quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A perspetiva papal na abertura do Sínodo de 2015

 – Severidade, marcação de linhas vermelhas ou lucidez eclesial?

A Comunicação Social rotulou a intervenção de Francisco, na abertura do Sínodo de 2015, ou melhor a homilia da missa de abertura, como intervenção de tom severo, a marcar linhas vermelhas que os padres sinodais não podiam ultrapassar na discussão sinodal. Ora, passada que foi a assembleia sinodal de 2014, cujo escopo era, sem deixar de atender ao Espírito Santo, escutar o mundo com os desafios dos dramas familiares e conexos, há que atentar, de momento, sobretudo no tema “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”.
Sem nunca ficar na corda bamba a doutrina da Igreja sobre a família e o matrimónio, radicada no Evangelho, o que tem estado em causa e suscitado a discussão acalorada são as questões atinentes ao acolhimento e acompanhamento: aos membros da família abandonados por situação de separação e/ou divórcio; aos recasados pelo civil; e às pessoas homossexuais. Por outro lado, foi decretada a simplificação e agilização do processo de declaração de nulidade matrimonial. Por isso, o Sínodo, sem deixar de repensar quanto está em cima da mesa, deve tirar conclusões sobre o tema deste sínodo à luz da doutrina, com vista a uma sólida ação pastoral e apostólica.
Isto não são linhas vermelhas nem severidade, mas lucidez eclesial. Mal haja aos que, a troco de desilusão sobre as suas falsas expectativas, venderem a partir de agora a simpatia que nutriam pelo Papa do cabo do mundo, só porque não alinha nos parâmetros da mundanidade!
A perspetiva papal na abertura da assembleia sinodal pode ver-se em três momentos: a vigília de oração preparatória da assembleia sinodal, na Praça de São Pedro, a 3 de outubro; a homilia na missa de abertura, na Basílica Vaticana, no dia 4; e o discurso na aula sinodal, no dia 5.
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Na vigília de oração preparatória da assembleia sinodal
O Papa, partindo da metáfora da insuficiência da pequena candeia acesa para vencer as trevas e do medo que, a cada passo, toma conta de nós, como aconteceu com o profeta Elias, sugere a escuta assídua e atenta do Espírito Santo. E tal como Elias, retirado no Horeb, não encontrou a resposta de Deus “no vento impetuoso que fendia as rochas, nem no terramoto, nem sequer no fogo”, também nós não a encontraremos aí, mas, como o profeta, na Graça de Deus captável na brisa suave, ligeira, nascente, fecunda, nova e renovadora – no murmúrio do Espírito, “de que se apercebem todos aqueles que estão prontos a ouvir a sua brisa suave: exorta-os a sair, a voltar para o mundo, testemunhas do amor de Deus pelo homem, para que o mundo creia…”
Por isso, Francisco incita à oração para que o Sínodo “saiba reconduzir a uma figura de homem na sua plenitude a experiência conjugal e familiar; reconheça, valorize e proponha quanto nela há de belo, bom e santo; abrace as situações de vulnerabilidade, que a põem à prova: a pobreza, a guerra, a doença, o luto, as relações feridas e desfeitas de que brotam contrariedades, ressentimentos e ruturas; lembre a estas famílias [as participantes naquela vigília], como a todas as famílias, que o Evangelho permanece uma boa notícia donde recomeçar”. O Pontífice quer que “do tesouro da tradição viva os Padres [sinodais] saibam tirar palavras de consolação e diretrizes de esperança para famílias chamadas a construir, neste tempo, o futuro da comunidade eclesial e da cidade do homem”.
Depois, focando-se na família de Nazaré, em que se forma a história humana de Jesus, recolhe a partir de Carlos de Foucauld, o alcance da espiritualidade que emana do mistério da Sagrada Família, da relação diária de Jesus com os pais e os vizinhos, do trabalho silencioso, da oração humilde – que leva a inclinarmo-nos sobre o próximo e a elevarmo-nos para Deus. Com efeito, à luz de Nazaré, segundo o Papa,
“A família é lugar de santidade evangélica, realizada nas condições mais comuns. Nela se respira a memória das gerações e mergulham raízes que permitem chegar longe. É lugar do discernimento, onde nos educam a reconhecer o desígnio de Deus acerca da nossa própria vida e a abraçá-lo com confiança. É lugar de gratuidade, de presença discreta, fraterna e solidária, que ensina a sair de si mesmo para acolher o outro, para perdoar e ser perdoados.”
A partir da família assim concebida, o Bispo de Roma ensina a encontrar a espessura duma Igreja que é mãe, capaz de gerar para a vida e cuidadosa em dar continuamente a vida, em acompanhar com dedicação, ternura e força moral”. E assim apresenta outras vertentes da Igreja: a Igreja que é família, que sabe assumir a responsabilidade paterna do guardião próximo e amoroso; a Igreja de filhos “que se reconhecem irmãos, considerando o outro, não “como um fardo, um problema, um custo, uma preocupação ou um risco”, como “um dom, que continua a ser tal mesmo quando percorre estradas diferentes”. E sintetiza:
“A Igreja é casa aberta, alheada de grandezas exteriores, acolhedora no estilo sóbrio dos seus membros e, por isso mesmo, acessível à esperança de paz que existe dentro de cada homem, incluindo os que, provados pela vida, têm o coração ferido e atribulado. Uma Igreja assim pode verdadeiramente iluminar a noite do homem, apontar-lhe credivelmente a meta e compartilhar os seus passos, precisamente porque ela foi a primeira que viveu a experiência de ser incessantemente regenerada no coração misericordioso do Pai.”
É a pequena candeia acesa tornada luz do mundo, por mercê do Deus misericordioso!
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Na homilia na missa de abertura da assembleia sinodal
O Papa comentou as leituras bíblicas do XXVII Domingo do tempo comum, que lhe “parecem escolhidas de propósito para o evento de graça que a Igreja está a viver”, “centradas em três argumentos: o drama da solidão, o amor entre homem-mulher e a família”.
Quanto à solidão, Francisco partindo da solidão do homem do Éden – que só encontrou companhia e ajuda satisfatórias num ser da mesma semente (sui similis), a mulher, e não em qualquer outro dos seres – escalpeliza o drama da solidão da contemporaneidade, concretizado no mundo das pessoas sozinhas ou das fechadas no egoísmo, melancolia, violência destrutiva, escravidão do prazer ou do deus-dinheiro:
“Penso nos idosos abandonados até pelos seus entes queridos e pelos próprios filhos; nos viúvos e nas viúvas; em tantos homens e mulheres, deixados pela sua esposa e pelo seu marido; em muitas pessoas que se sentem realmente sozinhas, não compreendidas nem escutadas; nos migrantes e prófugos que escapam de guerras e perseguições; e em tantos jovens vítimas da cultura do consumismo, do usa e joga fora e da cultura do descarte”.
No respeitante ao amor entre homem e mulher, o Bispo de Roma verifica a tristeza de Deus por ver a solidão do homem e sonhou com a felicidade da sua criatura humana: “vê-la realizada na união de amor entre homem e mulher [não homem e homem ou mulher e mulher]; feliz no caminho comum, fecunda na doação recíproca”. É o sonho-desígnio que Jesus resume no Evangelho:
Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só” (Mc 10,6-8; cf. Gn 1,27; 2,24).
Com efeito, perante a pergunta que Lhe colocaram como uma cilada, para fazê-Lo odioso “à multidão que O seguia e que praticava o divórcio”, considerado inatacável, a resposta do Mestre é franca e inesperada: leva tudo à origem da criação, para ensinar que “Deus abençoa o amor humano, é Ele que une os corações de um homem e de uma mulher que se amam” e ligando-os “na unidade e na indissolubilidade”. Significa assim o objetivo da vida conjugal: para lá de viverem juntos para sempre, devem amar-se para sempre. É esta a ordem originária e originadora. É esta a doutrina do matrimónio.
Relativamente à família, o ensinamento papal, em termos doutrinais, parte do princípio fundador, O que Deus uniu não o separe o homem (Mc 10,9), que se torna “exortação aos crentes para superar toda a forma de individualismo e de legalismo”, escondidos “no egoísmo mesquinho e no medo de aderir ao significado autêntico do casal e da sexualidade humana” em consonância com o projeto de Deus. Segundo o seu projeto, o matrimónio “não é utopia da adolescência”, mas o sonho que liberta a criatura da solidão. Porém, o receio de rumar ao desconhecido “paralisa o coração humano”. E o Papa aponta o paradoxo de quem, ridicularizando o desígnio divino, “continua atraído e fascinado” por todo o amor autêntico, sólido, fecundo, “fiel e perpétuo”; corre atrás de amores temporários, mas sonha com o autêntico; corre por “prazeres carnais”, mas “deseja a doação total”.
Num difícil contexto social que circunda a família e o matrimónio, a Igreja – diz Francisco – “é chamada a viver a sua missão na fidelidade, na verdade e na caridade”, como voz que, na fidelidade ao Mestre, clama no deserto:
“Para defender o amor fiel e encorajar as inúmeras famílias que vivem o seu matrimónio como um espaço onde se manifesta o amor divino; para defender a sacralidade da vida, de toda a vida; para defender a unidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal como sinal da graça de Deus e da capacidade que o homem tem de amar seriamente”.
Porém, esta Igreja, que “é chamada a viver a sua missão na caridade” não julga os outros, mas, na fidelidade à sua índole materna, sente o “dever de procurar e cuidar dos casais feridos com o óleo da aceitação e da misericórdia”. Ensinando e defendendo os valores fundamentais – mas sem esquecer que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado (Mc 2,27) e que, segundo a palavra de Cristo, Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores (Mc 2,17) – esta é uma “Igreja que educa para o amor autêntico, capaz de tirar da solidão, sem esquecer a sua missão de bom samaritano da humanidade ferida”.
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No discurso na aula sinodal
Na esteira da usança de Bento XVI, Francisco usa da palavra na aula sinodal, mas é mais assíduo no acompanhamento dos trabalhos. Assim, na alocução introdutória expôs o sentido do Sínodo como “uma caminhada em conjunto” em espírito “de colegialidade e sinodalidade”, falando cada um com “denodo, zelo pastoral e doutrinal, sabedoria, franqueza e colocando diante dos nossos olhos o bem da Igreja e das famílias e a suprema lei – a salvação das almas”.
E precisa que o Sínodo não é um parlamento ou um senado em que seja necessário chegar a um acordo, mas “uma expressão eclesial”, a da “Igreja que caminha em conjunto para ler a realidade com os olhos da fé e com o coração de Deus”. É a Igreja a refletir sobre a sua fidelidade ao depósito da fé, que não é um museu, mas “uma fonte viva em que a Igreja se dessedenta para ser capaz de saciar e iluminar o depósito da vida”.
Igualmente, o Papa destaca a ação do Espírito Santo no Sínodo, ação que a Igreja experimenta também neste espaço de reflexão:
“No Sínodo, o Espírito fala através da língua de todas as pessoas que se deixam guiar pelo Deus que surpreende sempre, que revela aos pequeninos o que esconde aos sábios e inteligentes, que fez a lei e o sábado para o homem e não vice-versa, que deixa as 99 ovelhas para ir ao encontro da tresmalhada, que está sempre acima das nossas lógicas e cálculos”.
Por isso, vêm ao de cima as atitudes que os Padres sinodais devem assumir para que o Sínodo constitua um espaço da ação do Espírito Santo: a coragem apostólica, a humildade evangélica e a oração confiante.
A coragem apostólica, não nos deixando afastar de Deus, “deve transportar vida e não fazer da nossa vida cristã um museu de recordações”. A humildade evangélica, fazendo-nos despojar dos nossos preconceitos e ideias feitas, leva-nos a escutar os irmãos e a enchermo-nos de Deus, de modo a não julgarmos os outros, mas a estender-lhes a mão para concretizarmos aquilo que vamos descobrindo em conjunto, sem nos sentirmos superiores uns aos outros. E a oração confiante é ação do coração que se abre a Deus, que fala no silêncio. Sem a escuta de Deus, a nossa palavra de pouco servirá: não iluminará nem saciará. Sem a ação do Espírito a guiar-nos, as nossas decisões serão meramente decorativas, que, em vez de evidenciarem o Evangelho, o eclipsam.
O discurso termina com os agradecimentos a todos os padres sinodais e a todos os colaboradores e com a invocação do Espírito Santo e da Sagrada Família.
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É óbvio que Francisco, na fidelidade à doutrina e imbuído da mística da divina misericórdia a espelhar-se na atenção às pessoas e no cuidado e guarda delas, sobretudo às das periferias existenciais, é junto dos homens o paladino da ternura de Deus e junto de Deus a testemunha dos atuais dramas da humanidade. Perante os responsáveis dos destinos dos povos aponta as ideias do poder como serviço e dever, pistas de ação como tarefa urgente; perante os explorados, propõe a consciencialização despertante; diante de todos expõe a doutrina, mas sem julgar as pessoas, pratica o tacto pastoral e induz à sua prática. Faz-me lembrar os Padres Redentoristas, que eram lúcidos e rigorosos nos princípios morais, mas extremamente flexíveis na sua aplicação às pessoas concretas, cujos dramas, sofrimentos, insuficiências e pecados tentavam compreender.
Ora, sem desvalorizar a coexistência das duas vertentes da Incarnação e da Redenção, sempre prefiro a um Cristo morto pela doutrina e seus princípios o Cristo morto e ressuscitado pelas pessoas que não conseguiram cumprir a doutrina. É o objetivo de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância.  
De resto, qual severidade ou quais linhas vermelhas no discurso papal?

2015.10.07 – Louro de Carvalho

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