quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Similitude de exigências dos Chefes de Estado à governança

Passado que foi o dia das eleições legislativas – 4 de outubro – está o país dependurado da decisão de Cavaco Silva no atinente à indigitação do primeiro-ministro. Alguns estranham a demora alegando que já se passaram muitos dias (18).
A este respeito o JN de hoje, 22 de outubro, vem avivar a memória de quantos estão esquecidos desta realidade, de que nenhum governo constitucional se formou em menos de 15 dias, contados a partir da data das eleições. António Guterres gastou 15 dias para formar o seu primeiro governo minoritário; Passos Coelho gastou 16 dias para negociar uma coligação pós-eleitoral e apresentar governo; e Durão Barroso gastou 20 dias. Os demais levaram mais de 20 dias, tendo o 1.º (de Mário Soares) levado 89 dias.
As razões desta necessidade de tempo são várias.
Entre a data da eleição e a publicação dos resultados oficiais medeiam vários dias, uma vez que os votos dos emigrantes são conhecidos mais tarde – situação que já devia ter sido ultrapassada, dadas as condições de maior facilidade e eficiência de comunicações hoje existentes. Para mais, este ano, registaram-se dificuldades inéditas com os sobrescritos que haviam de conter os votos recolhidos nos consulados para ulterior remessa à entidade escrutinadora (uma série deles nem mencionava o destino “Portugal”), a que se seguiu uma impugnação do lado do partido Nós Cidadãos, prontamente dirimida pelo Tribunal Constitucional.
Depois, pode ocorrer a necessidade de remarcar a eleição nalgumas assembleias de voto por motivo de boicote ou de outras circunstâncias anómalas – o que desta vez não sucedeu.
Sucede que, muitas vezes, a correlação de forças na Assembleia da República resultante da conversão dos votos em mandatos obriga ou recomenda contactos e negociações, nem sempre fáceis. Todavia, o Governo de Sá Carneiro, apoiado por uma maioria governamental construída por uma coligação (AD – PSD+CDS+PPM) que concorreu às eleições, demorou 32 dias a formar-se; e o I Governo Constitucional demorou 89 dias, porque entre a data das eleições, a 25 de abril de 1976, e a nomeação e posse do Governo, a 23 de julho, ocorreu a eleição de Ramalho Eanes, a 27 de junho, tendo a sua posse ocorrido, em cerimónia agendada para o efeito, perante a Assembleia da República, a 14 de julho. E entendeu-se que, no âmbito do pacto Partidos-MFA, o Governo deveria ser nomeado e empossado pelo Presidente eleito nos termos da Constituição e não pelo que fora designado pela Junta de Salvação Nacional e se mantinha em funções.
Por outro lado, apesar de o artigo 187.º da CRP não criar dificuldades acrescidas – já que refletir nos resultados eleitorais e ouvir os partidos não exige mais que dois ou três dias – os nossos Presidentes da República criaram um modus faciendi que origina, à partida, mais demora: primeiro, indigitam como primeiro-ministro o líder do partido mais votado, que estabelece contactos sem limite de tempo; e, só depois, de este apresentar o seu elenco governativo, pelo menos a nível dos ministros, é que o Primeiro-Ministro indigitado é nomeado formalmente juntamente com os detentores das diversas pastas e, ato contínuo, tomam posse, sendo esta a data que vale.
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Entretanto, estas eleições trouxeram novidades curiosas: uma coligação pré-eleitoral ganhou as eleições, mas sem maioria absoluta de votos e de mandatos; o líder do maior partido perdedor (que ganhara as inéditas eleições primárias para candidato a primeiro-ministro, contrariando a ideia constitucional de que os eleitores elegem deputados e não ministros nem primeiros-ministros) apressou-se a declarar que o seu partido, responsável como é, não alinharia numa maioria negativa para travar um governo minoritário da coligação sem que se desenhasse uma alternativa estável e duradoura de governo; e, por seu turno, os dois partidos à esquerda garantiram que, no cumprimento da palavra prometida ao eleitorado, apresentariam moção de rejeição ao programa de governo minoritário que fosse apresentado ao Parlamento.
Ora, o Presidente, em vez de começar por analisar os resultados e eleitorais (talvez porque já estava de posse antecipada dos possíveis cenários pós-eleitorais), após o seu dia de reflexão “republicana” (que o levou a faltar às cerimónias evocativas da proclamação da República – já acontecera mais vezes, mas só este ano é que se deu conta), resolveu encarregar (não indigitou) Passos Coelho de avaliar as possibilidades de apresentar uma proposta de governo estável e coerente.
Embora discutível a ordem cronológica das diligências presidenciais, seria de tolerar no seguimento da tese por muitos defendida de que quem ganha deve ficar com o ónus da governação – tese defensável, embora não única, porque não imposta constitucionalmente. Porém, o Presidente foi mais longe e resolveu definir condições – as ditas linhas vermelhas:
O Governo a empossar pelo Presidente da República deverá dar aos portugueses garantias firmes de que respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos cidadãos.
Em particular, exige-se a observância das obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de defesa coletiva, como a NATO, e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro, assim como o aprofundamento da relação transatlântica e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados de expressão portuguesa, nomeadamente no âmbito da CPLP.
Se o Presidente se ficasse pelo primeiro parágrafo, poderia entender-se que o Chefe de Estado estaria a enunciar princípios orientadores consensuais. Porém, ao particularizar os elementos do segundo parágrafo e ao parecer declarar que eles foram sufragados pela esmagadora maioria dos cidadãos nestas eleições, alguns despertaram e descobriram: o eleitorado não elegeu o primeiro-ministro, mas os deputados; o Presidente quis deixar fora da tarefa governativa PCP (Partido Comunista Português) e BE (Bloco de Esquerda), que usualmente defendem a saída da NATO e do EURO; e a Assembleia da República agora dispõe de uma maioria de esquerda (pela primeira vez disposta a negociar uma alternativa de governo) cujo denominador comum é a antiausteridade, pelo menos nos termos em que vem sendo praticada.
Perante estas condições consideradas por muitos como novidade, Passos Coelho não quis ser “Passos Costa” e, em vez de um contacto exploratório com o PS, preferiu acertar um acordo de governança com o seu parceiro de coligação, antes que a coligação fosse dada por extinta à luz do art.º 22.º da lei eleitoral. E o PS fez ou aceitou pontes com BE e PCP, vindo todos os partidos à esquerda e seus simpatizantes a garantir uma maioria estável e duradoura que possibilite uma alternativa de governo liderado pelo PS, faltando até há pouco tempo acertar os termos.
A quem aponta como óbice as linhas programáticas de BE e PCP antiNATO, anti-EURO e de aposta na renegociação da dívida, respondem, que mais do que sustentar algumas linhas programáticas, importa um acordo de governação que impeça a direita de governar continuando a linha de austeridade que vinha seguindo e impondo. Porém, o PS coafirma o mesmo propósito, ao mesmo tempo que assegura o cumprimento dos tratados.
E as negociações, já extemporâneas, entre PS e coligação não correram bem e as culpas foram atribuídas mutuamente: a coligação tardou a dizer os pontos onde poderia ceder, alegando que era o outro negociador que devia tomar a iniciativa de propor; e o PS entendia que era o PSD que devia propor. O PS fez contraproposta que a coligação não aceitou. E, após críticas mútuas, Passos acabou por convidar Costa a integrar o Governo de coligação, o que não foi aceite.
Ouvidos os partidos políticos pelo Presidente da República, Passos Coelho afirmou confiar na decisão do Presidente; Costa referiu que tinha apresentado ao Presidente uma alternativa estável e duradoura de governo; Portas atira-se contra as ambições do líder do PS; BE, PEV e PCP afirmam a existência de uma alternativa à esquerda com o PS; e PAN espera uma decisão correta do Presidente.
No entanto, há uma dificuldade: o PS não está unido em torno do projeto de Costa. Muitos alegam que uma aliança à esquerda não respeita a tradição socialdemocrata do partido; outros não creem na sinceridade do BE e do PCP; e outros ainda afirmam que os eleitores que deram o voto ao PS não lhe confiaram mandato para coligações ou acordos com o BE e com o PCP, dizendo que o PCP está a ceder unicamente por receio de ser ultrapassado pelo BE. Por sua vez, os opositores da alternativa de governo à esquerda, na convicção de que o PS será absorvido pela esquerda radical, propõem a viabilização do governo da coligação através da não aprovação de moção de rejeição do programa do governo e das abstenções violentas aos orçamentos.
Esperava-se, pois, a decisão intrépida do Presidente, que disse não se substituir aos partidos. Depois, vem a posição dos partidos. Se, por exemplo, 10 deputados do PS faltarem às sessões respetivas ou se se abstiverem na aprovação de moção de rejeição do programa de governo ou na aprovação de orçamento, pode se viabilizado um governo da coligação ou inviabilizado um governo da maioria de esquerda.
E Cavaco falou hoje, repetiu-se em relação a 6 de outubro e indigitou Passos como primeiro-ministro, passando o ónus, não à Assembleia da Republica, mas aos deputados, a quem compete em consciência (parecendo incitar à quebra da disciplina partidária), de viabilizar o programa de governo que o primeiro-ministro apresentar 10 dias após a nomeação. Mas, contradizendo seus propósitos e abonando-se com a sua postura de 2009, indigitou o líder de um governo, à partida, minoritário. E, por outro lado, disparou em várias direções, não crendo na sinceridade dos partidos à esquerda do PS e lamentando a incapacidade de os partidos europeístas chegarem a um entendimento. No entanto, indigitou. E o indigitado, também objeto de lamentação, aceitou.
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Não é nova a postura de um Presidente a fazer exigências a um elenco governativo, no contexto deste nosso regime semipresidencial em que a vertente parlamentar é não raro subalternizada, mesmo sublinhando o papel preponderante dos partidos em democracia representativa.
Jorge Sampaio secundou a posse do XVI Governo Constitucional, de Santana Lopes, por uma garantia, pessoal e presidencial de permanente vigilância do novo governo. Presumia-se, ao tempo, que fosse uma vigilância especialmente acrescida relativamente àquela que decorre das obrigações normais do seu cargo. O principal aviso que o Presidente fez então ao futuro Executivo (repetido explicitamente na cerimónia da posse) e que foi um dos fundamentos da sua decisão foi que ele deveria respeitar “rigorosamente” o programa político sufragado nas eleições legislativas de 2002 (Quem havia de dizer Cavaco igual a Sampaio!), em particular nos domínios “da Europa, política externa, defesa, justiça e consolidação orçamental”.
Apenas Carlos Carvalhas mostrou coerência ao criticar a decisão presidencial declarando-se indignado por o presidente aduzir como razão as necessidades de contenção orçamental que, segundo ele, haviam sido repudiadas nas urnas, nas eleições europeias. Foi o único que soube assumir coerentemente as suas ideias e a sua opção económica diferente. O próprio Sampaio veio a declarar, mais tarde, que “há vida para além do orçamento”.
Também se diz que Sampaio exercera a sua magistratura de influência ao impedir que Portas então fosse nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros, alegadamente mercê do seu ainda não consolidado europeísmo. Por outro lado, diz-se que o mesmo Presidente forçara a demissão de Pina Moura e de Manuela Arcanjo das pastas que sobraçavam no consulado de Guterres.
Já Ramalho Eanes impusera a Mário Soares para a formação do II Governo Constitucional, em resultado da queda do anterior minoritário, a formação parlamentar de uma maioria estável e coerente. Daqui resultou a coligação PS/CDS, de curta duração.
E que acontecia no regime presidencial, em que as decisões do Chefe de Estado eram totalmente independentes de quaisquer votações da Assembleia Nacional (vd art.º 78.º da CPAN de 1933), e ele tinha poder de nomear e demitir o Presidente do Conselho e os ministros e de dar à Assembleia Nacional poderes constituintes (vd art.º 81.º da CPAN de 1933) quando imperiosamente o bem público o exigir (vd art.º 134.º da CPAN de 1933)?
Como todos sabemos, os poderes presidenciais deslocavam-se prática e invariavelmente para a personalidade do Presidente do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro), que tinha o arrojo de controlar toda a política do país e os diversos órgãos de soberania e os órgãos da administração pública, ainda que a CPAN (Constituição Política e Administrativa da Nação), de 1933, garantisse a separação de poderes.
Não obstante, consta que Óscar Carmona terá dito a Salazar que governasse segundo o seu sábio critério, mas não fazendo caso dos grupos instalados e de suas ambições, ou seja, aconselhando reserva quanto às corporações e à instituição militar.
Por seu turno, Américo Thomaz, quando queria fazer a sua postura junto de Salazar, sobretudo nas questões atinentes à Marinha, argumentava que, se assim não fosse, teriam de encontrar outra pessoa para exercer as funções de Chefe de Estado. E, quando designou Marcello Caetano para suceder a Salazar, vinculou-o inexoravelmente à política ultramarina.
E Marcello Caetano, com o objectivo de se consolidar no poder e ampliar a base de apoio, aproveitou as eleições de outubro de 1969 para auscultar a população sobre a questão colonial. Por outro lado, as eleições tinham o escopo e o propósito de garantir-lhe os apoios necessários, a nível interno, reforçando a sua imagem ante os seus pares da ditadura e legitimando a sua autoridade face à oposição democrática e, a nível internacional, desanuviando o clima hostil a Portugal, cada vez mais visível nos fóruns internacionais.
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Assim se leem os factos, se interpretam os poderes, se condiciona a história se limitam as esperanças. 

2015.10.22 – Louro de Carvalho

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