Nunca
a Igreja Católica primou pelo unanimismo absoluto, embora os mais puristas
tenham, ao logo do tempo, ousado impor os seus pontos de vista ao nível
doutrinal e ao nível dos costumes, disciplina e ritos, esquecendo-se de que o próprio
Evangelho tem quatro versões reconhecidas, com assinaláveis diferenças. Desde
os tempos apostólicos, passando pelos padres da Igreja, até à contemporaneidade,
as diferenças de expressão manifestam-se tanto na apresentação da doutrina (vejam-se
as diferenças existentes nos diversos símbolos da fé) como nos ritos (romano,
gaulês, galo-romano, hispânico, bracarense, toledetano, grego, arménio,
siríaco, bizantino, copta, melquita, etc.)
e na organização (por exemplo, províncias e diocese, no
Ocidente; patriarcados e eparquias, no Oriente).
Santo
Agostinho sentenciava, a este respeito, que na Igreja havia a necessária unidades
nas questões essenciais e a máxima liberdade nas restantes, o que
abreviadamente se diz unitas in
diversitate.
É
certo que os padres conciliares de Trento, ao verem as divisões por que estava
a passar o cristianismo, com o surgimento das Igrejas ditas reformadas (que
hoje ninguém tem dúvidas em considerar Igrejas, ficando o epiteto de seita
reservado a movimentos relativamente recentes em que dificilmente se vislumbra
a consciência de comunidade – ecclesia) quiseram impor uma única
doutrina, um único rito litúrgico (Missal, breviário e
ritual dos sacramentos e sacramentais de São Pio V) e o celibato eclesiástico e
acentuaram a anatematização contra todos os que se exprimissem contra. E aquelas Igrejas reformadas têm
a sua origem na tentativa de proposta de reforma da Igreja Católica, a que o
centralismo de Roma fez orelhas moucas, parece que pela falta de vontade de se
converter à refontalização evangélica e se enclausurar no domínio
político-cultural a que a Renascença o guindou.
No
entanto, há que reconhecer que outros agentes lograram uma reforma da Igreja a
partir de dentro. Mencionem-se figuras como Teresa de Ávila e João da Cruz, em
relação ao Carmelo reformado ou descalço; Carlos Borromeo, Roberto Belarrmino e
Bartolomeu dos Mártires, pela via da reconversão hierárquica à simplicidade
evangélica; e os movimentos criados no século XVI: a Companhia de Jesus, fundada por Santo Inácio de Loiola, os Teatinos, de
São Caetano, os Barnabitas, de António Maria Zacarias,
os Irmãos Hospitaleiros, de São João de Deus e a Congregação do Oratório, de
São Filipe de Néri.
Entretanto,
as Igrejas Católicas do Oriente conseguiram escapar à tentativa tridentina de
uniformidade, mantendo a sua própria organização (patriarcados,
eparquias e sínodos),
os seus ritos e o regime dos homens casados presbíteros a par dos presbíteros
celibatários. Só em 1917, a legislação eclesiástica se unificou no código de
direito canónico, mas Igrejas Orientais mantiveram as suas tradições e Roma não
teve outra hipótese senão dotá-las de código próprio. Ambos os códigos foram amplamente
reformulados no pontificado de João Paulo II e alterados cirurgicamente por
Bento XVI e recentemente por Francisco.
Recordo
que, mesmo na caminhada evangelizadora no Oriente asiático da época moderna, se
formaram duas tendências nos séculos XVI e XVII: a encarnada pelo Padre Mateus
Ricci, de adaptação dos ritos à cultura local; e a representada pelo Padre João
Rodrigues, de uniformidade à moda romana. A própria colonização, ao nível da
pregação do cristianismo, teve divergências consideráveis do lado português e
do lado espanhol.
Há
que reconhecer, apesar de tudo, que o equilíbrio entre a unidade e a
diversidade nem sempre se tornou fácil, resvalando determinadas expressões de
pluralidade para a heresia e determinada pressão de obediência e controlo para
o cisma. E houve dois grandes cismas: o do Oriente, que se exprimiu na mútua
excomunhão; e o do Ocidente, em que chegaram a pontificar na Igreja Latina pelo
menos dois papas.
Ainda
em relação à unidade e diversidade, é de referir a abundância existencial, ao
longo de toda a História da Igreja, de institutos religiosos (masculinos
e femininos) e
institutos seculares (estes desde a constituição Provida Mater Ecclesia, de Pio XII), com suas regras próprias,
constituições e estatutos, mas cuja referência é o Evangelho e o Magistério da
Igreja – o que não impediu que, por exemplo, os cátaros, os fraticelli e os hussitas não se tivessem
constituído em heresia a e consequente postura cismática.
Por
outro lado e não obstante a teologia católica ter inspirado a produção de uma
teologia moral, nada impediu que a tomada de decisão sobre a qualificação de
pecado em caso de consciência duvidosa se pudesse estribar em correntes
diferentes, consideradas legítimas, com exceção das extremas: o rigorismo
absoluto, o rigorismo mitigado, o probabiliorismo ou tuciorismo, o
equiprobabilismo, o probabilismo e o laxismo. O rigorismo é o excesso de
severidade em matéria moral ou disciplinar. O laxismo configura a tendência
para não cumprir os deveres ou não seguir as normas morais e a tolerância
nesta matéria para com outrem com base em justificações meramente circunstanciais. O probabiliorismo afirma que, perante uma opinião mais favorável e
outra menos favorável à lei, é necessário seguir a primeira. O probabilismo
diz que se pode seguir uma opinião seriamente provável, mesmo que haja uma
opinião ainda mais provável em sentido contrário. Segundo equiprobabilismo, quando a certeza é impossível e os argumentos para as
duas soluções são equiprováveis, qualquer das soluções pode ser seguida.
Destes sistemas, o probabilismo é o mais seguido pelos moralistas
contemporâneos.
***
Pensava-se que, com a experiência
de discussão havida no decurso do Concílio Vaticano II, se tinha reinaugurado
um novo caminho para chegar à tomada de decisões em Igreja. É certo que uma boa
parte dos padres conciliares convocados para o concílio esperava chegar a Roma
e subscrever os esquemas preparados pela Comissão Central. Porém, nem João
XXIII o queria (queria um concílio e não um
plebiscito) nem um
grupo significativo de bispos se conformava com esse entendimento. E fez-se
notar na aula conciliar a influência determinante dos peritos, tanto dos
arregimentados pela Cúria Romana como por muitos dos bispos, que nos tempos livres
frequentavam verdadeiras aulas de teologia e de pastoral, preparando as suas
vivas intervenções. Depois, como reconhece o Papa Francisco, o Concílio legou
para o futuro, embora com a perspetiva do conveniente aperfeiçoamento, o Sínodo.
Esperava-se, assim, que a prática
da colegialidade e da sinodalidade estivesse mais enraizada, até porque, como
também referiu o Papa, o código de direito canónico institucionalizou diversos órgãos,
instrumentos e mecanismos de comunhão nas Igrejas particulares.
Porém, parece que foi o
sínodo de 2014 e é agora o de 2015 – que alguns não querem que se chame sínodo
dos bispos, mas sínodo das famílias (como se as
matérias atinentes à doutrina e à vida da Igreja tivessem de ser deliberadas
pelos setores interessados à margem dos pastores – que até sabem falar da família,
queiram eles e saibam ouvir o mundo e o Espírito!) – que parecem estar a reaprender o dinamismo da
discussão. Valha-nos Deus, era necessário que o Papa Francisco viesse a
terreiro solicitar que todos e cada um falassem abertamente e soubessem escutar
e respeitar o que os outros também dizem?
É óbvio que o Papa tem razão
quando não quer que o “sínodo” seja um parlamento onde tenha de se “negociar”
para se chegar a um decisão consensual ou maioritária, mas também porque o
sínodo não pode levar cada um dos padres sinodais a intervir num sentido
exigido por uma disciplina de grupo como se se tratasse de disciplina
partidária ou a ter de levar ao visto do líder de grupo o seu projeto de
discurso e falar apenas mediante autorização deste.
É natural que um parlamento,
antes de legislar, deva ouvir e ouça os setores interessados na produção
legislativa que os afete, mas não são eles que devem ter a palavra decisiva;
como os tribunais, antes da produção da sentença ou do acórdão, devem ouvir a
partes e os peritos, mas não são estas nem estes que julgam. Por analogia,
espera-se que o Sínodo ouça testemunhos da parte dos interessados e a lição dos
peritos nas diversas matérias, mas, depois, assuma a responsabilidade de decidir
ou de preparar a decisão. Se o parlamento tem como orientador a Constituição, o
sínodo tem como orientador o Evangelho e o Espírito Santo, pelo que é preciso
reler e reouvir.
***
Mas vejamos como os próprios
padres sinodais pretendem contornar a questão do não unanimismo.
O arcebispo de São Paulo Dom Odilo Scherer, em entrevista à Rádio Vaticano, falou
hoje, dia 19, sobre o sínodo dos bispos, desmentindo a existência de conflitos
entre os padres sinodais e afirmando que “a
diferença no modo de pensar”, dos padres sinodais, “não é necessariamente um
problema, mas pode ser uma riqueza”.
Sobre a carta dos 13 cardeais, tão
instrumentalizada por certos órgãos de comunicação social, o cardeal disse que
não chegou a vê-la, mas que “se alguns cardeais escreveram ao Papa, exerceram
um seu direito e não se deve ver nisso algo de estranho”. E declarou que “todos
podem escrever ao Papa, se desejarem”. Por outro lado, contrariando algumas
vozes que ultimamente espalharam polémicas diversas, o prelado brasileiro sublinhou
também o facto de que “a citada carta não teve especial repercussão no
contexto do Sínodo; ali, como previsto, foi facultada a palavra a todos os
participantes, que puderam manifestar-se livremente”.
Quanto ao clima na aula sinodal, refere não ter visto “conflitos
nem venenos nas reflexões”, contrapondo a determinados rumores que “o clima geral foi e continua sendo
de fraternidade, respeito e serenidade”, sendo que “as posições diferentes não
devem ser interpretadas como conflitos, mas como contribuições diversas na
busca do caminho comum, que é próprio
do Sínodo”, salientando-se o “muito interesse e desejo de contribuir para a
reflexão”.
O cardeal também se referiu a determinados
temas como as relações homossexuais e a relação entre misericórdia e verdade.
Com relação às uniões (não casamentos?!) de pessoas do mesmo sexo,
afirmou:
“A posição da Igreja sobre essas
uniões é clara: não há a possibilidade de equipará-las ao casamento de pessoas
de sexos diferentes. O que se busca é a forma mais adequada de acompanhar
pastoralmente essas pessoas, para que também elas acolham o Evangelho e
alcancem a misericórdia e a salvação de Deus.”
O cardeal de São Paulo também
esclareceu, na entrevista, a visão da relação Misericórdia e Verdade, da
parte dos padres sinodais:
“Não penso que essa contraposição
existirá; misericórdia e verdade não podem ser contrapostas. Mas é verdade que
há quem fique mais atento à verdade e quem fique mais atento à misericórdia. (…).
Essa tensão existirá sempre e será necessário trabalhá-la com sabedoria
evangélica. (…). A verdade do Evangelho sobre o casamento e a família nunca
poderá ser omitida ou desprezada; o Evangelho é um chamado à conversão para
todos. Mas nas situações concretas, o Evangelho da misericórdia de Deus precisa
de ser apresentado às pessoas, inclusive porque todos dependem dela, mais do
que das próprias capacidades e virtudes”.
***
Também o
cardeal Pell, prefeito da Secretaria para a Economia – considerado bastante
conservador, embora da confiança de Francisco – descreveu o ambiente de
consenso do Sínodo, em declarações à Rádio Vaticano, a 15 de outubro, dizendo:
“O clima é muito bom. Nós, fazemos, na
minha opinião, progressos substanciais sobre a grande maioria dos temas. Já
existe um consenso visível”.
Desmentindo reconstruções de certa
imprensa que gostaria de um debate cheio de conflitos e de uma “hermenêutica
conspirativa”, como foi denunciada pelo Papa, especialmente depois da história
da carta dos 13 cardeais, Pell afirma:
“Esta interpretação é completamente
errada. (…). Em certos pontos existem diferentes abordagens, mas os jornalistas
de fora querem mostrar uma crise causada pelas diferenças, um pouco de caos, um
clima de exasperação. Não existe nada disso. Obviamente, como disse, existem
divergências, mas apenas e principalmente sobre compreender a doutrina, sobre
como seguir a doutrina, sobre qual seja a disciplina dos sacramentos”.
Acrescentando numa ótica um pouco
mais apertada e algo confusa, afirmou:
“Igualmente, é óbvio que o Santo Padre
diz que a doutrina não vai ser tocada. Como falamos de doutrina moral,
sacramental, nesta, obviamente, há um elemento essencial da prática, da disciplina.
Alguém diz que receber a comunhão num país poderia ser um sacrilégio e num
outro poderia ser uma oportunidade ou uma causa de graça, mas somos uma Igreja
unida: muitas teologias, muitos e vários métodos de oração, de devoção, mas há
uma unidade essencial na doutrina e nos sacramentos”.
Falando do seu contexto, o cardeal explica:
“Eu vim da Austrália. Como vivemos a
nossa fé é muito diferente da Igreja na África, América do Sul e Ásia. Mas nos
pontos essenciais da doutrina e dos sacramentos, especialmente da Comunhão
Santa, é claro a unidade, do ponto de vista do ensino, é essencial”.
Com relação às diferenças
respeitantes especificamente à questão da comunhão para casais divorciados ou
casais homossexuais, o prefeito da Secretaria para a economia sublinha que “grupo após grupo, nas “relações”[relatórios
dos grupos menores], diz claramente que o
matrimónio é entre homem e mulher, aberto à vida, e seguimos não só toda a
história da Igreja, mas também o ensinamento do próprio Jesus do Novo
Testamento”. E declara sobre o ser da Igreja:
“A Igreja é como uma mãe e mestra. E
uma mãe sábia nem sempre dá aos filhos tudo o que querem. Porque a mãe está
muito interessada não só com os fracos, mas com todos os seus filhos e quer
trabalhar para manter a saúde da família”.
***
Vamos
esperar pacientemente por decisão sábia e acolhedora da parte desta fina flor
da hierarquia da Igreja?
2015.10.19 –
Louro de Carvalho
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