Afirmava, há dias, cá para
os meus botões que, se a verdade liberta, a misericórdia salva. Escrevia-o a
propósito do pregão lançado por Francisco na Missa de encerramento do Sínodo de
2015: “A tarefa da Igreja é proclamar a misericórdia de Deus, chamar à
conversão e levar todas as pessoas à salvação”.
Com efeito, o apóstolo e evangelista São João retém
como palavra de Jesus aos judeus o segmento seguinte: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Mas, por outro lado, segundo a Palavra de Cristo, a
felicidade resulta da misericórdia, como da pobreza em espírito, da mansidão,
da consolação sobre as lágrimas, da fome e sede de justiça, da pureza de
coração e da luta pela paz, mesmo à custa da perseguição por causa da justiça.
Na verdade, “felizes os misericordiosos
porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7) é uma das proclamas do Sermão da Montanha (vd Mt 5,1-12). E esta misericórdia concretiza-se no perdão e na
piedade, que se recebe de Deus e se deve replicar nos irmãos: “Não devias também tu ter piedade do teu
companheiro como Eu tive de ti?” (Mt 18,33). E o apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia é
uma das caraterísticas da Sabedoria que vem do Alto:
“Existe alguém entre vós
que seja sábio e entendido? Mostre, então, pelo seu bom procedimento, que as
suas obras estão repassadas da mansidão própria da sabedoria. Mas, se tendes no vosso coração uma
inveja amarga e um espírito dado a contendas, não vos vanglorieis nem falseeis
a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do Alto, mas é a terrena, a da
natureza corrompida, a diabólica. Pois,
onde há inveja e espírito faccioso também há perturbação e todo o género de
obras más. Mas a sabedoria que
vem do Alto é, em primeiro lugar, pura; depois, é pacífica, indulgente, dócil, cheia
de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem hipocrisia; e é com a paz que uma colheita de
justiça é semeada pelos obreiros da paz.”.
Aliás
o cúmulo da misericórdia é o Bom Pastor dar a vida pelas ovelhas (cf Jo 10,11.13), pelos homens para que
tenham a vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10) e, à hora da morte, exclamar “Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). E
esta misericórdia assumida exponencialmente fica espelhada nas parábolas da
misericórdia, convenientemente explanadas no capítulo 15 de São Lucas. O Bom Pastor,
que tenha 100 ovelhas, vai à procura da ovelha perdida até a encontrar, mesmo
que tenha de deixar as outras 99 no deserto; e, quando a encontra, põe-na
alegremente aos ombros e, ao aproximar-se da vizinhança, convida à alegria (cf Lc
15,3-7). Atitude semelhante toma a mulher que tem 10 dracmas e,
tendo perdido uma, não descansa até a encontrar e, encontrada, convida as
vizinhas à alegria (cf Lc 15,8-10). E já vimos, noutras ocasiões,
como foi a paciência do Pai que tinha dois filhos: respeitou a liberdade de
cada um, mas fez festa quando o pródigo voltou e instou junto do filho mais
velho para que alinhasse na festa (cf Lc 15,11-32). Com
efeito, haverá mais alegria no Céu, entre
os anjos de Deus, por um só pecador que se converte do que por noventa e nove
justos que não necessitam de conversão (cf Lc 15,7.10)
***
Também o Padre Gentili, Diretor do Departamento para a família da CEI (Conferência
Episcopal Italiana),
comentando o resultado dos Sínodo dos Bispos de 2015, no passado dia 28 de
outubro, sintetizou o resultado dos trabalhos sinodais na frase lapidar: “O
convite é conjugar verdade e misericórdia”.
Depois, explicou como acolher as ideias levantadas no
Sínodo.
Evocando a lembrança de Francisco de que a tarefa da
Igreja é “proclamar a misericórdia de
Deus, chamar à conversão e levar todas as pessoas à salvação”, Paolo
Gentili disse que a tarefa de aplicação do Sínodo deve ser entendida à luz do
Relatório Final do Sínodo (Relatio
Synodi) e deve ser feita com grande
cuidado e sensibilidade pastoral com relação às famílias que vivem situações de
sofrimento e de conflito.
Na
entrevista que deu ao Zenit – o mundo
visto de Roma – Gentili explicou como a Igreja que vive em Itália recolherá
alguns dos itens abordados no Sínodo: dos cursos de preparação para o
matrimónio ao acompanhamento de famílias que sofreram perda, passando pela
objeção de consciência dos educadores perante ideias e medidas que vão contra a
moral cristã. Não faltam alguns considerandos sobre o tema que tem suscitado o
maior interesse dos meios de comunicação: a
comunhão aos divorciados recasados civilmente.
Questionado sobre o balanço
global que faz deste Sínodo, chamou-lhe “uma obra-prima do Espírito”. E, recordando que foi uma jornada de dois anos,
que teve o primeiro ponto alto na assembleia extraordinária de 2014, acentua
que o Sínodo proporcionou “uma dupla consulta ao povo, para depois voltar às
salas sinodais para a assembleia geral ordinária que terminou recentemente”. E
utiliza uma interessante metáfora para explicar o dinamismo sinodal:
“Inicialmente,
parecia ouvir uma orquestra numa espécie de sala
de ensaio, onde cada um afinava o próprio instrumento. Depois, porém,
apareceu uma maravilhosa sinfonia e as posições diferentes revelaram-se uma
riqueza, descortinando a catolicidade e a universalidade da Igreja.”.
A seguir,
sublinhou os “três ingredientes especiais” inoculados neste itinerário pelo
Papa já na vigília com que assinalou a abertura da assembleia no ano passado: escuta mútua, confronto fraterno, olhar em
Cristo”. E, como suporte do enunciado de que permanecer “prisioneiro de
esquemas do passado” acarreta “o risco de não comunicar mais a vitalidade, a
beleza e a perene novidade do evangelho”, declarou:
“É muito bom
fazer parte de uma Igreja viva, onde os pais se sentam à mesa com os filhos,
antes de tomarem decisões importantes. Diria que as famílias iluminaram
realmente o sínodo e indiretamente também indicaram o método de trabalho aos
Padres sinodais. Um pai e uma mãe que têm quatro filhos, embora tendo critérios
educativos claros, nunca poderão educar o quarto como o primeiro; não só porque
eles mesmos mudaram e porque aquele filho é único, mas, especialmente,
por encarnar o melhor possível os valores de sempre naquele determinado
contexto histórico.”.
Sobre a alegação de que a comunhão
aos divorciados que assumiram uma outra relação afetiva, tendo sido um
tema que catalisou o interesse da Comunicação Social, não tem referência
visível na Relatio Synodi, chamou a atenção para a existência de alguns verbos-chave que indiciam a
atitude a tomar relativamente a quem experimentou o fracasso do casamento e
encetou uma nova união: acompanhar,
discernir e incluir. Depois, explica:
“O
acompanhamento é a tarefa fundamental da Igreja, que é mestra e mãe, e,
portanto, chamada a curar os feridos com misericórdia. O discernimento é a
tarefa principal dos pastores e de seus colaboradores. Trata-se de deixar de
ser “lentos de coração” (Lc 24,25) como os dois discípulos de Emaús,
não reconhecendo naquela pessoa ferida Jesus que passa ao nosso lado, ou
amalgamando com atitudes confusas e erróneas situações completamente
diferentes. A inclusão é a atitude das parábolas da misericórdia; em
particular, da mulher que se deixa iluminar pela lâmpada e, reencontrando a
moeda perdida, devolve todo o valor (cf Lc 15,8-10).”.
E é na
síntese desta explicação que se encontra como corolário o enunciado em
epígrafe, pois Paolo Gentili confessa:
“Em última
análise, o que realmente mudou é a procura de um novo olhar sobre a comunidade
dos crentes, para que abandone uma atitude de julgamento
sobre as famílias feridas, conjugando eficazmente verdade e
misericórdia. Só quem está em conversão pode guiar o outro na mudança
do coração, senão, transforma-se em “cego e guia de cegos” (Mt 15,14). Com este
olhar cheio de ternura poderão também indicar caminhos penitenciais que, em
certas circunstâncias, abram a possibilidade de receber a comunhão eucarística,
mas, antes de tudo, há uma comunhão de abraços a ser feita.”.
Em relação às famílias
“despedaçadas” pelo falecimento de um dos seus membros, o Padre Gentili
aponta “uma pastoral de acompanhamento para
aqueles que experimentaram um luto na própria família”, “à luz do mistério
pascal”, não deixando essas famílias sozinhas. Fixando-se no facto de Deus se ter
feito carne em Jesus de Nazaré no contexto de uma família com muitas
vicissitudes, salienta como “já no nascimento foi excluído pelos que moravam
nos albergues, para depois emigrar para o Egito fugindo de Herodes”, e como
foi, depois, conduzido à morte de cruz, “arrancado de sua mãe e dos seus entes
queridos”. Porém, o encontro com Maria Madalena na gruta da ressurreição
ilumina, segundo Gentili, “um caminho de esperança”, que, “passando pelo vale
de lágrimas, transforma-o em uma fonte” (Sl 84/83,7).
No Sínodo
como na Sagrada Escritura – reconhece – se evidenciam as lágrimas das mães que
perderam o filho, da mulher que perdeu o cônjuge. E, no olhar da fé, a dor
excruciante pode transfigurar-se e a ferida tornar-se foco de luz.
Porém,
nestas situações, adverte o especialista, são necessários samaritanos
especialmente humildes, delicados e prudentes – que ousem enveredar pela “força revolucionária da ternura”, como
quer Francisco – porque, às vezes, a pessoa ferida pode nem sequer aceitar ser
abraçada, correndo-se o risco de lhe fazer um dano maior por inabilidade de
acompanhamento.
A propósito
da pobreza de conteúdo dos cursos de preparação para o matrimónio,
o Padre Gentili destaca o facto de a Relatio Synodi descrever a família como fábrica de esperança e de exortar “as comunidades para uma nova proclamação
do Evangelho do matrimónio”. Depois, refere que muitas dioceses italianas
renovaram as vias de preparação para o casamento em consonância com as
orientações da CEI sobre a preparação para o matrimónio e sobre a família. E
aproveita o ensejo para anunciar que, motivada pelas recentes catequeses do
Papa sobre o amor em família, em breve, a CEI lançará um curso mensal online para animadores dos itinerários
de preparação ao matrimónio, havendo já milhares de inscritos de toda a Itália
e também do exterior. E – reconhecimento que a efetiva presença numerosa de
pessoas, na Itália, já conviventes que se preparam para as núpcias pede uma
nova sensibilidade pastoral, capaz de mostrar o rosto duma Igreja acolhedora e
alegre, que não via a hora de reencontrar os seus filhos – explica, um pouco ao
jeito do Pontífice, o que se pretende:
“Trata-se de
formar pequenas equipas onde sacerdotes e cônjuges acompanham na aventura do amor.
O segredo é mostrar o matrimónio não tanto como um jogo de obrigações ou
proibições, mas como uma verdadeira Graça e iluminar a família como uma chamada
à plenitude de vida e à felicidade: Cristo cura o coração humano e torna
possível amar-se para sempre. Nos corredores, mais que ensinar a vencer, é
necessário mostrar que é possível levantar-se das quedas dizendo todos os dias com licença, obrigado e desculpa ao
próprio cônjuge e também ao próprio filho e também à sogra.”.
Quanto ao apelo à “liberdade da
Igreja de ensinar a própria doutrina” e ao “direito à objeção de consciência dos educadores”, Gentili não
deixa de expor a situação que se vive na Itália. Os problemas têm de ser ultrapassados
com sabedoria, respeito e paciência.
Com efeito,
o contexto cultural, que mudou profundamente, mostra claramente a dificuldade
de hoje educar na vida do Evangelho. Não obstante é este justamente o
desafio: na esteira da encíclica Ecclesiam
Suam, de Paulo VI, guardar uma profunda simpatia pelo humano e dialogar com
o mundo em que vivemos.
Neste
sentido, será realizado, de 9 a 13 de novembro, o Congresso da Igreja Italiana em torno do tema “Em Jesus Cristo o novo humanismo”. Aí, as famílias crentes, como
nos primórdios da cristandade, são chamadas a humanizar os ambientes, às vezes,
com escolhas em contracorrente, mas, sobretudo construindo pontes, em vez de
levantar muros – na convicção certa de que, às vezes, “assim como na família,
na sociedade, o testemunho humilde e silencioso tem uma eficácia surpreendente
e é Evangelho puro”.
***
Oxalá
que o Sínodo da Verdade e da Misericórdia não seja encerrado na gaveta do
fixismo, inércia e da comodidade, mas gere a oportunidade de o Espírito renovar
a face da Terra.
2015.10.31 –
Louro de Carvalho
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