Passado que
foi o dia das eleições legislativas – 4 de outubro – está o país dependurado da
decisão de Cavaco Silva no atinente à indigitação do primeiro-ministro. Alguns
estranham a demora alegando que já se passaram muitos dias (18).
A este
respeito o JN de hoje, 22 de outubro, vem avivar a memória de quantos estão
esquecidos desta realidade, de que nenhum governo constitucional se formou em
menos de 15 dias, contados a partir da data das eleições. António Guterres
gastou 15 dias para formar o seu primeiro governo minoritário; Passos Coelho
gastou 16 dias para negociar uma coligação pós-eleitoral e apresentar governo;
e Durão Barroso gastou 20 dias. Os demais levaram mais de 20 dias, tendo o 1.º
(de Mário Soares) levado 89 dias.
As razões
desta necessidade de tempo são várias.
Entre a data
da eleição e a publicação dos resultados oficiais medeiam vários dias, uma vez
que os votos dos emigrantes são conhecidos mais tarde – situação que já devia
ter sido ultrapassada, dadas as condições de maior facilidade e eficiência de
comunicações hoje existentes. Para mais, este ano, registaram-se dificuldades
inéditas com os sobrescritos que haviam de conter os votos recolhidos nos
consulados para ulterior remessa à entidade escrutinadora (uma série deles nem mencionava o
destino “Portugal”), a
que se seguiu uma impugnação do lado do partido Nós Cidadãos, prontamente dirimida pelo Tribunal Constitucional.
Depois, pode
ocorrer a necessidade de remarcar a eleição nalgumas assembleias de voto por
motivo de boicote ou de outras circunstâncias anómalas – o que desta vez não
sucedeu.
Sucede que,
muitas vezes, a correlação de forças na Assembleia da República resultante da
conversão dos votos em mandatos obriga ou recomenda contactos e negociações,
nem sempre fáceis. Todavia, o Governo de Sá Carneiro, apoiado por uma maioria
governamental construída por uma coligação (AD – PSD+CDS+PPM) que concorreu às eleições, demorou 32 dias a formar-se; e o
I Governo Constitucional demorou 89 dias, porque entre a data das eleições, a
25 de abril de 1976, e a nomeação e posse do Governo, a 23 de julho, ocorreu a
eleição de Ramalho Eanes, a 27 de junho, tendo a sua posse ocorrido, em
cerimónia agendada para o efeito, perante a Assembleia da República, a 14 de
julho. E entendeu-se que, no âmbito do pacto Partidos-MFA, o Governo deveria
ser nomeado e empossado pelo Presidente eleito nos termos da Constituição e não
pelo que fora designado pela Junta de Salvação Nacional e se mantinha em funções.
Por outro
lado, apesar de o artigo 187.º da CRP não criar dificuldades acrescidas – já
que refletir nos resultados eleitorais e ouvir os partidos não exige mais que
dois ou três dias – os nossos Presidentes da República criaram um modus faciendi que origina, à partida,
mais demora: primeiro, indigitam como primeiro-ministro o líder do partido mais
votado, que estabelece contactos sem limite de tempo; e, só depois, de este
apresentar o seu elenco governativo, pelo menos a nível dos ministros, é que o Primeiro-Ministro
indigitado é nomeado formalmente juntamente com os detentores das diversas
pastas e, ato contínuo, tomam posse, sendo esta a data que vale.
***
Entretanto, estas
eleições trouxeram novidades curiosas: uma coligação pré-eleitoral ganhou as
eleições, mas sem maioria absoluta de votos e de mandatos; o líder do maior
partido perdedor (que
ganhara as inéditas eleições primárias para candidato a primeiro-ministro,
contrariando a ideia constitucional de que os eleitores elegem deputados e não
ministros nem primeiros-ministros) apressou-se a declarar que o seu partido, responsável como
é, não alinharia numa maioria negativa para travar um governo minoritário da
coligação sem que se desenhasse uma alternativa estável e duradoura de governo;
e, por seu turno, os dois partidos à esquerda garantiram que, no cumprimento da
palavra prometida ao eleitorado, apresentariam moção de rejeição ao programa de
governo minoritário que fosse apresentado ao Parlamento.
Ora, o
Presidente, em vez de começar por analisar os resultados e eleitorais (talvez porque já estava de posse
antecipada dos possíveis cenários pós-eleitorais), após o seu dia de reflexão “republicana” (que o levou a faltar às cerimónias
evocativas da proclamação da República – já acontecera mais vezes, mas só este
ano é que se deu conta),
resolveu encarregar (não indigitou) Passos Coelho de avaliar as possibilidades de apresentar uma
proposta de governo estável e coerente.
Embora
discutível a ordem cronológica das diligências presidenciais, seria de tolerar
no seguimento da tese por muitos defendida de que quem ganha deve ficar com o
ónus da governação – tese defensável, embora não única, porque não imposta
constitucionalmente. Porém, o Presidente foi mais longe e resolveu definir
condições – as ditas linhas vermelhas:
O Governo a empossar pelo Presidente
da República deverá dar aos portugueses garantias firmes de que respeitará os
compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as
grandes opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime
democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos
cidadãos.
Em particular, exige-se a observância
das obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de
defesa coletiva, como a NATO, e da
adesão plena à União Europeia e à Zona Euro, assim como o aprofundamento
da relação transatlântica e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados de expressão portuguesa,
nomeadamente no âmbito da CPLP.
Se o
Presidente se ficasse pelo primeiro parágrafo, poderia entender-se que o Chefe
de Estado estaria a enunciar princípios orientadores consensuais. Porém, ao
particularizar os elementos do segundo parágrafo e ao parecer declarar que eles
foram sufragados pela esmagadora maioria dos cidadãos nestas eleições, alguns
despertaram e descobriram: o eleitorado não elegeu o primeiro-ministro, mas os
deputados; o Presidente quis deixar fora da tarefa governativa PCP (Partido Comunista Português) e BE (Bloco de Esquerda), que usualmente defendem a saída da
NATO e do EURO; e a Assembleia da República agora dispõe de uma maioria de
esquerda (pela primeira
vez disposta a negociar uma alternativa de governo) cujo denominador comum é a antiausteridade,
pelo menos nos termos em que vem sendo praticada.
Perante estas
condições consideradas por muitos como novidade, Passos Coelho não quis ser
“Passos Costa” e, em vez de um contacto exploratório com o PS, preferiu acertar
um acordo de governança com o seu parceiro de coligação, antes que a coligação
fosse dada por extinta à luz do art.º 22.º da lei eleitoral. E o PS fez ou
aceitou pontes com BE e PCP, vindo todos os partidos à esquerda e seus
simpatizantes a garantir uma maioria estável e duradoura que possibilite uma
alternativa de governo liderado pelo PS, faltando até há pouco tempo acertar os
termos.
A quem aponta
como óbice as linhas programáticas de BE e PCP antiNATO, anti-EURO e de aposta
na renegociação da dívida, respondem, que mais do que sustentar algumas linhas
programáticas, importa um acordo de governação que impeça a direita de governar
continuando a linha de austeridade que vinha seguindo e impondo. Porém, o PS
coafirma o mesmo propósito, ao mesmo tempo que assegura o cumprimento dos
tratados.
E as
negociações, já extemporâneas, entre PS e coligação não correram bem e as
culpas foram atribuídas mutuamente: a coligação tardou a dizer os pontos onde
poderia ceder, alegando que era o outro negociador que devia tomar a iniciativa
de propor; e o PS entendia que era o PSD que devia propor. O PS fez
contraproposta que a coligação não aceitou. E, após críticas mútuas, Passos
acabou por convidar Costa a integrar o Governo de coligação, o que não foi
aceite.
Ouvidos os
partidos políticos pelo Presidente da República, Passos Coelho afirmou confiar
na decisão do Presidente; Costa referiu que tinha apresentado ao Presidente uma
alternativa estável e duradoura de governo; Portas atira-se contra as ambições
do líder do PS; BE, PEV e PCP afirmam a existência de uma alternativa à
esquerda com o PS; e PAN espera uma decisão correta do Presidente.
No entanto,
há uma dificuldade: o PS não está unido em torno do projeto de Costa. Muitos
alegam que uma aliança à esquerda não respeita a tradição socialdemocrata do
partido; outros não creem na sinceridade do BE e do PCP; e outros ainda afirmam
que os eleitores que deram o voto ao PS não lhe confiaram mandato para
coligações ou acordos com o BE e com o PCP, dizendo que o PCP está a ceder
unicamente por receio de ser ultrapassado pelo BE. Por sua vez, os opositores
da alternativa de governo à esquerda, na convicção de que o PS será absorvido
pela esquerda radical, propõem a viabilização do governo da coligação através
da não aprovação de moção de rejeição do programa do governo e das abstenções
violentas aos orçamentos.
Esperava-se,
pois, a decisão intrépida do Presidente, que disse não se substituir aos
partidos. Depois, vem a posição dos partidos. Se, por exemplo, 10 deputados do
PS faltarem às sessões respetivas ou se se abstiverem na aprovação de moção de
rejeição do programa de governo ou na aprovação de orçamento, pode se
viabilizado um governo da coligação ou inviabilizado um governo da maioria de
esquerda.
E Cavaco
falou hoje, repetiu-se em relação a 6 de outubro e indigitou Passos como
primeiro-ministro, passando o ónus, não à Assembleia da Republica, mas aos
deputados, a quem compete em consciência (parecendo incitar à quebra da disciplina partidária), de viabilizar o programa de
governo que o primeiro-ministro apresentar 10 dias após a nomeação. Mas,
contradizendo seus propósitos e abonando-se com a sua postura de 2009,
indigitou o líder de um governo, à partida, minoritário. E, por outro lado,
disparou em várias direções, não crendo na sinceridade dos partidos à esquerda
do PS e lamentando a incapacidade de os partidos europeístas chegarem a um
entendimento. No entanto, indigitou. E o indigitado, também objeto de
lamentação, aceitou.
***
Não é nova a
postura de um Presidente a fazer exigências a um elenco governativo, no
contexto deste nosso regime semipresidencial em que a vertente parlamentar é
não raro subalternizada, mesmo sublinhando o papel preponderante dos partidos
em democracia representativa.
Jorge Sampaio
secundou a posse do XVI Governo Constitucional, de Santana Lopes, por uma garantia, pessoal e presidencial de permanente vigilância
do novo governo. Presumia-se, ao tempo, que fosse uma vigilância especialmente
acrescida relativamente àquela que decorre das obrigações normais do seu cargo.
O principal aviso que o Presidente fez então ao
futuro Executivo (repetido explicitamente na cerimónia da posse) e que foi um dos
fundamentos da sua decisão foi que ele deveria respeitar “rigorosamente” o
programa político sufragado nas eleições legislativas de 2002 (Quem havia de dizer Cavaco
igual a Sampaio!), em particular nos domínios “da Europa, política
externa, defesa, justiça e consolidação orçamental”.
Apenas Carlos Carvalhas mostrou coerência ao criticar a decisão
presidencial declarando-se indignado por o presidente aduzir como razão as
necessidades de contenção orçamental que, segundo ele, haviam sido repudiadas
nas urnas, nas eleições europeias. Foi o único que soube assumir coerentemente
as suas ideias e a sua opção económica diferente. O próprio Sampaio veio a
declarar, mais tarde, que “há vida para além do orçamento”.
Também se diz que Sampaio exercera a sua magistratura de influência ao
impedir que Portas então fosse nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros,
alegadamente mercê do seu ainda não consolidado europeísmo. Por outro lado, diz-se
que o mesmo Presidente forçara a demissão de Pina Moura e de Manuela Arcanjo
das pastas que sobraçavam no consulado de Guterres.
Já Ramalho Eanes impusera a Mário Soares para a formação do II Governo
Constitucional, em resultado da queda do anterior minoritário, a formação
parlamentar de uma maioria estável e coerente. Daqui resultou a coligação
PS/CDS, de curta duração.
E que acontecia no regime presidencial, em que as decisões do Chefe de
Estado eram totalmente independentes de quaisquer votações da Assembleia
Nacional (vd
art.º 78.º da CPAN de 1933), e ele tinha poder de nomear e demitir o Presidente do
Conselho e os ministros e de dar à Assembleia Nacional poderes constituintes (vd art.º 81.º da CPAN
de 1933)
quando imperiosamente o bem público o exigir (vd art.º 134.º da CPAN de 1933)?
Como todos sabemos, os poderes presidenciais deslocavam-se prática e
invariavelmente para a personalidade do Presidente do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro), que tinha o
arrojo de controlar toda a política do país e os diversos órgãos de soberania e
os órgãos da administração pública, ainda que a CPAN (Constituição
Política e Administrativa da Nação), de 1933, garantisse a separação de
poderes.
Não obstante, consta que Óscar Carmona terá dito a Salazar que
governasse segundo o seu sábio critério, mas não fazendo caso dos grupos
instalados e de suas ambições, ou seja, aconselhando reserva quanto às
corporações e à instituição militar.
Por seu turno, Américo Thomaz, quando queria fazer a sua postura junto
de Salazar, sobretudo nas questões atinentes à Marinha, argumentava que, se
assim não fosse, teriam de encontrar outra pessoa para exercer as funções de
Chefe de Estado. E, quando designou Marcello Caetano para suceder a Salazar,
vinculou-o inexoravelmente à política ultramarina.
E Marcello Caetano, com o objectivo
de se consolidar no poder e ampliar a base de apoio, aproveitou as eleições de
outubro de 1969 para auscultar a população sobre a questão colonial. Por outro
lado, as eleições tinham o escopo e o propósito de garantir-lhe os apoios
necessários, a nível interno, reforçando a sua imagem ante os seus pares da
ditadura e legitimando a sua autoridade face à oposição democrática e, a nível internacional,
desanuviando o clima hostil a Portugal, cada vez mais visível nos fóruns
internacionais.
***
Assim se leem os factos, se interpretam os poderes, se condiciona a
história se limitam as esperanças.
2015.10.22
– Louro de Carvalho
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