Não
se estranha, por legítima e expectável, a decisão do Presidente da República de,
ouvidos os partidos com assento parlamentar, indigitar, “como
Primeiro-Ministro, o Dr. Pedro Passos Coelho, líder do maior partido da
coligação que venceu as eleições do passado dia 4 de outubro”. Porém, Cavaco
Silva não se limitou a uma justificação fundamentada na sua responsabilidade
constitucional plasmada no n.º 1 do artigo 187.º da CRP, que estabelece: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo
Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da
República e tendo em conta os resultados eleitorais”. Foi muito mais longe
dividindo até o que não devia ser dividido neste momento, ao menos por si.
***
Tem
razão quando afirma que Portugal “necessita de uma solução governativa que
assegure a estabilidade política”. Concede-se que tenha razão também ao referir
“essa solução governativa deve dar garantias firmes de que respeitará os
compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado português e as
grandes opções estratégicas adotadas desde a instauração do regime democrático”.
Não obstante, não é líquido que o Presidente possa garantir Urbi et Orbi que as ditas “grandes
opções estratégicas “foram sufragadas pela esmagadora maioria dos cidadãos nas
eleições de dia 4 de outubro”. Esta asserção corresponde a uma das leituras
possíveis, mas que não cabe ao Presidente impor.
Depois,
Cavaco Silva, enquanto garante da “unidade do Estado” (vd
CRP, art.º 120.º)
divide os partidos políticos entre bons e maus – ou seja, os “que apoiam e se
reveem no projeto da União Europeia e da Zona Euro” (até
agora tidos como os do arco da governabilidade) e os que “defendem a revogação do Tratado de
Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e
Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a
saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO, organização de que
Portugal é membro fundador”. Os primeiros servem para governar; os segundos são
de protesto e parecem servir unicamente para enfeitar a Assembleia da República.
Esquece que os governos provisórios eram constituídos por elementos quase na totalidade
conotados com o PCP e nunca estiveram em causa os compromissos internacionais de
fundo.
Por
outro lado, Cavaco Silva faz mais duas acusações: houve partido ou partidos do
arco da governabilidade cujo programa eleitoral está a ser renegado; e os
partidos da coligação que ganhou as eleições também não foram suficientemente hábeis
para que “os contactos efetuados entre os partidos políticos” produzissem “os
resultados necessários para alcançar uma solução governativa estável e
duradoura”.
Ademais,
o Presidente da República (presidente de todos os portugueses), enquanto garante do “regular
funcionamento das instituições democráticas” (ib et ib), não pode diabolizar alguns
partidos por serem antieuropeístas e, portanto, prescindíveis: “em 40 anos de democracia, nunca os governos
de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas” (disse).
Perante
esta situação – “tanto mais singular quanto as orientações políticas e os
programas eleitorais desses partidos (os do arco da
governabilidade) não
se mostram incompatíveis, sendo, pelo contrário, praticamente convergentes
quanto aos objetivos estratégicos de Portugal” – o Presidente lamenta “profundamente
que, num tempo em que importa consolidar a trajetória de crescimento e criação
de emprego e em que o diálogo e o compromisso são mais necessários do que
nunca, interesses conjunturais se tenham sobreposto à salvaguarda do superior
interesse nacional”. E confessa com espanto:
“É tanto mais incompreensível que as
forças partidárias europeístas não tenham chegado a um entendimento quando, num
passado recente, votaram conjuntamente, na Assembleia da República, a aprovação
do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental e do Mecanismo Europeu de
Estabilidade, enquanto os demais partidos votaram sempre contra” – divisão em absoluto, parlamentarmente
comprovada (digo eu).
Quanto aos partidos envolvidos na
solução – PSD e CDS – fazendo de conta que não estão incluídos no objeto do lamento
do supremo timoneiro, saudaram a decisão presidencial e a sua alocução. O partido
autoexcluído da solução governativa criticou o Presidente e parece ter colhido do
seu discurso o adequado estimulante à coesão de que precisava neste momento
crucial para a vida socialista. Os governoexcluídos reafirmaram o seu envolvimento
estratégico em torno do PS para a formação de um governo estável e duradouro.
***
Cavaco Silva
deixou cair anteriores pressupostos, como a exigência de um governo apoiado por
clara maioria parlamentar e o erro de ter empossado um governo minoritário, bem
como a diferença entre outros momentos pós-eleitorais e o presente. E, com
estoica resignação e alguma ironia, declarou:
Tive presente que, nos 40 anos de
democracia portuguesa, a responsabilidade de formar Governo foi sempre
atribuída a quem ganhou as eleições.
Assim ocorreu
em todos os atos eleitorais em que a força política vencedora não obteve a
maioria dos deputados à Assembleia da República, como aconteceu nas eleições
legislativas de 2009, em que o Partido Socialista foi o partido mais votado,
elegendo apenas 97 deputados, não tendo as demais forças políticas
inviabilizado a sua entrada em funções.
Porém, o próprio
Presidente se achou dividido: fez a firme apologia da União Europeia como “opção
estratégica do País” e “essencial para a consolidação do regime democrático
português”, bem como do relevo da “observância dos compromissos assumidos no
quadro da Zona Euro” (“fora
da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico”); mas receia “muito uma quebra de
confiança das instituições internacionais, nossas credoras, dos investidores e
dos mercados financeiros externos”. Estranho medo e estranho aviso!
Como é? Se entende
que a decisão pró-governativa que tomou foi a melhor, não se percebe porque receia,
a não ser que Portugal nos últimos anos não tenha sido tão bom aluno da UE e do
EURO como nos apregoaram ou tenha anulado o resultado das aulas recebidas nos
meses do período eleitoral.
Talvez, contrariamente
ao que assegura Cavaco Silva, seja este um bom momento para “alterar
radicalmente os fundamentos do nosso regime democrático”, se efetivamente os
partidos ditos não europeístas passarem a ser coerentes com a ação que desenvolvem
no quadro do Parlamento Europeu. Os partidos não são imutáveis e fixistas. Veja-se
a origem do PS ou onde para a socialdemocracia do PSD e a democracia cristã do
CDS.
Quanto à
vontade democrática expressa nas urnas, pergunto-me quem assegurará de ciência
certa qual foi ela, dado que os números permitem uma boa poligrafia de leituras.
***
É certo que ao
Presidente da República cabe, “de forma inteiramente livre, fazer um juízo
sobre as diversas soluções políticas com vista à nomeação do Primeiro-Ministro”.
Porém, o Presidente não pode alijar a responsabilidade para outrem assim sem mais.
A liberdade de juízo implica uma ética de responsabilidade além da ética da
convicção, aliás como Cavaco Silva referiu quando se sentiu na obrigação ética
de promulgar uma lei sobre um tema fraturante como o do casamento das pessoas
do mesmo sexo (fê-lo
invocando, em detrimento da ética da convicção, precisamente a ética de responsabilidade). Agora, parece ter preferido a
ética da convicção passando, no quadro da ética da responsabilidade, para os partidos
políticos a responsabilidade pelas consequências de uma eventual rejeição do programa
de governo, nomeadamente os que não são do arco da governabilidade, pois
referiu:
“Se o Governo formado pela coligação
vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o País
precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras,
económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por
outras forças políticas. Aliás, é significativo que não tenham sido
apresentadas, por essas forças políticas, garantias de uma solução alternativa
estável, duradoura e credível”.
Insistindo na
descrença na esquerda e na regra que sempre vigorou de que “quem ganha as
eleições é convidado a formar Governo pelo Presidente da República”, referiu
que “a última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos
Deputados à Assembleia da República”. E aqui o Presidente faz mais uma divisão,
ao dividir a Assembleia da República em AR má e AR boa ou responsabilizando por
eventual rejeição do programa do governo a apresentar pelo Primeiro-Ministro os
deputados que votarem a respetiva moção. Por outro lado, em vez da cooperação institucional
e da interdependência entre os diversos órgãos de soberania, o garante da
unidade do estado e do funcionamento das instituições democráticas, preferiu a separação
dos poderes e dos atores, lavando as mãos:
“como Presidente da República assumo as minhas responsabilidades
constitucionais; compete agora aos Deputados assumir as suas”.
***
É caso para
perguntar: Qual foi a parte do Presidente que indigitou Passos Coelho, a direita
ou a esquerda? Qual foi aquela que criticou o PS e anatematizou o PCP e o BE, a
da política europeia ou a da ética republicana? Qual é aquela que confessou
medo da reação dos credores e dos mercados, a do estadista ou a do antigo líder
do PSD? Qual é a que os portugueses devem levar a sério na sua alocução, a do
discurso protegido constitucionalmente ou a da ironia, do medo, da crispação (estranhada pelo presidente da CIP), da acusação ora despiciente ora
intimidadora?
Poderemos
escrutinar as leis que nos regem apontando o dedo não exatamente à Assembleia
da República, mas unicamente aos deputados que as aprovaram, louvando-os, se
elas nos agradam, e proferindo doestos contra eles, se efetivamente elas nos
molestam? Poderá o mesmo dizer-se das deliberações dos outros órgãos de soberania
– governo e tribunais coletivos?
Não é verdade
que as deliberações de qualquer órgão colegial são tomadas à pluralidade dos votos
por unanimidade ou por maioria e, no caso da Assembleia da República, umas leis
são aprovadas por maioria absoluta dos deputados presentes (desde que haja quórum), outras por maioria absoluta dos
deputados em efetividade de funções e outras por maioria de dois terços desde
que superior à maioria dos deputados em efetividade de funções?
Um órgão de soberania
não pode nunca jamais em tempo algum deixar de ser tomado na sua totalidade.
Por fim, não
pode o Presidente apelar à consciência dos deputados sabendo da premência da
disciplina partidária em temas estruturantes. Divisão em soberania, não,
Excelência de unidade!
2015.10.22 – Louro
de Carvalho
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