Através
da Carta Apostólica Apostolica
Sollicitudo (AA),
promulgada a 15 de setembro de 1965, Paulo VI instituiu o Sínodo dos Bispos para a Igreja Universal. Movia-o a leitura dos
sinais dos tempos, num mundo repleto de perigos e de esperanças, e a
necessidade de fomentar cada vez mais, para o bem da Igreja, a união dos bispos
com o Romano Pontífice de modo que a este “não
falte o consolo da sua presença, a ajuda da sua prudência e experiência, o
apoio dos seus conselhos e a aprovação da sua autoridade” (vd
AA, 1965). Por outro
lado, a instituição do Sínodo dos Bispos configurava, na ótica de Montini, o
acolhimento do dinamismo do exercício da colegialidade tão bem desenvolvido no
Vaticano II (cf id et ib).
Em
pleno tempo de cinquentenário da próvida instituição da assembleia sinodal,
decorre a XIV assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a problemática e
a missão da família nos dias de hoje. Tendo convocado o Sínodo e assumindo a
presidência e assíduo acompanhamento, Francisco presenteou a Igreja e o Mundo,
a 17 de outubro, com um extenso discurso de reflexão a assinalar o
cinquentenário sinodal.
***
Na sua alocução o Papa declara que “desde o Concílio Vaticano II até à
presente assembleia, temos experimentado de modo cada vez mais intenso a
necessidade e a beleza de caminhar em
conjunto”. E acentua o seu propósito de valorizar o Sínodo como “uma das
heranças mais preciosas da última sessão conciliar”.
A seguir, sintetiza o que significou para os predecessores esta assembleia
dos bispos. Segundo Paulo VI, o organismo sinodal, a ser aperfeiçoado ao longo
do tempo, devia “repropor a imagem do Concílio ecuménico e refletir o seu
espírito e método”. Por seu turno, João Paulo II entendia, 20 anos mais tarde,
que este instrumento poderá ser ainda mais melhorado, de modo que a
responsabilidade pastoral possa nele exprimir-se mais plenamente. E Bento XVI,
em 2006, aprovou algumas alterações ao Ordo
Synodi Episcoporum, à luz das disposições do Código de Direito Canónico e do Código
dos Cânones das igrejas Orientais.
Assim, Francisco entende que “devemos seguir esta via”, pois, “o mundo em
que vivemos e somos chamados a amar e a servir, mesmo nas suas contradições,
exige da Igreja a mobilização das sinergias em todos os âmbitos da sua missão”
e, por outro lado, “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da
Igreja do III milénio”. No entanto, o Papa argentino não esconde que, embora
“caminhar em conjunto” (leigos, pastores e bispo de Roma) seja um conceito de fácil expressão, não
é fácil de pôr em prática.
Recorda o Pontífice que, ancorado na doutrina conciliar sobre a Igreja como
Povo de Deus, com a unção que lhe vem do Alto, na Evangelii Gaudium sublinhara como o Povo de Deus é santo em razão
daquela unção que o torna infalível in
credendo, acrescentando que qualquer batizado, independentemente do lugar
que ocupe na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de
evangelização, devendo pôr-se de parte a clássica distinção entre Igreja docente e Igreja discente, como se a evangelização fosse obra de atores
qualificados e o resto fosse apenas recetor. Sustenta nesta convicção a tarefa
que mandou empreender de auscultação do Povo de Deus e em especial das famílias
(as suas alegrias e esperanças, as suas dores e angústias) para a elaboração dos “lineamenta” das duas assembleias
sinodais sobre a família (a III extraordinária de 2014 e a XIV
ordinária de 2015).
E o Papa insiste no conceito de Igreja sinodal, enquanto Igreja de escuta,
na certeza de que escutar é “mais do que sentir”: “é uma escuta recíproca em que
cada um tem algo a aprender – o povo fiel, o colégio episcopal, o Bispo de
Roma: um na escuta dos outros e todos na escuta do Espírito Santo, o Espírito
da verdade, para conhecer o que Ele diz às Igrejas”.
Vem referido acima que o Sínodo é um
instrumento (cf Paulo VI, AA,2015). É então um instrumento da sinodalidade e da escuta
e, no dizer de Francisco, constitui-se como o ponto de convergência deste
dinamismo de escuta dirigido a todos os níveis da vida da Igreja. Por outro
lado, o Pontífice assegura que o facto de o Sínodo agir sempre cum Petro et
sub Petro não configura uma
limitação da liberdade, mas uma garantia da unidade, pois o Papa é “o
perpétuo e visível princípio e fomento da unidade tanto dos bispos entre si
como da multidão dos fiéis”. Com este princípio de unidade está conexo o da
comunhão hierárquica, adotado pelo Vaticano II: os bispos fazem em conjunto com
o bispo de Roma o vínculo da comunhão episcopal (cum Petro), mas são hierarquicamente subordinados a ele
enquanto cabeça do colégio (sub Petro).
Ademais, o
facto de a sinodalidade ser uma dimensão constitutiva da Igreja, a oferecer a
moldura interpretativa mais adequada à compreensão o ministério hierárquico,
levou são João Crisóstomo a dizer que “Igreja” e “Sínodo” são sinónimos, dada a
dinâmica do caminho e da caminhada. Com efeito, Jesus constituiu a Igreja pondo
no vértice o colégio apostólico em que Pedro é a rocha que deve confirmar os
irmãos na fé. Porém, “como na pirâmide invertida, o vértice encontra-se por
baixo da base”.
Convenhamos que
é uma asserção arrojada contra a lógica do poder. Talvez esta lógica da
pirâmide invertida leve à adoção empática da titulação Servus servorum Dei
pelos Papas, em que Francisco insiste.
***
Depois, o Papa, na convicção de que o
Sínodo dos Bispos é na Igreja sinodal apenas a mais evidente mostra do
dinamismo de comunhão a inspirar as decisões eclesiais, especifica os diversos
níveis de sinodalidade:
- O primeiro realiza-se nas Igrejas
particulares. O código de direito
canónico dedica largo espaço aos organismos de comunhão na Igreja
particular: o conselho presbiteral, o colégio dos consultores, o cabido dos
cónegos, o conselho pastoral e, naturalmente, o sínodo diocesano como expressão
máxima da comunhão na Igreja particular.
- O segundo é o das Províncias e Regiões
Eclesiásticas, dos Concílios Particulares e, em especial, das Conferências
Episcopais. A este respeito, Francisco recorda que “não é oportuno que o Papa
substitua os Episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas com
que se deparam nos seus territórios, pelo que, neste sentido, se reconhece a necessidade
de uma salutar descentralização, pois “uma centralização excessiva, em vez de ajudar,
complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária” (EG 32).
- O último nível é o da Igreja universal,
onde o Sínodo dos Bispos, em representação do episcopado católico, se torna
expressão da colegialidade episcopal no interior de uma Igreja toda sinodal.
Mas o Papa não deixa de implicar beneficamente
a sinodalidade nas relações ecuménicas, ou seja, “o princípio da sinodalidade e
o serviço daquele que preside oferecerá um contributo significativo ao
progresso das relações entre as nossas Igrejas” (vd discurso à delegação
do patriarcado de Constantinopla a 27 de junho de 2015) – convicção já em tempos exposta por
João Paulo II (cf encíclica Ut
unum sint 95).
***
Outra forma de assinalar o cinquentenário
do Sínodo dos Bispos e de relevar a importância da família foi a celebração
eucarística de hoje, 18 de outubro, Dia
Mundial das Missões e XXIX domingo do tempo comum, com a canonização de
quatro beatos: Vicente Grossi, sacerdote; Maria da Imaculada Conceição,
religiosa; e um casal – Luís Martin e Maria Zélia Guérin – pais de Santa
Teresinha do Menino Jesus.
Francisco, com esta
celebração, prestou uma bela homenagem às famílias. Foi a primeira vez que um
casal foi canonizado na mesma celebração. Brilha a beleza da família assim
celebrada, como é vontade explícita de muitos dos padres sinodais, para lá das
dores e angústias por que ela passa nos nossos dias, quem sabe se não muito
diferentes das dos tempos idos. Mas o acesso à santidade familiar fica bem
patente nesta cerimónia.
Por outro lado, a
causa missionária, já que a Igreja é toda ela evangelizadora e missionária,
mesmo que os seus membros não partam ad
gentes, mas desde que façam missão nos seus ambientes e tenham, nos lugares
onde trabalham, as preocupações por todo o sofrimento e todas as insuficiências
do mundo. Assim, Vicente Grossi foi enaltecido enquanto “pároco zeloso, sempre atento às necessidades do seu povo, especialmente
à fragilidade dos jovens”, tendo repartido, com ardor, “o pão da Palavra para todos” e
tornando-se “bom samaritano para os mais
necessitados”. De Maria da Imaculada Conceição foi referido que, “bebendo nas fontes da oração e da
contemplação, serviu pessoalmente e com grande humildade os últimos, com uma
atenção especial aos filhos dos pobres e aos doentes”. Por sua vez, os
esposos Luís Martin e Maria Zélia Guérin “viveram
o serviço cristão na família, construindo dia após dia um ambiente cheio de fé
e amor; e, neste clima, germinaram as vocações das filhas, nomeadamente a de
Santa Teresinha do Menino Jesus”. A família pode efetivamente ser escola de
serviço, ninho de servidores, rampa de lançamento de missionários e de contemplativos.
Convém recordar que Santa Teresinha é a
Padroeira das Missões, não por ter saído a pregar, mas pela cumplicidade intensamente
orante com os missionários ad gentes.
Depois, não se pode olvidar a temática do
serviço, contraposto ao poder pelo poder, que o Papa glosou na sua homilia
direcionada para a Igreja serva e para a família cuja função é servir as
pessoas que dela fazem parte e ensinar a servir as outras pessoas com quem temos
a oportunidade de nos encontrar. E fê-lo à luz do perfil do profeta Isaías, que
esboça a figura
do sofrente Servo do Senhor e a sua missão salvífica.
Porém,
o modelo do serviço e da missão é o próprio Cristo: “a sua existência e a sua
morte, vividas inteiramente sob a forma de serviço (cf Fl 2,7), foram causa da nossa salvação e da
reconciliação da humanidade com Deus”.
Tal
dimensão salvífica não estava a ser compreendida pelos discípulos, nomeadamente
pelos irmãos Tiago e João que, apoiados pelo instinto maternal, adrede expresso
pela sua mãe, reivindicavam lugares de honra, de acordo com a sua própria visão
hierárquica e terrena do Reino de Deus. Jesus, porém, não desarma e destrói-lhes
as convicções sobre a pretensa temporalidade do Reino:
“Bebereis o cálice que Eu
bebo (…), mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a Mim
concedê-lo: é daqueles para quem está reservado” (Mc10,39-40).
Com
a imagem de beber do cálice, Jesus
assegura aos dois discípulos a possibilidade de serem associados plenamente ao
seu destino de sofrimento, mas não lhes garante os lugares de honra e
visibilidade desejados. Devem segui-Lo pelo caminho do amor e do serviço,
abjurando da tentação mundana de sobressair e mandar. Talvez seja oportuno lembrar
aos discípulos que pretendam enveredar pelo carreirismo a advertência do Mestre:
“Sabeis como aqueles que
são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre
elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem
quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo.” (Mc10,42-43).
E
mesmo aqueles que detêm o poder político e dele se servem, em vez de servirem,
bem podiam pensar na efemeridade do poder ena sua perda, muitas vezes, por
causa da inveja e da intriga ou pela falta do sucesso esperado.
***
De
facto, Jesus, além de ser o modelo do discípulo, apresenta-se como ideal de
referência. Na maneira de proceder do seu Mestre, “a comunidade encontrará o
motivo da nova perspetiva de vida”, pois, “o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (Mc10,45).
Francisco,
a este respeito, verifica a “incompatibilidade entre uma forma de conceber o
poder segundo critérios mundanos e o serviço humilde que deveria caraterizar a
autoridade segundo o ensinamento e o exemplo de Jesus”: “incompatibilidade entre ambições e carreirismo e o seguimento de
Cristo; incompatibilidade entre honras, sucesso, fama, triunfos terrenos e a
lógica de Cristo crucificado”. Mas destaca a “compatibilidade entre Jesus
que sabe o que é sofrer e o nosso
sofrimento”, citando, a este propósito, a Carta aos Hebreus, a que “apresenta
Cristo como o Sumo Sacerdote que compartilha a nossa condição humana em tudo,
exceto no pecado”. Assim, o Papa recorda-nos, neste dia missionário de 2015, que
Jesus “experimentou diretamente as nossas dificuldades, conhece a partir de
dentro a nossa condição humana” e que “o facto de não ter experimentado o
pecado não O impede de compreender os pecadores”.
Ora,
o Pontífice, a esta luz, ensina que “cada um de nós, enquanto batizado,
participa a seu modo no sacerdócio de Cristo: os fiéis leigos no sacerdócio
comum, os sacerdotes no sacerdócio ministerial”. Por isso, “todos podemos
receber a caridade que brota do seu Coração aberto, tanto para nós mesmos como
para os outros, tornando-nos canais
do seu amor, da sua compaixão, especialmente para aqueles que vivem no
sofrimento, na angústia, no desânimo e na solidão”.
***
É
esta compaixão misericordiosa de que o cristão é chamado a dar testemunho onde
quer que se encontre ou para onde quer que vá – testemunho conexo com o quérigma
fundamental do Evangelho: Ele está entre nós redivivo e quer fazer-nos participantes
do seu reino, não pelos nossos merecimentos, mas pelo dom da sua misericórdia e
pela participação no seu desígnio salvador.
2015.10.18 – Louro de
Carvalho
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