoa o amor humano, é
Ele que une os corações de um homem e de uma mulher que se amam” e ligando-os “na
unidade e na indissolubilidade”. Significa assim o objetivo da vida conjugal:
para lá de viverem juntos para sempre, devem amar-se para sempre. É esta a
ordem originária e originadora. É esta a doutrina do matrimónio.
Relativamente à família, o ensinamento papal, em termos doutrinais, parte do princípio fundador, O
que Deus uniu não o separe o homem (Mc 10,9),
que se torna “exortação aos crentes para superar toda a forma de individualismo
e de legalismo”, escondidos “no egoísmo mesquinho e no medo de aderir ao
significado autêntico do casal e da sexualidade humana” em consonância com o
projeto de Deus. Segundo o seu
projeto, o matrimónio “não é utopia da adolescência”, mas o sonho que liberta a
criatura da solidão. Porém, o receio de rumar ao desconhecido “paralisa o
coração humano”. E o Papa aponta o paradoxo de quem, ridicularizando o desígnio
divino, “continua atraído e fascinado” por todo o amor autêntico, sólido,
fecundo, “fiel e perpétuo”; corre atrás de amores temporários, mas sonha com o
autêntico; corre por “prazeres carnais”, mas “deseja a doação total”.
Num difícil contexto
social que circunda a família e o matrimónio, a Igreja – diz Francisco – “é
chamada a viver a sua missão na fidelidade, na verdade e na caridade”, como voz
que, na fidelidade ao Mestre, clama no deserto:
“Para defender o amor fiel e encorajar
as inúmeras famílias que vivem o seu matrimónio como um espaço onde se
manifesta o amor divino; para defender a sacralidade da vida, de toda a vida;
para defender a unidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal como sinal da
graça de Deus e da capacidade que o homem tem de amar seriamente”.
Porém, esta
Igreja, que “é chamada a viver a sua missão na caridade” não julga os outros,
mas, na fidelidade à sua índole materna, sente o “dever de procurar e cuidar
dos casais feridos com o óleo da aceitação e da misericórdia”. Ensinando e
defendendo os valores fundamentais – mas sem esquecer que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado (Mc 2,27) e que, segundo a palavra de Cristo, Não são os que têm saúde que precisam de
médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores
(Mc 2,17) – esta é uma “Igreja que educa para
o amor autêntico, capaz de tirar da solidão, sem esquecer a sua missão de bom
samaritano da humanidade ferida”.
***
No discurso na aula sinodal
Na esteira da
usança de Bento XVI, Francisco usa da palavra na aula sinodal, mas é mais
assíduo no acompanhamento dos trabalhos. Assim, na alocução introdutória expôs o
sentido do Sínodo como “uma caminhada em conjunto” em espírito “de
colegialidade e sinodalidade”, falando cada um com “denodo, zelo pastoral e
doutrinal, sabedoria, franqueza e colocando diante dos nossos olhos o bem da
Igreja e das famílias e a suprema lei – a salvação das almas”.
E precisa que
o Sínodo não é um parlamento ou um senado em que seja necessário chegar a um
acordo, mas “uma expressão eclesial”, a da “Igreja que caminha em conjunto para
ler a realidade com os olhos da fé e com o coração de Deus”. É a Igreja a refletir
sobre a sua fidelidade ao depósito da fé,
que não é um museu, mas “uma fonte viva em que a Igreja se dessedenta para ser
capaz de saciar e iluminar o depósito da
vida”.
Igualmente, o
Papa destaca a ação do Espírito Santo no Sínodo, ação que a Igreja experimenta
também neste espaço de reflexão:
“No Sínodo, o Espírito fala através da
língua de todas as pessoas que se deixam guiar pelo Deus que surpreende sempre,
que revela aos pequeninos o que esconde aos sábios e inteligentes, que fez a
lei e o sábado para o homem e não vice-versa, que deixa as 99 ovelhas para ir
ao encontro da tresmalhada, que está sempre acima das nossas lógicas e cálculos”.
Por isso, vêm
ao de cima as atitudes que os Padres sinodais devem assumir para que o Sínodo
constitua um espaço da ação do Espírito Santo: a coragem apostólica, a humildade evangélica e a oração confiante.
A coragem apostólica, não nos deixando
afastar de Deus, “deve transportar vida e não fazer da nossa vida cristã um
museu de recordações”. A humildade
evangélica, fazendo-nos despojar dos nossos preconceitos e ideias feitas,
leva-nos a escutar os irmãos e a enchermo-nos de Deus, de modo a não julgarmos
os outros, mas a estender-lhes a mão para concretizarmos aquilo que vamos
descobrindo em conjunto, sem nos sentirmos superiores uns aos outros. E a oração confiante é ação do coração que
se abre a Deus, que fala no silêncio. Sem a escuta de Deus, a nossa palavra de pouco
servirá: não iluminará nem saciará. Sem a ação do Espírito a guiar-nos, as
nossas decisões serão meramente decorativas, que, em vez de evidenciarem o
Evangelho, o eclipsam.
O
discurso termina com os agradecimentos a todos os padres sinodais e a todos os colaboradores
e com a invocação do Espírito Santo e da Sagrada Família.
***
É
óbvio que Francisco, na fidelidade à doutrina e imbuído da mística da divina
misericórdia a espelhar-se na atenção às pessoas e no cuidado e guarda delas, sobretudo
às das periferias existenciais, é junto dos homens o paladino da ternura de
Deus e junto de Deus a testemunha dos atuais dramas da humanidade. Perante os responsáveis
dos destinos dos povos aponta as ideias do poder como serviço e dever, pistas
de ação como tarefa urgente; perante os explorados, propõe a consciencialização
despertante; diante de todos expõe a doutrina, mas sem julgar as pessoas, pratica
o tacto pastoral e induz à sua prática. Faz-me lembrar os Padres Redentoristas,
que eram lúcidos e rigorosos nos princípios morais, mas extremamente flexíveis
na sua aplicação às pessoas concretas, cujos dramas, sofrimentos, insuficiências
e pecados tentavam compreender.
Ora,
sem desvalorizar a coexistência das duas vertentes da Incarnação e da Redenção,
sempre prefiro a um Cristo morto pela doutrina e seus princípios o Cristo morto
e ressuscitado pelas pessoas que não conseguiram cumprir a doutrina. É o
objetivo de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância.
De
resto, qual severidade ou quais linhas vermelhas no discurso papal?
2015.10.07 –
Louro de Carvalho
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