terça-feira, 6 de outubro de 2015

A propósito das eleições legislativas no dia de São Francisco

Após o tempo normal de campanha eleitoral, precedido dum longo período de pré-campanha, o povo foi às urnas e expressou a sua vontade política. Como se pode ler a vontade popular ora expressa?
Recordo-me de que, depois das eleições para a Assembleia Constituinte (25 de abril de 1975) e das primeiras eleições para a Assembleia da República (25 de abril de 1976), de que saiu vencedor, sem maioria, o Partido Socialista (PS), logo seguido do Partido Popular Democrático (hoje PSD), alguns comentadores diziam que o povo português, embora não tivesse dito em eleições o que queria, soube dizer muito bem o que não queria.
Desde então, Portugal teve 19 governos constitucionais. Destes, foram minoritários: o 1.º (do PS, presidido por Mário Soares); o 10.º (do PSD, presidido por Cavaco Silva); o 13.º e o 14.º (ambos do PS, presididos por António Guterres); e o 18.º (do PS, presidido por José Sócrates). Foram de iniciativa presidencial: o 3.º (presidido por Nobre da Costa e cujo programa não passou no Parlamento); o 4.º (presidido por Mota Pinto); e o 5.º (presidido por Lourdes Pintasilgo, cujo programa passou no Parlamento, com a prévia condição de o Parlamento vir a ser dissolvido e o governo ter de preparar eleições). Foram maioritários: o 2.º (do PS e CDS, presidido por Mário Soares); o 6.º (da AD – aliança democrática – presidido por Sá Carneiro, a seguir a eleições intercalares, em 1979, que completou a I legislatura); o 7.º e o 8.º (da AD, presididos por Pinto Balsemão); o 9.º (do PS e PSD, bloco central em coligação pós-eleitoral, presidido por Mário Soares); o 11.º e o 12.º (do PSD, presidido por Cavaco); o 15.º e o 16.º (do PSD e do CDS, de coligação pós-eleitoral, presididos respetivamente por Durão Barroso e por Santana Lopes); o 17.º (do PS, presidido por José Sócrates); e o 19.º (do PSD e do CDS, de coligação pós-eleitoral, presidido por Passos Coelho).
Perfizeram a legislatura para cujo horizonte foram formados: dois governos maioritários do PSD (o 11.º e o 12.º); um governo maioritário do PS (o 17.º); um governo maioritário de uma coligação pós-eleitoral (o 19.º); e um governo minoritário do PS (o 13.º).
O problema da durabilidade dos governos prende-se com a capacidade de negociação ou não do líder e dos anticorpos que se criem dentro do governo ou no Parlamento. Assim, governo maioritário de um só partido sempre levou a legislatura a seu termo; só um governo minoritário cumpriu integralmente a legislatura respetiva; nenhum governo maioritário de coligação pré-eleitoral ou pós-eleitoral levou a legislatura até ao fim, exceto o 19.º, porém, não sem ter passado pela crise política de meados de 2013. Os governos de coligação, com exceção do 6.º (que fora formado para o horizonte de um ano para terminar legislatura, mercê das primeiras e únicas eleições intercalares), que ruíram, ruíram por divergências internas.
Entretanto, no passado dia 4 de outubro, verificaram-se factos inéditos: pela primeira vez uma coligação pós-eleitoral formou um governo de legislatura, não só completa, mas prolongada por, pelo menos, quatro meses; e, pela primeira vez, uma coligação pré-eleitoral ganha as eleições sem maioria.
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Porque ganhou as eleições a coligação constituída pelo PSD e pelo CDS a partir da experiência governativa conjunta e apesar do quadriénio de ataque aos bolsos, de asfixia social e económica, dos cortes brutais, por várias vias, nos orçamentos familiares, sociais, empresariais e públicos e das trapalhadas várias com membros do Governo e com altos escalões da Administração?
Como boas razões, apresenta-se a folga relaxante dos últimos meses das notícias douradas pela máquina governativa e satélites, ao nível dos números do desemprego, dos sinais de retoma da economia e das promessas de melhoria, que, a par do adormecimento geral, foram criando a ideia na opinião pública de que o caminho seguido fora o único possível. Por outro lado, o que se passou com a Grécia fez mossa na opinião pública; e o tratamento desigual dado pela Comunicação Social, no alinhamento com a vontade governativa, aos indiciados e/ou arguidos ligados à oposição e aos ligados à governança atual.
Do lado da máquina eleitoral da coligação, parece que tudo foi estudado minuciosamente. O Governo aprestou-se a escrutinar as iniciativas socialistas; espreitou o momento oportuno para firmar o acordo de coligação, a que também deu jeito a manutenção do calendário eleitoral persistentemente firmada pelo Presidente da República; apresentou bastante tarde um programa eleitoral de muitas páginas, mas o seu discurso era o da remissão para o Pacto de Estabilidade apresentado à Comissão Europeia; tentou resolver à última da hora, via máquina governativa, alguns dossiês pendentes e prometeu a resolução rápida de outros, mesmo com a adversidade dos lesados do BES ou a da concorrência da UBER; dispôs da palavra oportuna da Comissão Europeia; procedeu ao protelamento da publicação de alguns relatórios cujos dados seriam interessantes para a campanha eleitoral; e sobretudo fez uma campanha eleitoral profissional, tirando partido das virtualidades próprias de cada um dos líderes partidários que conduziam a coligação – campanha a que não faltou o abusivo conforto do crucifixo, a cantoria do “amigos para sempre” e o rebatismo do Cavaquistão para Passistão ou Pafistão (o distrito de Viseu).
No atinente às oposições, assistiu-se a vários fenómenos. Desde logo a pulverização partidária, que alguns saudaram como forte vitalidade da democracia, mas que se esfumou como flor de feno. Depois, cresceu a tendência para a bipolarização em torno do PSD e CDS, que se julgava terem as eleições perdidas, e o PS não refeito do trauma da governação de 2005 a 2011.
Constituída a coligação PaF (Portugal à Frente), quando os sinais de retoma, ainda tímidos, pareciam estar consolidados, os seus mentores e agentes deram tudo por tudo. Começaram a fingir de morto político, mas a contra-atacar oportunamente, passaram a farpar o adversário maior e a desacreditá-lo. Este, por seu turno, que perdera imenso tempo na resolução da crise interna partidária, olvidando a oposição à política governativa, ainda tinha como prioridade a Câmara da capital e espetou-se nas taxas e taxinhas. Subvalorizou o adversário, geriu mal o caso Sócrates, remetendo-o teimosamente para a esfera exclusiva da justiça e insistiu em querer gerar anacronicamente a partilha da paternidade da vinda da troika. Rodeou-se o líder de pessoas válidas, mas de outro tempo, incluindo uma que acaloradamente disse a plenos pulmões no Parlamento que a sua política não era outra senão a de 2011. O programa, embora embases ditas sólidas, andou de estudo macroeconómico, passando por linhas gerais, a programa eleitoral definitivo, com explicações sucessivas que pouco explicavam. Tarde e a más horas, o líder assumiu corretamente a herança governativa do seu partido e se demarcou do período mais negro da sua governança. Depois, na indefinição de apoio a uma candidatura presidencial concreta, foi bombardeado pelo anúncio de uma candidatura presidencial de tendência.
O líder do PS não esclareceu as questões relacionadas com a Segurança Social, aceitando quase pacificamente a teoria do plafonamento vertical contra plafonamento horizontal da PaF e declarou intempestivamente a inviabilização de um governo minoritário e a não aprovação do 1.º Orçamento do Estado, para depois aceitar governar de acordo com os resultados eleitorais.
O PS pediu a maioria absoluta ou clara para travar a atual política governativa; a coligação pedia o mesmo para que tudo não voltasse ao caos de 2011.
Puseram-se hipóteses curiosas sobre resultados eleitorais: escolha de primeiro-ministro de acordo com o inúmero de votos em detrimento do número de mandatos na Assembleia da República; e convite para formar o governo a líder de partido que tenha perdido as eleições, mas cujo partido tenha mais deputados que o maior partido da coligação. Leram-se de forma inusitada o art.º 187.º da CRP e o art.º 22.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República.
E os partidos da pretensa bipolarização bem apelaram ao voto útil, mas a CDU persistiu na fixação fidelizada dos seus eleitores e o BE cresceu, ao invés do que era expectável, partilhando a capitalização do descontentamento com a abstenção, a maior de sempre em eleições legislativas. Todavia, diga-se que a abstenção não se deve ao mau tempo, pois, às 16 horas do dia das eleições o índice de votos entrados nas urnas era significativamente maior que o entrado até à mesma hora do dia homólogo de 2011
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E agora?
A PaF venceu as eleições sem maioria parlamentar para garantir, só por si, um governo estável e duradouro; o PS não tem mais mandatos que o PSD na Assembleia da República; o PAN conseguiu a eleição de um deputado; a CDU mantém grosso modo a sua posição usual; e o BE, não só recuperou da estagnação em que se ia afundando como cresceu largamente em mandatos.
Os resultados eleitorais ditaram uma maioria – PaF e PS – alinhada com o respeito pelos compromissos internacionais, nomeadamente a participação na NATO e na CPLP e a fidelidade ao Pacto de Estabilidade junto da UE. Porém, os resultados também apontam para uma clara maioria aritmética de esquerda. E, se é difícil um entendimento da direita com o PS, também o é, por razões de postura ideológico-pragmática, o do PS com os partidos à sua esquerda. Ademais, BE e CDU declararam inviabilizar o programa do Governo originário da coligação de direita, mas, após as declarações de Costa na noite eleitoral sobre a índole responsável do seu partido, que o leva a não alinhar com uma maioria negativa de obstaculização de governo sem dispor de uma alternativa concreta, os mesmos, apesar das diferenças, instigam agora o PS a apresentar uma alternativa de Governo – não se sabe com que contrapartidas.
Ora, como o Presidente não pode dissolver a Assembleia da República até ao mês de abril, parece que os peritos em política exigem os mínimos: viabilização do programa de governo e viabilização do seu 1.º Orçamento do Estado. Depois, se verá… Brinca-se com o mecanismo de devolver a responsabilidade ao povo!
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Por seu turno, o Presidente da República (PR), que tudo tinha pensado e que tudo repensou no dia da República, fez uma interessante comunicação ao país, mas eivada de limitação desnecessária. Com efeito, considerando os resultados eleitorais, em que nenhuma força política obteve maioria absoluta de mandatos na Assembleia da República, encarregou Passos Coelho de diligenciar na avaliação das possibilidades de constituir uma solução estável que assegure a governabilidade do País. Ora, pergunto-me se o PR experimentará outra via, se esta falhar.
O próximo Governo deverá, segundo o PR, garantir aos portugueses “que respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos cidadãos”. Refere-se à maioria PaF + PS! E o PR pormenoriza estes compromissos: as obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de defesa coletiva, como a NATO, e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro; o aprofundamento da relação transatlântica; e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados de expressão portuguesa, mormente a CPLP.
Do passado, recorda o memorando de entendimento; do presente, destaca a saída da troika e o regresso aos mercados; do futuro espera uma trajetória sustentável de crescimento da economia e da criação de emprego, que permita a eliminação dos sacrifícios exigidos aos portugueses e o combate às situações de pobreza. Porém, mete o Rossio na Betesga quando pretende articular os objetivos internos com o cumprimento literal das indiscutíveis regras europeias de disciplina orçamental, como alegadamente sucede com os outros Estados do Euro. E diz seraficamente:
“Será necessário assegurar a sustentabilidade da dívida pública, o equilíbrio das contas externas, a redução do endividamento para com o estrangeiro e a competitividade da nossa economia. Importa, pois, criar as condições políticas que permitam melhorar o bem-estar do nosso povo e reforçar a credibilidade externa do País.”
Tendo razão ao chamar a atenção para o respeito pelas escolhas portuguesas, consubstanciado no dever de formar um governo estável e duradouro, era dispensável recordar que, “até ao mês de abril do próximo ano, o Presidente da República não dispõe da faculdade de dissolver o Parlamento” (como se fosse desejável alguma vez a vingançazita de obrigar já o povo a novas eleições), bem como, alinhando na onda, limitar-se a clamar por um governo que entre em funções e que seja aprovado o Orçamento de Estado para 2016. É manifestamente pouco este minimalismo para um Presidente com o poder de influência e com um papel mediador e moderador.
Tem razão ao remeter para “os partidos políticos que elegeram deputados à Assembleia da República” o ónus de “revelar abertura para um compromisso que, com sentido de responsabilidade, assegure uma solução governativa consistente”. Todavia, não lhe fica bem, sob a capa de não poder “substituir-se aos partidos no processo de formação do governo”, dizer pura e simplesmente que não o fará. Que fará então, se for necessário?
Se Portugal “enfrenta complexos desafios que importa ter bem presente”, todas as forças e agentes políticos (e o Presidente também o é) devem atender à necessidade que o país tem, “neste momento da nossa história, de um governo com solidez e estabilidade”, uma vez que este é efetivamente o “tempo do compromisso”: o País tem efetivamente à sua frente “um novo ciclo político, em que a cultura do diálogo e da negociação deve estar sempre presente”. Importa que o governo de minoria tudo faça para governar com eficácia e evite a autovitimização!
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Escusamos de temer. O ministro das Finanças da Alemanha, embora quisesse mais um pouquito, acha que Portugal fez boa escolha, porque a Europa tem razão (?!). E a Fitch não vê alteração no percurso económico do país: estamos longe de 2011. Porém, todos temos de procurar criar no país um ambiente de franca respiração pluriforme que a todos dê bem-estar.

2015.10.06 – Louro de Carvalho

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