sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O que o Todo-poderoso não pode fazer

A noção de Deus que enformava as catequeses até meados do século XX compaginava a ideia de um Deus distante, legislador, preparado para sancionar o comportamento dos crentes sob o enunciado vigilante “Deus vê-te”.
Todavia, se estivéssemos com atenção ao primeiro artigo do símbolo dos apóstolos, verificaríamos que a primeira qualidade atribuída a Deus é a de “Pai”. Parece que isto bastaria. É certo que, se olharmos para o Pai Deus à imagem de muitos pais terrenos, podemos fazer de Deus uma ideia errada, obsoleta e injusta.
Por isso, talvez seja necessário olhar para a paternidade divina com os óculos de fé do Papa Francisco na missa de encerramento do Sínodo dos Bispos, no passado dia 25 de outubro, comentando um texto profético. Enquanto o povo é forçado ao exílio por parte dos inimigos – o que representa o maior desastre nacional – o profeta Jeremias proclama que o Senhor salva o seu povo. Fá-lo porque é Pai, pai providente, que sabe e quer ter o cuidado permanente dos seus filhos, acompanhando-os ao longo da caminhada, amparando de modo especial os mais débeis, como o cego ou o coxo, a grávida ou aquela que deu à luz. E, ao prestar afavelmente este providente cuidado, abre um caminho desimpedido e um espaço de consolação para as lágrimas e amarguras. E, se o povo aceitar este cuidado, este rasgar de caminho, este consolo de Deus e se ousar reverter esta magnânima atitude Deus para benefício dos irmãos, Deus mudará o exílio em liberdade, a solidão em comunhão. Isto, porque Deus é Pai e pai que ama. (cf Francisco, Homilia da Missa de encerramento da XIV Assembleia Ordinária do Sínodo do Bispos de 2015).
Também o Novo Testamento nos apresenta Deus como o Pai – o Pai de Jesus Cristo e o nosso pai, a ponto de todos podermos e devermos clamar “Pai nosso!” (vd Mt 6,9ss). E este Pai é caraterizado pelo cuidado, pela boa dádiva: “Pois se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!” (Lc 11,13). É aquele que se compraz em revelar os mistérios do Reino aos pequeninos: Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado.” (Mt 11,26; Lc 10,21).
Este Pai é figurado numa das grandes parábolas da misericórdia, a do pai que tinha dois filhos. Repartiu pelos dois (o que pediu e o que não pediu) os bens. Perante a vida dissoluta do mais novo (que exigiu a parte dos bens que lhe correspondia), aguardou pacientemente o regresso, que acolheu logo que o filho caiu em si e voltou. Não deixou que ele perdesse a qualidade de filho, mas revestiu-o das vestes familiares e recolocou-lhe no dedo o anel de família. Depois, mandou fazer a festa do reencontro. Mas este Pai não deixa de censurar a ira e a inveja do filho mais velho, que se recusava a fazer parte da festa pelo regresso do irmão, que acusou de viver em vida dissoluta e passou a acusar o Pai de ser para si, mais velho, o legislador da casa (quem dá ordens), mas que nunca lhe dera nada – “Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo”.
O Pai não desistiu também deste filho mais velho e explicou-se pacientemente: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer a festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado” (cf Lc 15,11-32).
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Os juridicistas preferiram chamar a este Deus o legislador e o juiz severo (que premia o bem e castiga o mal), em vez do pai misericordioso que espera, ama e perdoa. E o filho mais velho, da parábola, também esquece a qualidade paterna do dono da casa e queria ser premiado por nunca ter transgredido uma ordem do seu senhor e entendia que o irmão deveria penar pelo que fez.
Os crentes que são herdeiros, não tanto da Fé de Abraão e da Boa Nova de Jesus, mas do sistema de pensamento dos filósofos da teodiceia acentuam em Deus a essência do ser infinitamente perfeito, senhor do Céu e da Terra (releia-se o famoso catecismo de São Pio X) – quando o Símbolo dos Apóstolos lhe chama “criador” e a criação é obra de sonho, enlevo, amor e partilha. E o ser perfeitíssimo é omnisciente, providente e, sobretudo, todo-poderoso. E, como não podia deixar de ser à boa maneira veterotestamentária, é zeloso da sua glória. Mas não podemos esquecer que o mesmo Deus do Antigo Testamento é sobretudo o libertador e o Deus presente no meio do seu povo.
Por outro lado, este Deus, na sua imensa ternura, assume também as funções da mãe: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria.” (Is 49,15). 
E, como a paternidade divina se espelha perfeitamente em Cristo – “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9) – Jesus pôde exclamar: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes Eu quis juntar os teus filhos, como a galinha junta a sua ninhada debaixo das asas, e tu não quiseste!”  (Mt 23,37; Lc 13,34).
Então podemos afirmar claramente que, assim como nos afeiçoamos ao pensamento em Deus como “pai” – figura típica da autoridade, da providência, da disciplina e da proteção segura – também nos devemos acostumar a pensar em Deus como “mãe”, a figura da doação de vida, do alimento partido em pedacinhos e do sustento, do afeto, do amparo carinhoso e do abraço inigualável. Nunca, pois, as filhas e filhos do Pai Celeste são órfãos de mãe, dado que encontram em Deus tanto o rosto paterno como o rosto materno.
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É óbvio que Deus tem de ser omnipotente para poder “ser”, por si próprio, todo e tudo o que vimos. O ser todo-poderoso decorre de ser infinitamente perfeito e de ser Quem é para nós.
Porém, todos afirmam – e o catecismo de São Pio X o reitera – que há duas coisas que Deus, apesar de omnipotente ou todo-poderoso, não pode: pecar e morrer. Estas contingências, a serem possíveis em Deus, contradiriam a perfeição divina e, como deficiências e impotências que são, diminuiriam a omnipotência de Deus.
Por seu turno, Francisco, qual missionário inveterado da misericórdia divina, resolveu enveredar por outro rumo do não poder de Deus. Hoje, 29 de outubro, na homilia diária em Santa Marta, declarou: “Deus é poderoso e pode fazer tudo, menos uma coisa: parar de nos amar”.
Mas o presidente da celebração matutina foi mais longe ao sublinhar que Deus ama também os piores de nós “com a ternura de um pai” ou “como a galinha com seus pintainhos”.
Com esta imagem de ternura maternal, o Papa Francisco retratou o amor de Deus Pai pelo homem: “Deus não condena: Deus ama. E ama a ponto de que o amor é a sua fraqueza, a ponto de chorar pelos ímpios e pelos que se afastam dele.”
E, tendo citado à letra o lamento de Jesus sobre Jerusalém (Mt 23,37; Lc 13,34), passou a reescrevê-lo: “E quantas vezes eu quis fazer sentir esse carinho, esse amor, como a galinha com seus pintainhos, e tu recusaste!”. Depois, comentou:
“Todo o homem, toda a mulher, pode recusar o presente de Deus e preferir a sua vaidade, o seu orgulho, o seu pecado. Mas o presente está ali, porque Deus não pode ficar longe de nós. Essa é a ‘impotência’ de Deus. Nós dizemos: ‘Deus é poderoso, pode fazer tudo!’. Menos uma coisa: ficar longe de nós”.
É porque Deus não pode deixar de nos amar que São Paulo nos garante:
“Nem morte nem vida, nem anjos, nem principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos deste amor”.
Mais: o Apóstolo dos gentios proclama que os cristãos são vencedores porque, “se Deus é por nós, quem será contra nós?”. Porém, esta “força de vencedor” é um presente, não podendo os cristãos considerá-lo “como uma propriedade” sua. O Papa adverte que o sentido desta “força de vencedor” é o de que “somos vencedores não porque temos este presente em mãos, mas porque nada nem ninguém poderá separar-nos do amor de Deus, que é em Cristo Jesus, nosso Senhor”. (cf Rm 8,31-39).
E tem de ver-se naquele presente Aquele que dá o presente – refere o Papa – e esse presente é o dom de recriação, é o dom do renascimento em Cristo Jesus, o dom do amor de Deus, “um amor que não pode ser explicado”.
Mais: é um amor que leva Jesus às lágrimas, como diz o pontífice:
“Jesus chorou! Chorou sobre Jerusalém e aquele choro é toda a ‘impotência’ de Deus: a sua incapacidade de não amar, de não ficar longe de nós. Deus chora, chora por mim quando me afasto; chora por cada um de nós; chora pelos iníquos, que fazem tantas coisas ruins, tanto mal para a humanidade... Ele espera, não condena. Ele chora. Porquê? Porque ama!”.
E o Papa insiste: “Deus não pode não amar. E esta é a nossa segurança. Eu posso rejeitar esse amor, como o bom ladrão o recusou até ao fim da sua vida”. E, no fim, repreendendo o companheiro de crime, o bom ladrão volta-se para Jesus, a quem reconhece a inocência do Justo, e suplica: “Lembra-te de mim, quando chegares ao teu reino!”. E Jesus acolhe-o: “Em verdade te digo, Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!” (cf Lc 23, 39-43).  
Lá estava aquele amor paterno e amoroso esperando pela confissão arrependida das culpas. Reconhece o Papa que “o pior de nós, o maior blasfemador é amado por Deus com uma ternura de pai, de papá”.
É assim necessário e salutar aguardar com jubilosa esperança a misericórdia amorosa de Deus, experienciá-la gostosamente e dela fazer réplica para com os irmãos – fazer a síntese entre a misericórdia e a verdade. Se a verdade liberta, a misericórdia salva.
A tarefa da Igreja é “proclamar a misericórdia de Deus, chamar à conversão e levar todas as pessoas à salvação” – explicitava o Papa na missa de encerramento do Sínodo de 2015.
E poderíamos perceber melhor a omnipotência amorosa e generosa de Deus se atentássemos nas palavras do apóstolo João, que atestam a nossa incontestável filiação divina:
“Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e realmente o somos! É por isso que o mundo não nos conhece, pois o não conheceu a Ele. Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é. Todo o que tem esta esperança em Deus torna-se puro como Ele, que é puro.” (1Jo 3,1-3).

2015.10.29 – Louro de Carvalho

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