No rescaldo
da peregrinação internacional de outubro a Fátima e no decurso das celebrações
do 250.º aniversário do nascimento de Bocage, oferece-se-me o ensejo de
apresentar uma faceta menos conhecida da poesia do poeta sadino – a sua
vertente devocional e, sobretudo, mariana.
Em termos
formais, mantém-se integral a estética neoclássica e, em termos das ideias e do
sentimentalismo, sobressai a estética pré-romântica, do lado da exacerbação do ego pessoal e do lado da exaltação do
cristianismo na esteira de François-René de Chateaubriand. E importa que se
deixe de enclausurar exclusivamente o poeta de Setúbal nas malhas do anedotário
ou da vida dissoluta e revoltosa.
Bocage, não
obstante a vida libertina em que se afundou ao longo dos anos, como ele próprio
confessa – “eu aos céus ultrajei” (…); “Outro Aretino fui!... A santidade
Manchei!..” – nunca se afastou da matriz cristã de fé e de vida. Ele mesmo, dirigindo-se a Deus num soneto, o confessa:
“Nunca
impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.”
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.”
Superada,
entretanto, a exacerbação egotista e o “desatino das paixões”, na fase final da
sua breve vida – faleceu com a idade de 40 anos – operou-se nele a muito
marcada metanoia, voltando a uma
vivência cristã entusiasta. O momento de total arrependimento e de propósito firme
de emenda surge em termos testamentários no seguinte soneto, de que já se
respigaram acima segmentos discursivos:
Já Bocage
não sou, à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em
vento.
Eu aos céus
ultrajei, o meu tormento
Leve me
torne sempre a terra dura.
Conheço
agora já quão vã figura
Em prosa e
verso fez meu louco intento.
Musa,
tivera algum merecimento
Se um raio
da razão seguisse pura!
|
Eu me
arrependo: a língua quase fria
Brade em
alto pregão à mocidade
Que atrás
do som fantástico corria:
Outro
Aretino fui!... A santidade manchei!...
Oh, se me
creste, gente impia,
Rasga meus
versos, crê na eternidade!
|
É daquela
fase de vida uma boa vintena de poemas que fazem dele um poeta de notável
religiosidade. A maior parte são sonetos, mas há também pelo menos quatro odes em
honra de Nossa Senhora, além de uma tradução. Longe de poderem ser considerados
qualitativamente inferiores à sua restante produção poética, os poemas de teor
religioso ora fazem afirmações de ordem teológica geral ora refletem a própria
vivência pessoal da fé. Os sonetos, mais próximos desta segunda orientação,
serão porventura mais interessantes pela original atualidade dos temas versados.
Vejam-se alguns títulos:
A existência
de Deus provada pelas obras da criação, Contradições do ateísmo, Hino a Deus,
Confiança na misericórdia divina, O retrato de Deus desfigurado por ministros
embusteiros, Tentativa de suicídio combatida pelas lembranças da Eternidade,
Vendo-se exposto a tribulações imerecidas, Afetos dum coração contrito,
Sentimentos de contrição e arrependimento da vida passada, Ditado entre as
agonias do seu trânsito final, Invocando o amparo de Maria Santíssima, A Paixão
de Jesus Cristo, etc.
A noção de
Deus não é, no poeta, muitas vezes tão evangélica como era de supor. Porém, não
podemos olvidar que o poeta teve uma educação neoclássica, em que a estética
pagã integrava o cânone literário e era mais aparentada com a ideia
veterotestamentária da divindade. Não obstante, parece que o ideário do poeta
ainda supera o da pregação comum do seu tempo. Assim, no Hino a Deus,
nota-se bem o amor e o temor do crente pelo seu Deus, mas não a essência
amorosa de Deus. É mais o Deus dos filósofos – um Ente, Grão Ser ou uma espécie
de Júpiter – ou o típico Deus veterotestamentário que aparece por entre trovões
e coriscos:
Pela voz do trovão corisco intenso
Clama que à Natureza impera um Ente, Que cinge do áureo dia o véu ridente, Que veste da atra noite o manto denso. Pasmar na imensidade é crer o Imenso; Tudo em nós o requer, O adora, O sente; Provam-Te olhos, ouvidos, peito e mente? Númen, eu ouço, eu olho, eu sinto, eu penso! |
Tua ideia, ó Grão-Ser, ó Ser
divino,
Me é vida, se me dão mortal desmaio Males que sofro e males que imagino: Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio; Sempre (até das paixões no desatino) Tua clemência amei, temi Teu raio. |
Todavia,
esta noção de Deus marca vincadamente a diferença em relação à perspetiva
cristã de Deus espelhada nos poemas O retrato de Deus desfigurado por
ministros embusteiros ou Confiança na misericórdia divina, em que o
nosso poeta rejeita o Deus distante das pessoas, o só todo-poderoso, de quem se
ignore a dimensão paternal, como alguns dos oradores sagrados.
Veja-se o
segundo dos mencionados poemas:
Lá quando a Tua voz deu ser ao
nada,
Frágil criaste, ó Deus, a Natureza; Quiseste que aos encantos da beleza
Amorosa paixão fosse ligada:
Às vezes em seus desgostos desmandada, Nos excessos desliza-se a fraqueza; Fingem-Te então com ímpeto e braveza Erguendo contra nós a dextra armada. |
Ó almas sem acordo e sem brandura,
Falsos órgãos do Eterno! Ah!... Profanai-O, Dando-Lhe condição tirana e dura! Trovejai, que eu não tremo e não desmaio; Se um Deus fulmina os erros da ternura, Uma lágrima só Lhe apaga o raio. |
Lá vem a sua
veia pré-romântica a colocar a sua vivência da relação com Deus em confronto
com o pensamento teológico dominante, o que é um louvável atrevimento, mesmo se
às vezes produzido em termos menos aceitáveis, resultantes do seu pendor de
polemista. Esta dimensão mais católica descobre-se sobretudo nos poemas
dedicados a Nossa Senhora e em A Paixão de Jesus Cristo:
O Filho do Grão-Rei, que a
monarquia
Tem lá nos Céus, e que de Si procede, Hoje, mudo e submisso, à fúria cede De um povo, que foi Seu, que à morte O guia. De trevas, de pavor se veste o dia, Inchado, o mar o seu limite excede, Convulsa a terra, por mil bocas pede Vingança de tão nova tirania. |
Sacrílego mortal, que espanto
ordenas,
Que ignoto horror, que lúgubre aparato!... Tu julgas teu Juiz!... Teu Deus condenas! Ah, castigai, Senhor, o mundo ingrato: Caiam-lhe as maldições, chovam-lhe as penas, Também eu morra, que também vos mato. |
***
E já parecia
que estava esquecido o título deste arrazoado reflexivo, mas é de sublinhar que
o mistério mariológico não se entende separado do Deus que endereçou à menina
de Nazaré o convite para se envolver no projeto salvífico da humanidade
tornando-a mãe do Filho de Deus, para O acompanhar desde Nazaré/Belém até
Jerusalém, no Calvário, onde à sombra da Cruz foi entregue como mãe dos
discípulos e, neles, como mãe de todos os homens. E é do Filho de Deus e de
Deus – Grão-Rei, Grão-Ser, o Ente, o Imenso, o Pai, o Amor – que Ela é serva,
testemunha e porta-voz. Todavia, os poemas dedicados expressamente à Virgem Mãe
merecem destaque especial.
Neles, a
imaginação de Elmano Sadino (o seu pseudónimo de árcade) comprazia-se em realidades apocalípticas, de grande
impacto. Por isso, os poemas dedicados a Nossa Senhora eram-lhe particularmente
queridos, pois gosta de A apresentar como a vencedora de Satã, num cenário algo
dantesco. Por exemplo, o “tartáreo monstro” vencido, que no soneto Invocando
o amparo da Virgem Santíssima aparece no terceiro verso, surge sempre nas
três odes À Puríssima Conceição de Nossa Senhora, À Santíssima Virgem a
Senhora da Encarnação e À Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
Diga-se, em abono da verdade, que nos poemas em honra da Virgem Maria,
nunca fica colocada de lado a prerrogativa da sua conceição imaculada.
Assim, à Virgem Imaculada, o nosso vate setecentista dedica três odes. São
composições que, no conjunto da obra de Bocage, nos dão o tom exato em que a
imaginação poética de Bocage converge com a verdade mais simples e profunda da
sua alma e da sua psicologia. Como era previsível, o privilégio de Maria facilmente
se amolda ao mecanismo do complexo de Jonas, já que supõe um abismo de pecado e
um monstro infernal, sobrepujados pela aparição da Mulher coroada de brilhantes
estrelas, na sua trindade de caraterísticas – “mãe, filha e esposa”, respetivamente
do Filho, do Pai e do Espírito – liada na unidade de “mais que tudo amada”.
Nas odes à Imaculada e na ode à Senhora da Encarnação, fica bem patente
o tremendismo do poeta perante as seduções e insídias do mundo, os instintos individuais
exacerbados, a revolta dos elementos da Natureza e os caprichos da fortuna. Mas
ressalta a esperança de que a sua prece seja tida em conta graças à Mãe de
misericórdia e ao Deus, que é trono da mesma misericórdia.
Comecemos
pela leitura do soneto Invocando o amparo de Maria Santíssima:
Tu, por
Deus entre todas escolhida,
Virgem das virgens; Tu, que do assanhado Tartáreo monstro com Teu pé sagrado Esmagaste a cabeça entumecida; Doce abrigo, santíssima guarida De quem Te busca em lágrimas banhado, Corrente com que as nódoas do pecado Lava uma alma que geme arrependida; |
Virgem, de estrelas nítidas
c’roada,
Do Espírito, do Pai, do Filho Eterno, Mãe, Filha, Esposa e, mais que tudo, amada: Valha-me o teu poder e amor materno; Guia este cego, arranca-me da estrada Que vai parar ao tenebroso inferno! |
Aqui, o seu
habitual imaginário hiperbólico quase se anula, numa atitude de simplicidade
filial. Manifesta-se, neste soneto, bem mais sentido que as aludidas odes, a
sua fé e devoção a Maria, recorrendo ao seu “amor materno” para que o
arrancasse do caminho que o poderia arrastar “ao tenebroso inferno”; a tensão
existente entre a fé católica e o ideal racionalista, então em voga; e
sobretudo o conflito entre a vida boémia que levava e o ideal moral que existia
na sua consciência. Trata-se de um texto bem expressivo da sua cultura católica
em que se destaca a importância da Mãe de Deus na vida dos cristãos e dos
homens em geral.
Fica bem realçada a oposição entre Deus e o diabo, entre a
Virgem e o “tartáreo monstro”, a qual, com seu pé virginal, lhe esmagou “a
cabeça entumecida”. Apesar da menção do monstro infernal, o que sobressai é a
Virgem como doce refúgio ou abrigo e guarida santíssima para este Jonas
arrependido de não ter cumprido a sua missão, ora banhado em lágrimas, órfão de
mãe terrena, que fora atraído pelos abismos de amargura.
Evidencia-se a fé no mistério da Santíssima Trindade, com o
qual relaciona a Virgem como Mãe, Filha e Esposa, relação para que utiliza uma
figura de retórica tão do agrado dos poetas barrocos – o quiasmo – que consiste
num cruzamento de vocábulos (atente-se no 1.º
terceto).
A terminologia do soneto integra-se perfeitamente num mundo
semântico de Elmano relacionado com o “locus
horrendus”, conceito dominante nos literatos do Romantismo, nomeadamente
com os termos “inferno”, “tartáreo”, “tenebroso”; e ainda com o do amparo
maternal onde os mortais encontram descanso, como os bebés nos seios das suas
mães: “doce abrigo”, “santíssima guarida”, “amor materno”.
Nas odes, o esquema psicológico tremendista acima aludido repete-se
no texto poético desenvolvido em oitavas heroicas, fazendo lembrar a celebração
da subida do “balão aerostático” do capitão Lunardi, a 24 de agosto de 1794:
sobre a vertigem da queda e da atração do abismo, surge a vitória da luz e das
alturas (vd João Mendes, Literatura
Portuguesa II, Ed. Verbo).
Veja-se como
este dinamismo espiritual em confronto com um mundo hostil se evidencia na ode À
Santíssima Virgem, a Senhora da Encarnação, em que sobressai a inefável ação divina:
Acatamento em si e audácia unindo,
Sobre o jus de imortal firmando os voos, A impávida Razão, celeste eflúvio, Se eleva, se arrebata. Por entre imensa noite e dia imenso (Mercê do condutor, da Fé, que a anima) Sobe de céus em céus, alcança ao longe O grão Princípio dos princípios todos. Além do firmamento, além do espaço Que, por lei suma, franqueara o seio A mundos sem medida, a sóis sem conto, Imóvel trono assoma: De um lado e de outro lado é todo estrelas; Vence ao diamante a consistência, o lume; Absortos cortesãos o incensam curvos, Tem por base e dossel a eternidade. Luz, de reflexos três, inextinguível, Luz, que existe de si, luz de que emanam A natureza, a vida, o fado, a glória, Dali reparte aos entes Altas virtudes, sentimento augusto; Aos entes, que na Terra extraviados, Das rebeldes paixões entre o tumulto Ao grito do remorso param, tremem. Filho do Nada! Um Deus te vê, te escuta! Seus olhos imortais do empíreo cume (Aos teus imensidade, aos d'Ele um ponto) Atentaram teus dias, Teus dias cor da morte, ou cor do Inferno; De alma em alma grassando a peste avita; Hálito de serpente enorme, infesta, Da primeva inocência a flor crestara: Aos dois (como Ele) do Universo origem Diz o Nume em si mesmo: — «O prazo é vindo; Cumpra-se quanto em nós disposto havemos.» Eis o Espírito excelso, Radiosa emanação do Pai, do Filho, Mística pomba de pureza etérea, A Donzela Idumeia inclina os voos, Pousa, bafeja, e diviniza o puro. |
Tu, Verbo, sobrevéns; aérea flama
Com tanta rapidez não sulca o polo! Eis alteado o grau da humanidade; Eis fecunda uma virgem: A redenção começa, o Deus é homem. Da graça, da inocência, oh paz, oh risos, Do Céu vos deslizais, volveis ao mundo! Caí, torres de horror, troféus do Averno! Que estrondo!... Que tropel!... Ao negro abismo Que desesperação revolve o bojo!... Para aqui, para ali por entre Fúrias O sacrílego monstro, O rábido Satã em vão blasfema. Lá quer de novo arremeter ao mundo;
Mas vê rapidamente aferrolhado
O tartáreo portão com chave eterna. Enquanto brama, arqueja, enquanto o fero Morde, remorde as mãos, e a boca horrenda (As espumas veneno, os olhos brasas) Mulher divina exulta; Celestial penhor, que os anjos cantam, Que as estrelas, que o Sol, que os Céus adoram Virgem submissa, mereceu na Terra Circunscrever em Si do Empíreo a glória. Salve, oh! salve, imortal, serena Diva, Do nume oculto incombustível sarça, Rosa de Jericó por Deus disposta! Flor, ante quem se humilham Os cedros de que o Líbano alardeia! Ah, no teu grémio puro amima os votos Aos mortais de que és Mãe: seu pranto enxugue, Seus males abonance um teu sorriso! |
Bocage, apesar
de nascido no século do Iluminismo e de ser contemporâneo de Kant, tinha pouco
de filósofo. Para afirmar a existência de Deus e os mistérios com ela conexos, não
recorre a subtilezas filosóficas; é-lhe suficiente o bom senso transtemporal e
que está no famoso versículo bíblico que declara que “os céus proclamam a glória
de Deus” (cf Sl 19/18,2). Por outro
lado, depois duma vida agitada e afogada no turbilhão das paixões, parece
ansiar pelo sossego e tranquilidade de quem se há de sentir “como criança saciada
ao colo da mãe” (cf Sl 131/130,2).
Uma especial atenção a este filão da sua poesia faz
outra luz sobre o poema em que o poeta, que cortou com o passado libertino,
declara que “viver não soube” mas que terá sabido morrer.
2015.10.14 – Louro de Carvalho
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