quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Em torno da publicação de “As cátedras dos não crentes”

De acordo com informação constante em trabalho jornalístico de Salvatore Cemuzio no site zenit.org – o mundo visto de Roma, do passado dia 19 de outubro, será publicado em Itália, amanhã, dia 22, o livro Le cattedre dei non credenti (As cátedras dos não crentes). Trata-se da primeira obra completa do jesuíta companheiro do Papa Francisco e antigo arcebispo de Milão, organizada por Virgínio Pontiggia e editada pela Editora Bompiani. A obra recolhe os discursos da “Cátedra dos não crentes”, iniciativa começada em 1987 e que testemunha o compromisso de Carlo Martini com o diálogo.
A publicação é prefaciada pelo Papa e o texto do prefácio foi pré-publicado, no passado dia 19, em exclusivo no Corriere dela Sera.
Sobre a personalidade do cardeal arcebispo de Milão, Francisco declara que “o cardeal Martini não teve medo dos protestos e incentivou a Igreja em saída”; e sobre a obra do purpurado, entende que “a herança que nos deixou o cardeal Martini é um dom precioso”.
Lembrando que também na Argentina muitos fizeram “os Exercícios Espirituais com os seus textos”, explicita que “a sua vida, as suas obras e as suas palavras infundiram esperança e apoiaram muitas pessoas em seus caminhos de busca”.  
Sabendo que o pensamento e a ação do arcebispo de Milão não conheciam fronteiras, o Pontífice reconhece nas preocupações do Pastor milanês os muitos “homens e mulheres de diferentes crenças, não só em âmbito cristão”, que “encontraram e continuam a encontrar coragem e luz nas suas reflexões”. E infere a “responsabilidade” que temos em valorizar este “património”, de modo que “ainda possa hoje alimentar percursos de crescimento e suscitar uma autêntica paixão pelo cuidado do mundo”.
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Mas quem foi o cardeal Carlo Maria Martini?
Nasceu em Turim, a 15 de fevereiro de 1927, e faleceu em Gallarate, a 31 de agosto de 2012,com a idade de 85 anos.
Tendo ingressado na Companhia de Jesus a 25 de setembro de 1944, fez o noviciado em Cuneo; estudou na Faculdade de Filosofia Aloisianum, em Gallarate, Milão; na Faculdade Teológica de Chieri, Turim; na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, onde fez o doutoramento em teologia fundamental com a tese “Il problema storico della Risurrezione negli studi recenti”; e, depois, no Pontifício Instituto Bíblico, de Roma. Entretanto, recebeu a ordenação de presbítero a 13 de julho de 1952, em Chieri. Depois, de 1954 a 1958, prosseguiu os estudos em  Roma, após o que se tornou membro da Faculdade Teológica de Chieri. Emitiu votos perpétuos em 2 de fevereiro de 1962 e continuou a estudar em Roma, de 1962 a 1964, onde passou a trabalhar pastoralmente como sacerdote jesuíta. Foi membro da faculdade e decano do Pontifício Instituto Bíblico, tendo sido nomeado seu reitor a 29 de setembro de 1969.
Pregador, em 1978, dos exercícios espirituais de Quaresma no Vaticano, a convite de Paulo VI, foi nomeado reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana a 18 de julho de 1978 e foi o único católico a integrar o Comité Ecuménico para a edição grega do Novo Testamento.
Eleito arcebispo de Milão em 29 de dezembro de 1979, recebeu a ordenação episcopal em 6 de janeiro de 1980, no Vaticano, das mãos do Papa João Paulo II, que o nomeou membro da Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos, de 1980 a 1983, mandato que se foi renovando sucessivamente até 1998. Foi criado cardeal-presbítero de Santa Cecília, em 2 de fevereiro de 1983, dia em que recebeu o barrete cardinalício.
Enquanto cardeal e arcebispo, participou na VI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de que foi relator, de 29 de setembro a 28 de outubro de 1983; na II Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, de 24 de novembro a 8 de dezembro de 1985; e na VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de 1 a 30 de outubro de 1987. Foi enviado especial do Papa à celebração do I centenário da evangelização de Zâmbia, de 29 de agosto a 2 de setembro de 1991. Depois, participou na I Assembleia Especial para a Europa do Sínodo dos Bispos, de 28 de novembro a 14 de dezembro de 1991; assistiu à IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo, na República Dominicana, de 12 a 28 de outubro de 1982; participou na IX Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de 2 a 29 de outubro de 1994; participou na II Assembleia Especial para a Europa do Sínodo dos Bispos, de 1 a 23 de outubro de 1999; e, entre 1987 e 1993, foi presidente do CCEE (Conselho das Conferências Episcopais Europeias).
Em 2002, passou a arcebispo emérito de Milão por haver atingido a idade de 75 anos e retirou-se para Jerusalém. Por causa da doença de Parkinson voltou, definitivamente, para a Itália em 2008. Em 2 de junho de 2012, recebeu a visita do Papa Bento XVI, de visita pastoral em Milão e a participar no VII Encontro Mundial das Famílias. Dele fora amigo e conselheiro especial, nomeadamente face aos “lobos” existentes na Cúria Romana. Por ocasião do seu falecimento, a Rádio Vaticano recordou aquele último encontro entre Bento XVI e o “amigo jesuíta”, referindo que, na reunião, em privado, numa das salas do palácio do arcebispado, o cardeal Martini admitiu que se vive “um momento muito difícil para a Igreja”, mas encontrou forças para encorajar o Papa a “carregar a pesada Cruz deste difícil momento”. 
Em 30 de agosto de 2012 o cardeal Angelo Scola, arcebispo de Milão anunciou que D. Carlo fora internado num hospital por causa da doença de que sofria e pediu orações para si. Faleceu em Gallarate no dia 31 de agosto de 2012.
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Entre as iniciativas que levou a cabo na arquidiocese de Milão destacam-se: a Escola da Palavra, para aproximar os leigos da Bíblia, com vista a uma lectio divina contínua e global com a actio (concretizando o agir que deriva da escuta da Palavra), na linha da Constituição conciliar Dei Verbum, sobre a Divina Revelação; os Exercícios noturnos bíblicos, em torno da leitura de textos bíblicos durante 6 noites consecutivas; e a ‘Cátedra dos não crentes’, uma série de encontros para pessoas “em busca da verdade”, que tem, em certo sentido, continuidade no Átrio do Gentios, iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura.
Foi autor de vários livros sobre temas bíblicos e de espiritualidade, para além da obra Em Que Crê Quem Não Crê? – Um colóquio, através de cartas, com o autor e intelectual italiano Umberto Eco.
Em novembro de 2007, lançou juntamente com o Padre Georg Sporschill o livro Diálogos Noturnos em Jerusalém, que discute, em forma de entrevista, os temas mais relevantes da atualidade da fé, os desafios de chegar aos jovens e as suas pertinente questões no mundo conturbado de hoje.
Sobre Paulo VI (e Martini parece ser o homem que melhor entendeu aquele Pontífice tanto nas suas visões e rasgos mais proféticos como nas suas hesitações) escreveu o livro Paolo VI “uomo spirituale” (Istituto Paolo VI – Edizioni Studium, Brescia-Roma, 2008).
A última obra assinada pelo cardeal, Il Vescovo (o bispo), deixa como conselho aos responsáveis pelas dioceses a aposta “na formação interior, no gosto e no fascínio pela Sagrada Escritura”, apresentando as “motivações positivas” do “agir segundo o Evangelho”. 
Recebeu o prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais no dia 27 de outubro de 2000.
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Voltando ao prefácio de Le cattedre dei non credenti, Francisco não economiza elogios a Martini. Em particular, o Papa salienta três aspetos ou dimensões relevantes da figura do insigne biblista e exegeta: sinodalidade, diálogo e Palavra de Deus. Dificilmente, estas vertentes da eclesialidade se entenderão em separado, o que se faz apenas por razões metodológicas.
No atinente à sinodalidade
Empenhou-se em “promover e acompanhar na comunidade eclesial o estilo de sinodalidade tão desejado pelo Concílio Vaticano II”, que requer “uma atitude de escuta e de discernimento”, a par do “cuidado para que as diferenças não degenerem em conflito destrutivo”.
Bergoglio sublinha que o cardeal não temeu as “tensões” e as “disputas”, que “necessariamente todo o impulso profético traz consigo”. Tanto assim foi que o seu lema episcopal era pro veritate adversa diligere. Em observância a este lema, “sempre procurou neutralizar a carga destrutiva e, com sensibilidade e carinho com a Igreja, transformá-la em ocasiões importantes de um processo de mudança e de crescimento na comunhão”. E face a situações de oposição, “sempre evitou a contraposição, que não leva a nenhuma solução, pensando de forma criativa em termos alternativos”. Porém, nunca o cardeal se deixou arrastar pelas “modas ou pesquisas sociológicas”, sendo apenas norteado por “uma única questão de fundo: de que forma Jesus Cristo, vivo na Igreja, é, hoje, fonte de esperança?”. Paralelamente estava profundamente “consciente da presença na Igreja de tantas sensibilidades diferentes de acordo com contextos culturais, que não podem ser integrados sem um livre e humilde debate”. Com efeito, Martini entendia que precisava dum “instrumento de confronto universal”, porque “quando se procura a vontade de Deus sempre existem pontos de vista diferentes e é necessário procurar espaços para ouvir o Espírito Santo e permitir-lhes operar em profundidade”. E com este “estilo” pastoral e espiritual o pastor “não procurou envolver apenas “os membros da comunidade eclesial”, mas também “aqueles que na comunidade dos fiéis não eram reconhecidos imediatamente”.
            Quanto ao diálogo
Uma outra caraterística relevante da sua personalidade é ter efetivamente incentivado “o olhar além dos confins consolidados, favorecendo uma Igreja missionária ‘em saída’ e não fechada sobre si mesma” – o que introduziu na prática pastoral um “modo novo de dialogar com o mundo contemporâneo, que foi a Cátedra dos não crentes”, iniciativa nascida da convicção de “que todos, crentes e não crentes, estamos em busca da verdade e não podemos desprezar nada”.
Também, no seu realismo agudo, o Papa assegura que “todo o crente carrega consigo a ameaça da não crença e todo o não crente carrega dentro de si a semente da fé”, situando-se o ponto de encontro na “disponibilidade de refletir sobre questões que nos unem a todos”. Assim, nunca Martini “deixou de ser um cristão que se interrogava com honestidade sobre a própria fé, na consciência de que isso não impedia, antes reforçava, o seu ministério de bispo chamado a apascentar o rebanho que lhe foi confiado”.
Na convicção de que é grande “a fecundidade da contribuição que as comunidades cristãs podem dar à sociedade civil hoje”, o cardeal testemunhou que “os princípios da fé, longe de serem motivo de guerra e de contraposição na convivência civil, podem e devem ser vivíveis e desejáveis também pelos demais”. Assim, o convite à proximidade caraterizou, segundo o Papa, o seu magistério e “ressoou com força e eficácia dentro da sociedade civil e no mundo da política”, para lá dos limites da cidade e da arquidiocese de Milão.
            E em relação à Palavra de Deus
E aqui reside a terceira dimensão da personalidade do biblista purpurado. Afirma o Papa Francisco que a “familiaridade” do cardeal com a Palavra de Deus era tal que “se unia ao talento pastoral de saber comunicá-la a todos, crentes e leigos, intelectuais e pessoas simples”.
A atenção constante do arcebispo ambrosiano ao tesouro da Escritura – segundo Francisco – faz com que os seus discursos não possam ser encarados como “considerações motivadas pelo bom senso ou por teorias políticas”, mas como expressão de “toda a riqueza da tradição conseguindo interpelar cada pessoa e cada povo”. Por isso, esboçou “percursos para ligar a Palavra à vida”, para que a Palavra pudesse tornar-se “agente de conversão, alimentando uma vida mais fraterna e mais justa, impedindo fugir para a sombra de cómodas seguranças pré-confecionadas”.
Neste âmbito, o Papa releva a iniciativa da “Escola da Palavra”, promovida pelo cardeal na sua arquidiocese, mas difundida também em outros países. Criava – escreve Francisco – “ocasiões de leitura sapiencial da vida” que permitiram que muitas pessoas, especialmente das camadas jovens, “desfrutassem a novidade permanente que surge a partir da leitura do texto bíblico”.
Obviamente que o Papa jesuíta não podia deixar de perceber como com esta abordagem o cardeal Martini valorizou de forma “original” a espiritualidade da Companhia de Jesus, usando quanto bastasse a pedagogia inaciana, especialmente a dos exercícios espirituais, “para envolver na oração todas as dimensões da pessoa, incluindo a corporeidade e a afetividade”.
No entanto, apesar de estas três vertentes ou dimensões sintetizarem a figura pastoral de Martini, o Papa não infere daí que esgotem a atualidade daquela personalidade. Nesse sentido, Pontífice reconhece com gratidão o trabalho de quantos se dedicam a “reunir, ordenar e colocar em disposição de forma orgânica a grande quantidade de discursos e de escritos do cardeal Martini, situando-o no contexto histórico e nas circunstâncias em que foram elaborados”.
A partir da leitura desta obra completa, Francisco espera também que ela possa constituir “um constante convite para refletir juntos no modo em que estamos construindo o futuro do nosso planeta e procurar caminhos compartilhados de libertação e de esperança”; e que possa servir “de grande ajuda no nosso mundo tão marcado por forças divisionistas e desumanizantes para inspirar uma vida mais rica de sentido e uma convivência mais fraterna”. 
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Faz bem ler ou reler “E a Palavra faz-se vida”, de Carlo Maria Martini, in Guia para ler a Bíblia,Vários autores, coleção “Ler a Bíblia”, Ed. São Paulo,1997
Então, um brinde por “As Cátedras dos não crentes”, por Martini e por Francisco!

2015.10.21 – Louro de Carvalho

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