Após
o tempo normal de campanha eleitoral, precedido dum longo período de
pré-campanha, o povo foi às urnas e expressou a sua vontade política. Como se
pode ler a vontade popular ora expressa?
Recordo-me
de que, depois das eleições para a Assembleia Constituinte (25
de abril de 1975) e
das primeiras eleições para a Assembleia da República (25
de abril de 1976),
de que saiu vencedor, sem maioria, o Partido Socialista (PS), logo seguido do Partido
Popular Democrático (hoje PSD), alguns comentadores diziam que o povo português,
embora não tivesse dito em eleições o que queria, soube dizer muito bem o que
não queria.
Desde
então, Portugal teve 19 governos constitucionais. Destes, foram minoritários: o
1.º (do
PS, presidido por Mário Soares);
o 10.º (do
PSD, presidido por Cavaco Silva);
o 13.º e o 14.º (ambos do PS, presididos por António
Guterres); e o 18.º
(do
PS, presidido por José Sócrates).
Foram de iniciativa presidencial: o 3.º (presidido por Nobre da
Costa e cujo programa não passou no Parlamento); o 4.º (presidido por Mota
Pinto); e o 5.º (presidido
por Lourdes Pintasilgo, cujo programa passou no Parlamento, com a prévia
condição de o Parlamento vir a ser dissolvido e o governo ter de preparar
eleições). Foram maioritários:
o 2.º (do
PS e CDS, presidido por Mário Soares);
o 6.º (da
AD – aliança democrática – presidido por Sá Carneiro, a seguir a eleições
intercalares, em 1979, que completou a I legislatura); o 7.º e o 8.º (da
AD, presididos por Pinto Balsemão);
o 9.º (do
PS e PSD, bloco central em coligação pós-eleitoral, presidido por Mário Soares); o 11.º e o 12.º (do
PSD, presidido por Cavaco);
o 15.º e o 16.º (do PSD e do CDS, de coligação
pós-eleitoral, presididos respetivamente por Durão Barroso e por Santana Lopes); o 17.º (do
PS, presidido por José Sócrates);
e o 19.º (do PSD e do CDS, de coligação pós-eleitoral,
presidido por Passos Coelho).
Perfizeram
a legislatura para cujo horizonte foram formados: dois governos maioritários do
PSD (o
11.º e o 12.º); um
governo maioritário do PS (o 17.º); um governo maioritário de uma
coligação pós-eleitoral (o 19.º); e um governo minoritário do PS (o
13.º).
O
problema da durabilidade dos governos prende-se com a capacidade de negociação
ou não do líder e dos anticorpos que se criem dentro do governo ou no
Parlamento. Assim, governo maioritário de um só partido sempre levou a
legislatura a seu termo; só um governo minoritário cumpriu integralmente a
legislatura respetiva; nenhum governo maioritário de coligação pré-eleitoral ou
pós-eleitoral levou a legislatura até ao fim, exceto o 19.º, porém, não sem ter
passado pela crise política de meados de 2013. Os governos de coligação, com
exceção do 6.º (que fora formado para o horizonte de um
ano para terminar legislatura, mercê das primeiras e únicas eleições
intercalares), que
ruíram, ruíram por divergências internas.
Entretanto,
no passado dia 4 de outubro, verificaram-se factos inéditos: pela primeira vez
uma coligação pós-eleitoral formou um governo de legislatura, não só completa,
mas prolongada por, pelo menos, quatro meses; e, pela primeira vez, uma
coligação pré-eleitoral ganha as eleições sem maioria.
***
Porque
ganhou as eleições a coligação constituída pelo PSD e pelo CDS a partir da
experiência governativa conjunta e apesar do quadriénio de ataque aos bolsos,
de asfixia social e económica, dos cortes brutais, por várias vias, nos
orçamentos familiares, sociais, empresariais e públicos e das trapalhadas
várias com membros do Governo e com altos escalões da Administração?
Como
boas razões, apresenta-se a folga relaxante dos últimos meses das notícias
douradas pela máquina governativa e satélites, ao nível dos números do desemprego, dos sinais de retoma da economia e das promessas de melhoria, que, a
par do adormecimento geral, foram criando a ideia na opinião pública de que o
caminho seguido fora o único possível. Por outro lado, o que se passou com a
Grécia fez mossa na opinião pública; e o tratamento desigual dado pela
Comunicação Social, no alinhamento com a vontade governativa, aos indiciados
e/ou arguidos ligados à oposição e aos ligados à governança atual.
Do
lado da máquina eleitoral da coligação, parece que tudo foi estudado
minuciosamente. O Governo aprestou-se a escrutinar as iniciativas socialistas;
espreitou o momento oportuno para firmar o acordo de coligação, a que também
deu jeito a manutenção do calendário eleitoral persistentemente firmada pelo
Presidente da República; apresentou bastante tarde um programa eleitoral de
muitas páginas, mas o seu discurso era o da remissão para o Pacto de
Estabilidade apresentado à Comissão Europeia; tentou resolver à última da hora,
via máquina governativa, alguns dossiês pendentes e prometeu a resolução rápida
de outros, mesmo com a adversidade dos lesados do BES ou a da concorrência da
UBER; dispôs da palavra oportuna da Comissão Europeia; procedeu ao protelamento
da publicação de alguns relatórios cujos dados seriam interessantes para a
campanha eleitoral; e sobretudo fez uma campanha eleitoral profissional,
tirando partido das virtualidades próprias de cada um dos líderes partidários
que conduziam a coligação – campanha a que não faltou o abusivo conforto do
crucifixo, a cantoria do “amigos para sempre” e o rebatismo do Cavaquistão para
Passistão ou Pafistão (o distrito de Viseu).
No
atinente às oposições, assistiu-se a vários fenómenos. Desde logo a
pulverização partidária, que alguns saudaram como forte vitalidade da
democracia, mas que se esfumou como flor de feno. Depois, cresceu a tendência
para a bipolarização em torno do PSD e CDS, que se julgava terem as eleições
perdidas, e o PS não refeito do trauma da governação de 2005 a 2011.
Constituída
a coligação PaF (Portugal à Frente), quando os sinais de retoma,
ainda tímidos, pareciam estar consolidados, os seus mentores e agentes deram
tudo por tudo. Começaram a fingir de morto político, mas a contra-atacar
oportunamente, passaram a farpar o adversário maior e a desacreditá-lo. Este,
por seu turno, que perdera imenso tempo na resolução da crise interna
partidária, olvidando a oposição à política governativa, ainda tinha como
prioridade a Câmara da capital e espetou-se nas taxas e taxinhas. Subvalorizou
o adversário, geriu mal o caso Sócrates,
remetendo-o teimosamente para a esfera exclusiva da justiça e insistiu em
querer gerar anacronicamente a partilha da paternidade da vinda da troika.
Rodeou-se o líder de pessoas válidas, mas de outro tempo, incluindo uma que
acaloradamente disse a plenos pulmões no Parlamento que a sua política não era
outra senão a de 2011. O programa, embora embases ditas sólidas, andou de
estudo macroeconómico, passando por linhas gerais, a programa eleitoral
definitivo, com explicações sucessivas que pouco explicavam. Tarde e a más
horas, o líder assumiu corretamente a herança governativa do seu partido e se
demarcou do período mais negro da sua governança. Depois, na indefinição de
apoio a uma candidatura presidencial concreta, foi bombardeado pelo anúncio de
uma candidatura presidencial de tendência.
O
líder do PS não esclareceu as questões relacionadas com a Segurança Social,
aceitando quase pacificamente a teoria do plafonamento vertical contra plafonamento
horizontal da PaF e declarou intempestivamente a inviabilização de um governo minoritário
e a não aprovação do 1.º Orçamento do Estado, para depois aceitar governar de
acordo com os resultados eleitorais.
O
PS pediu a maioria absoluta ou clara para travar a atual política governativa; a
coligação pedia o mesmo para que tudo não voltasse ao caos de 2011.
Puseram-se
hipóteses curiosas sobre resultados eleitorais: escolha de primeiro-ministro de
acordo com o inúmero de votos em detrimento do número de mandatos na Assembleia
da República; e convite para formar o governo a líder de partido que tenha
perdido as eleições, mas cujo partido tenha mais deputados que o maior partido
da coligação. Leram-se de forma inusitada o art.º 187.º da CRP e o art.º 22.º
da Lei Eleitoral para a Assembleia da República.
E
os partidos da pretensa bipolarização bem apelaram ao voto útil, mas a CDU
persistiu na fixação fidelizada dos seus eleitores e o BE cresceu, ao invés do
que era expectável, partilhando a capitalização do descontentamento com a
abstenção, a maior de sempre em eleições legislativas. Todavia, diga-se que a
abstenção não se deve ao mau tempo, pois, às 16 horas do dia das eleições o
índice de votos entrados nas urnas era significativamente maior que o entrado
até à mesma hora do dia homólogo de 2011
***
E
agora?
A
PaF venceu as eleições sem maioria parlamentar para garantir, só por si, um governo
estável e duradouro; o PS não tem mais mandatos que o PSD na Assembleia da
República; o PAN conseguiu a eleição de um deputado; a CDU mantém grosso modo a sua posição usual; e o BE,
não só recuperou da estagnação em que se ia afundando como cresceu largamente em
mandatos.
Os
resultados eleitorais ditaram uma maioria – PaF e PS – alinhada com o respeito
pelos compromissos internacionais, nomeadamente a participação na NATO e na
CPLP e a fidelidade ao Pacto de Estabilidade junto da UE. Porém, os resultados
também apontam para uma clara maioria aritmética de esquerda. E, se é difícil
um entendimento da direita com o PS, também o é, por razões de postura ideológico-pragmática,
o do PS com os partidos à sua esquerda. Ademais, BE e CDU declararam
inviabilizar o programa do Governo originário da coligação de direita, mas,
após as declarações de Costa na noite eleitoral sobre a índole responsável do
seu partido, que o leva a não alinhar com uma maioria negativa de obstaculização
de governo sem dispor de uma alternativa concreta, os mesmos, apesar das diferenças,
instigam agora o PS a apresentar uma alternativa de Governo – não se sabe com
que contrapartidas.
Ora,
como o Presidente não pode dissolver a Assembleia da República até ao mês de abril,
parece que os peritos em política exigem os mínimos: viabilização do programa de
governo e viabilização do seu 1.º Orçamento do Estado. Depois, se verá…
Brinca-se com o mecanismo de devolver a responsabilidade ao povo!
***
Por
seu turno, o Presidente da República (PR), que tudo tinha pensado e que tudo
repensou no dia da República, fez uma interessante comunicação ao país, mas
eivada de limitação desnecessária. Com efeito, considerando os resultados eleitorais,
em que nenhuma força política obteve maioria absoluta de mandatos na Assembleia
da República, encarregou Passos Coelho de diligenciar na avaliação das
possibilidades de constituir uma solução estável que assegure a governabilidade
do País. Ora, pergunto-me se o PR experimentará outra via, se esta falhar.
O próximo Governo
deverá, segundo o PR, garantir aos portugueses “que respeitará os compromissos
internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes
opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime
democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos cidadãos”.
Refere-se à maioria PaF + PS! E o PR pormenoriza estes compromissos: as
obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de
defesa coletiva, como a NATO, e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro;
o aprofundamento da relação transatlântica; e o desenvolvimento dos laços
privilegiados com os Estados de expressão portuguesa, mormente a CPLP.
Do passado,
recorda o memorando de entendimento; do presente, destaca a saída da troika e o
regresso aos mercados; do futuro espera uma trajetória sustentável de
crescimento da economia e da criação de emprego, que permita a eliminação dos
sacrifícios exigidos aos portugueses e o combate às situações de pobreza. Porém,
mete o Rossio na Betesga quando
pretende articular os objetivos internos com o cumprimento literal das indiscutíveis
regras europeias de disciplina orçamental, como alegadamente sucede com os
outros Estados do Euro. E diz seraficamente:
“Será necessário assegurar a
sustentabilidade da dívida pública, o equilíbrio das contas externas, a redução
do endividamento para com o estrangeiro e a competitividade da nossa economia. Importa,
pois, criar as condições políticas que permitam melhorar o bem-estar do nosso
povo e reforçar a credibilidade externa do País.”
Tendo razão ao
chamar a atenção para o respeito pelas escolhas portuguesas, consubstanciado no
dever de formar um governo estável e duradouro, era dispensável recordar que, “até
ao mês de abril do próximo ano, o Presidente da República não dispõe da
faculdade de dissolver o Parlamento” (como se fosse desejável alguma vez a vingançazita de obrigar
já o povo a novas eleições), bem como, alinhando na onda, limitar-se a clamar por um governo que
entre em funções e que seja aprovado o Orçamento de Estado para 2016. É manifestamente
pouco este minimalismo para um Presidente com o poder de influência e com um papel
mediador e moderador.
Tem razão ao
remeter para “os partidos políticos que elegeram deputados à Assembleia da
República” o ónus de “revelar abertura para um compromisso que, com sentido de
responsabilidade, assegure uma solução governativa consistente”. Todavia, não lhe
fica bem, sob a capa de não poder “substituir-se aos partidos no processo de
formação do governo”, dizer pura e simplesmente que não o fará. Que fará então,
se for necessário?
Se Portugal “enfrenta
complexos desafios que importa ter bem presente”, todas as forças e agentes
políticos (e o
Presidente também o é)
devem atender à necessidade que o país tem, “neste momento da nossa história,
de um governo com solidez e estabilidade”, uma vez que este é efetivamente o “tempo
do compromisso”: o País tem efetivamente à sua frente “um novo ciclo político,
em que a cultura do diálogo e da negociação deve estar sempre presente”. Importa
que o governo de minoria tudo faça para governar com eficácia e evite a
autovitimização!
***
Escusamos
de temer. O ministro das Finanças da Alemanha, embora quisesse mais um
pouquito, acha que Portugal fez boa escolha, porque a Europa tem razão (?!). E
a Fitch não vê alteração no percurso
económico do país: estamos longe de 2011. Porém, todos temos de procurar criar
no país um ambiente de franca respiração pluriforme que a todos dê bem-estar.
2015.10.06 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário