De acordo com informação
constante em trabalho jornalístico de Salvatore
Cemuzio no site zenit.org – o
mundo visto de Roma, do passado dia 19 de outubro, será publicado em Itália,
amanhã, dia 22, o livro Le cattedre dei non credenti (As cátedras dos não crentes). Trata-se
da primeira obra completa do jesuíta companheiro do Papa Francisco e antigo
arcebispo de Milão, organizada por Virgínio
Pontiggia e editada pela Editora Bompiani.
A obra recolhe os discursos da “Cátedra dos não crentes”, iniciativa começada
em 1987 e que testemunha o compromisso de Carlo Martini com o diálogo.
A publicação é prefaciada pelo Papa e o texto do
prefácio foi pré-publicado, no passado dia 19, em exclusivo no Corriere dela Sera.
Sobre a personalidade do cardeal arcebispo de Milão,
Francisco declara que “o cardeal
Martini não teve medo dos protestos e incentivou a Igreja em saída”; e sobre a obra do purpurado, entende que “a
herança que nos deixou o cardeal Martini é um dom precioso”.
Lembrando que também na Argentina muitos fizeram “os
Exercícios Espirituais com os seus textos”, explicita que “a sua vida, as suas obras e as suas
palavras infundiram esperança e apoiaram muitas pessoas em seus caminhos de
busca”.
Sabendo que o pensamento e a ação do arcebispo de
Milão não conheciam fronteiras, o Pontífice reconhece nas preocupações do
Pastor milanês os muitos “homens e mulheres de diferentes crenças, não só em
âmbito cristão”, que “encontraram e continuam a encontrar coragem e luz nas
suas reflexões”. E infere a “responsabilidade” que temos em valorizar este
“património”, de modo que “ainda possa hoje alimentar percursos de crescimento
e suscitar uma autêntica paixão pelo cuidado do mundo”.
***
Mas quem foi o cardeal Carlo Maria Martini?
Nasceu em Turim, a 15 de fevereiro de 1927, e faleceu
em Gallarate, a 31 de agosto de
2012,com a idade de 85 anos.
Tendo ingressado
na Companhia de Jesus a 25 de setembro de 1944, fez o noviciado em Cuneo;
estudou na Faculdade de Filosofia Aloisianum, em Gallarate,
Milão; na Faculdade Teológica de Chieri, Turim; na Pontifícia Universidade Gregoriana,
de Roma, onde fez o doutoramento em teologia fundamental com a tese “Il
problema storico della Risurrezione negli studi recenti”; e, depois, no Pontifício Instituto
Bíblico, de Roma. Entretanto,
recebeu a ordenação de presbítero a 13 de julho de 1952, em Chieri. Depois, de 1954 a 1958, prosseguiu os estudos em Roma, após o que se tornou membro da
Faculdade Teológica de Chieri. Emitiu
votos perpétuos em 2 de fevereiro de 1962
e continuou a estudar em Roma, de 1962 a 1964, onde passou a trabalhar
pastoralmente como sacerdote jesuíta.
Foi membro da faculdade e decano do Pontifício Instituto Bíblico, tendo sido
nomeado seu reitor a 29 de setembro de 1969.
Pregador, em 1978, dos exercícios espirituais de
Quaresma no Vaticano, a convite de Paulo VI, foi nomeado reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana a 18 de julho de 1978 e foi o único
católico a integrar o Comité Ecuménico para a edição grega do Novo Testamento.
Eleito arcebispo de Milão em 29 de dezembro de 1979, recebeu a ordenação
episcopal em 6 de janeiro de 1980, no Vaticano,
das mãos do Papa João Paulo II,
que o nomeou membro da Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos, de 1980 a 1983, mandato que se foi renovando
sucessivamente até 1998. Foi criado cardeal-presbítero de Santa Cecília, em 2 de fevereiro de 1983, dia em que
recebeu o barrete cardinalício.
Enquanto
cardeal e arcebispo, participou na VI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos,
de que foi relator, de 29 de setembro a
28 de outubro de 1983; na II Assembleia Extraordinária do Sínodo dos
Bispos, de 24 de novembro a 8 de
dezembro de 1985; e na VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de 1 a 30 de outubro de 1987. Foi enviado
especial do Papa à celebração do I centenário da evangelização de Zâmbia, de 29 de agosto a 2 de setembro de 1991.
Depois, participou na I Assembleia Especial para a Europa do Sínodo dos Bispos,
de 28 de novembro a 14 de dezembro de 1991; assistiu à IV Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano, em Santo
Domingo, na República Dominicana, de 12
a 28 de outubro de 1982; participou na IX Assembleia Ordinária do Sínodo
dos Bispos, de 2 a 29 de outubro de 1994; participou na II Assembleia Especial
para a Europa do Sínodo dos Bispos, de 1
a 23 de outubro de 1999; e, entre 1987 e 1993, foi presidente do CCEE (Conselho das Conferências Episcopais
Europeias).
Em 2002, passou a arcebispo
emérito de Milão por haver atingido a idade de 75 anos e retirou-se para
Jerusalém. Por causa da doença de
Parkinson voltou, definitivamente, para a Itália em 2008. Em 2 de junho de 2012, recebeu a visita do Papa Bento XVI, de
visita pastoral em Milão e a participar
no VII Encontro Mundial das Famílias. Dele fora amigo e conselheiro especial,
nomeadamente face aos “lobos” existentes na Cúria Romana. Por ocasião do
seu falecimento, a Rádio Vaticano recordou aquele último encontro entre Bento
XVI e o “amigo jesuíta”, referindo que, na reunião, em privado, numa das salas
do palácio do arcebispado, o cardeal Martini admitiu que se vive “um momento
muito difícil para a Igreja”, mas encontrou
forças para encorajar o Papa a “carregar a pesada Cruz deste difícil momento”.
Em 30 de agosto de 2012 o cardeal Angelo
Scola, arcebispo de Milão anunciou
que D. Carlo fora internado num hospital por causa da doença de que sofria e
pediu orações para si. Faleceu em Gallarate no
dia 31 de agosto de 2012.
***
Entre as iniciativas que levou a cabo na arquidiocese de
Milão destacam-se: a Escola da Palavra,
para aproximar os leigos da Bíblia, com vista a uma lectio divina contínua e global com a actio (concretizando
o agir que deriva da escuta da Palavra), na linha da Constituição conciliar Dei Verbum, sobre a Divina Revelação; os Exercícios noturnos bíblicos, em torno da leitura de textos
bíblicos durante 6 noites consecutivas; e a ‘Cátedra dos não crentes’, uma série de encontros para pessoas “em
busca da verdade”, que tem, em certo sentido, continuidade no Átrio do Gentios, iniciativa do
Pontifício Conselho para a Cultura.
Foi autor de
vários livros sobre temas bíblicos e de espiritualidade, para além da obra Em Que Crê Quem Não Crê? – Um colóquio,
através de cartas, com o autor e intelectual italiano Umberto Eco.
Em novembro de 2007, lançou juntamente com o Padre Georg Sporschill o
livro Diálogos Noturnos em Jerusalém,
que discute, em forma de entrevista, os temas mais relevantes da atualidade da
fé, os desafios de chegar aos jovens e as suas pertinente questões no mundo conturbado
de hoje.
Sobre Paulo
VI (e Martini parece ser o homem que melhor entendeu aquele
Pontífice tanto nas suas visões e rasgos mais proféticos como nas suas
hesitações) escreveu
o livro Paolo VI “uomo spirituale” (Istituto Paolo VI – Edizioni Studium,
Brescia-Roma, 2008).
A última obra assinada pelo cardeal, Il Vescovo (o
bispo), deixa como
conselho aos responsáveis pelas dioceses a aposta “na formação interior, no
gosto e no fascínio pela Sagrada Escritura”, apresentando as “motivações
positivas” do “agir segundo o Evangelho”.
Recebeu o prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais no
dia 27 de outubro de 2000.
***
Voltando ao prefácio de Le cattedre dei non credenti, Francisco não economiza elogios a
Martini. Em particular, o Papa salienta três aspetos ou dimensões relevantes da
figura do insigne biblista e exegeta: sinodalidade,
diálogo e Palavra de Deus. Dificilmente, estas vertentes da eclesialidade
se entenderão em separado, o que se faz apenas por razões metodológicas.
No atinente
à sinodalidade
Empenhou-se em “promover e acompanhar na comunidade
eclesial o estilo de sinodalidade tão desejado pelo Concílio Vaticano II”, que
requer “uma atitude de escuta e de discernimento”, a par do “cuidado para que
as diferenças não degenerem em conflito destrutivo”.
Bergoglio sublinha que o cardeal não temeu as “tensões”
e as “disputas”, que “necessariamente todo o impulso profético traz consigo”.
Tanto assim foi que o seu lema episcopal era pro veritate adversa diligere. Em observância a este lema, “sempre
procurou neutralizar a carga destrutiva e, com sensibilidade e carinho com a
Igreja, transformá-la em ocasiões importantes de um processo de mudança e de
crescimento na comunhão”. E face a situações de oposição, “sempre evitou a
contraposição, que não leva a nenhuma solução, pensando de forma criativa em
termos alternativos”. Porém, nunca o cardeal se deixou arrastar pelas “modas ou
pesquisas sociológicas”, sendo apenas norteado por “uma única questão de fundo:
de que forma Jesus Cristo, vivo na
Igreja, é, hoje, fonte de esperança?”. Paralelamente estava profundamente “consciente
da presença na Igreja de tantas sensibilidades diferentes de acordo com
contextos culturais, que não podem ser integrados sem um livre e humilde
debate”. Com efeito, Martini entendia que precisava dum “instrumento de
confronto universal”, porque “quando se procura a vontade de Deus sempre
existem pontos de vista diferentes e é necessário procurar espaços para ouvir o
Espírito Santo e permitir-lhes operar em profundidade”. E com este “estilo” pastoral
e espiritual o pastor “não procurou envolver apenas “os membros da comunidade
eclesial”, mas também “aqueles que na comunidade dos fiéis não eram
reconhecidos imediatamente”.
Quanto
ao diálogo
Uma outra
caraterística relevante da sua personalidade é ter efetivamente incentivado “o
olhar além dos confins consolidados, favorecendo uma Igreja missionária ‘em
saída’ e não fechada sobre si mesma” – o que introduziu na prática pastoral um “modo
novo de dialogar com o mundo contemporâneo, que foi a Cátedra dos não crentes”, iniciativa nascida da convicção de “que
todos, crentes e não crentes, estamos em busca da verdade e não podemos
desprezar nada”.
Também, no
seu realismo agudo, o Papa assegura que “todo o crente carrega consigo a ameaça
da não crença e todo o não crente carrega dentro de si a semente da fé”,
situando-se o ponto de encontro na “disponibilidade de refletir sobre questões
que nos unem a todos”. Assim, nunca Martini “deixou de ser um cristão que se interrogava
com honestidade sobre a própria fé, na consciência de que isso não impedia,
antes reforçava, o seu ministério de bispo chamado a apascentar o rebanho que
lhe foi confiado”.
Na convicção
de que é grande “a fecundidade da contribuição que as comunidades cristãs podem
dar à sociedade civil hoje”, o cardeal testemunhou que “os princípios da fé,
longe de serem motivo de guerra e de contraposição na convivência civil, podem
e devem ser vivíveis e desejáveis também pelos demais”. Assim, o convite à
proximidade caraterizou, segundo o Papa, o seu magistério e “ressoou com força
e eficácia dentro da sociedade civil e no mundo da política”, para lá dos
limites da cidade e da arquidiocese de Milão.
E
em relação à Palavra de Deus
E aqui
reside a terceira dimensão da personalidade do biblista purpurado. Afirma o
Papa Francisco que a “familiaridade” do cardeal com a Palavra de Deus era tal
que “se unia ao talento pastoral de saber comunicá-la a todos, crentes e
leigos, intelectuais e pessoas simples”.
A atenção
constante do arcebispo ambrosiano ao tesouro da Escritura – segundo Francisco –
faz com que os seus discursos não possam ser encarados como “considerações
motivadas pelo bom senso ou por teorias políticas”, mas como expressão de “toda
a riqueza da tradição conseguindo interpelar cada pessoa e cada povo”. Por
isso, esboçou “percursos para ligar a Palavra à vida”, para que a Palavra
pudesse tornar-se “agente de conversão, alimentando uma vida mais fraterna e
mais justa, impedindo fugir para a sombra de cómodas seguranças pré-confecionadas”.
Neste
âmbito, o Papa releva a iniciativa da “Escola
da Palavra”, promovida pelo cardeal na sua arquidiocese, mas difundida também
em outros países. Criava – escreve Francisco – “ocasiões de leitura sapiencial
da vida” que permitiram que muitas pessoas, especialmente das camadas jovens, “desfrutassem
a novidade permanente que surge a partir da leitura do texto bíblico”.
Obviamente
que o Papa jesuíta não podia deixar de perceber como com esta abordagem o
cardeal Martini valorizou de forma “original” a espiritualidade da Companhia de
Jesus, usando quanto bastasse a pedagogia inaciana, especialmente a dos exercícios espirituais, “para envolver
na oração todas as dimensões da pessoa, incluindo a corporeidade e a afetividade”.
No entanto,
apesar de estas três vertentes ou dimensões sintetizarem a figura pastoral de
Martini, o Papa não infere daí que esgotem a atualidade daquela personalidade.
Nesse sentido, Pontífice reconhece com gratidão o trabalho de quantos se dedicam
a “reunir, ordenar e colocar em disposição de forma orgânica a grande
quantidade de discursos e de escritos do cardeal Martini, situando-o no
contexto histórico e nas circunstâncias em que foram elaborados”.
A partir da
leitura desta obra completa, Francisco espera também que ela possa constituir
“um constante convite para refletir juntos no modo em que estamos construindo o
futuro do nosso planeta e procurar caminhos compartilhados de libertação e de
esperança”; e que possa servir “de grande ajuda no nosso mundo tão marcado por
forças divisionistas e desumanizantes para inspirar uma vida mais rica de
sentido e uma convivência mais fraterna”.
***
Faz bem ler ou reler “E a Palavra faz-se vida”, de Carlo
Maria Martini, in Guia para ler a Bíblia,Vários
autores, coleção “Ler a Bíblia”, Ed. São Paulo,1997
Então, um brinde por “As
Cátedras dos não crentes”, por Martini e por Francisco!
2015.10.21
– Louro de Carvalho
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