Vem
o arrazoado seguinte, sob o título enunciado em epígrafe, a propósito das
declarações do Presidente da República na Itália à margem da sua participação
no X Encontro COTEC Europa, em que marcam presença também os Chefes de Estado de Espanha e de Itália, além de
algumas dezenas de empresários portugueses.
Referindo-se aos ecos críticos da sua comunicação ao país em
que emoldurou a indigitação do primeiro-ministro com o tecimento de numerosas considerações
polémicas e justificações políticas, declarou que não está arrependido de
nenhuma das linhas daquela comunicação, considera que ela foi muito clara e porfia
que nunca se guiou por qualquer interesse pessoal, mas sempre pelo interesse
nacional.
***
Quem
está minimamente por dentro da economia da comunicação sabe perfeitamente que o
ato de comunicação, para surtir eficácia, além de dever sido despido de
quaisquer ruídos de canal ou de contexto, tem de partir do conhecimento
recíproco da parte de emissor e de recetor e de o ter em conta.
Ora,
se qualquer ato eleitoral cria, por si só, um conjunto de ruídos típicos de uma
democracia que funcione, as recentes eleições legislativas possibilitaram a
criação em torno de si de vários fatores de ruído, o qual se tornou efetivo.
Recordam-se alguns, a título de exemplo. Desde logo, assinala-se a
disponibilidade de Cavaco Silva ter em meados de 2013 apelado a um acordo
tripartidário (deixando de fora os não aproveitáveis
para a governança),
a troco duma dissolução do Parlamento daí a um ano, com a consequente marcação
de eleições (como se a dissolução fosse negociável e pudesse ser anunciada
a prazo… podendo o lançamento da “bomba atómica” ser anunciada ao alvo com um
ano de antecedência).
Depois, verificou-se, a pretexto da necessidade de cumprir a Constituição e a
lei eleitoral, a sua persistência em contrariar a antecipação de eleições para
a primavera de 2015, a tempo de se preparar o primeiro orçamento após a saída
técnico-política da crise de ajustamento, acabando por a demarcar para o
passado dia 4 de outubro.
Por
várias vezes, o Chefe de Estado apelou ao compromisso e aconselhava a que,
fosse qual fosse o resultado das eleições de outubro, o governo que delas
resultasse deveria apoiar-se numa base parlamentar maioritária. Porém, mal
foram conhecidos os resultados eleitorais, de que não resultou uma força
ganhadora com maioria absoluta de deputados na Assembleia da República, parece
que o país se sentiu numa situação ambiental fortemente sísmica. A esta
situação, o PCP e o BE, cumprindo a palavra dada ao seu eleitorado, garantiram
a apresentação de moção de rejeição do programa de governo minoritário da força
dita ganhadora, mas sem maioria; o líder do PS, em nome da índole responsável do
partido, garantiu que não alinharia numa coligação negativa para rejeição dum
programa de governo sem ter uma alternativa a contrapor.
O
Presidente da República, que dizia saber bem o que fazer a seguir às eleições,
optou por um dia de reflexão; os corifeus da coligação eleitoral, desfeita por
força do art.º 22.º da lei eleitoral, apressaram-se a fazer um acordo de
governo, esquecendo-se de evitar que o líder do PS tratasse de construir uma
alternativa de governo. E, entretanto, a 6 de outubro, o mesmo Presidente
comunicou ao país que encarregara o líder do partido mais votado de “desenvolver
diligências com vista a avaliar as possibilidades de constituir uma solução
governativa que assegure a estabilidade política e a governabilidade do País”.
Já, por este facto, Cavaco Silva foi objeto de duras críticas
da parte dalguns setores por alegadamente se ter antecipado à audição dos
partidos com assento parlamentar. Porém, o que fez criar o elã da coligação de
esquerda foi a condição imposta pelo Presidente da República:
“O Governo a empossar pelo Presidente da República
deverá dar aos portugueses garantias firmes de que respeitará os compromissos
internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes
opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime
democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos
cidadãos. Em particular, exige-se a observância das obrigações decorrentes da
participação nas organizações internacionais de defesa coletiva, como a NATO,
e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro, assim como o aprofundamento
da relação transatlântica e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados
de expressão portuguesa, nomeadamente no âmbito da CPLP.”.
Por
isso e na sequência duma certa disponibilidade anteriormente revelada, PCP e BE
vieram afirmar claramente que o partido socialista tinha todas as condições de
formar governo, a menos que não o quisesse fazer. E multiplicaram-se as
negociações políticas e técnicas conducentes a um acordo tripartidário com
vista à constituição de um governo alternativo ao que a coligação teimaria em
apresentar ao Presidente e ao Parlamento, sendo reiterada a intenção de
inviabilizar um governo que persistisse na continuação das políticas praticadas
no último quadriénio.
É
certo que também houve sessões de pseudonegociação entre a coligação e o PS,
mas as mútuas acusações revelavam que o desejo de êxito negocial nem no
hiperurânio platónico tinha qualquer existência – o que se compreendia dadas as
ambições do novel líder do PS, a mudança pragmaticamente propalada pelos
interlocutores do PS e o excesso de zelo do Presidente, presumivelmente acima
da Constituição, que se revelou na linha da pretensa tradição.
***
Quando,
a 22 de outubro, o Presidente indigitou o primeiro-ministro, como era de
esperar, emoldurou o ato de considerações que, na sustância, não passam de
reiteração das suas posições anteriores, mas com um enquadramento, uma clareza
e uma especificação ao detalhe, de que não restam quaisquer dúvidas sobre as
suas intenções, a pôr em prática desde que possível.
Os
felizes contemplados com a decisão presidencial, mesmo que atingidos por algum
quinhão da crítica presidencial, enalteceram a atitude de Cavaco
consubstanciada na indigitação do primeiro-ministro na pessoa do líder da força
partidária que ganhara as eleições e na alocução presidencial muito “bem
estruturada” e “democrática”. Os autoexcluídos e os governoexcluídos fizeram
disparar as setas da crítica ao Presidente.
Sobre
estas reações já me pronunciei noutra ocasião.
O
que se verifica é que a predita comunicação, que o Presidente subscreve e
reitera por inteiramente clara, é tudo menos isso, dado o bloqueio decorrente
do conhecimento que se tem do perfil do Presidente e das suas anteriores
declarações, desde 1980, e dada a índole dos partidos, que não se contentam com
o estatuto político de forças de protesto, mas que espreitam tenazmente a
oportunidade de atingir o poder ou de, pelo menos, o condicionar fortemente.
É
óbvio que o Presidente da República não disse explicitamente que não empossaria
um governo tripartido do PS, PCP e BE (apresentado pelo PS com
o apoio do PCP e do BE).
Porém, quem o ouviu e/ou leu, percebeu (e bem) que ele não o faria, a não ser
que aceitasse contradizer-se, uma vez que o senso canino nos faz inferir que,
ao colocar-se uma condição essencial para a prática de um determinado ato, não
se vai praticar um ato que contrarie essa condição.
Refere
o Presidente que “é significativo que não tenham
sido apresentadas, por essas forças políticas (PS, PCP e BE), garantias de uma solução alternativa estável, duradoura e
credível”. Resta saber que acordo – estável, duradouro e credível – terá sido
apresentado por Passo Coelho e Paulo Portas. Nem o Presidente da República é um
notário que tenha de analisar qualquer acordo partidário e dar-lhe pública
forma. Deve “ouvir” os partidos, não analisar em pormenor os seus normativos. É
ao Parlamento que incumbe a análise do programa de governo.
É também óbvio que o Chefe de Estado não disse que os
deputados do Partido Socialista deviam quebrar a disciplina partidária na
apreciação do programa do governo a apresentar por Passos Coelho. Porém, notando
a emenda textual que fez – “a última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos Deputados à
Assembleia da República” – disse tudo, até, porque depois diz sempre Deputados (mais quatro vezes). Não é expectável que sejam deputados do PSD, do CDS, do
BE, do PEV, do PCP ou do PAN a abster-se, pois não?!
É, por outro lado, excrescente – diga-se em abono da verdade
– que o Presidente venha hoje dizer que assumirá as suas
responsabilidades e que a sua única preocupação “é a defesa do superior
interesse nacional, depois de estudar muito aprofundadamente todos os
problemas”. Ninguém esperava que viesse dizer o contrário. Qual é o político
que, em casos como este, não faz exatamente o mesmo tipo de discurso? E
não vale a pena também vir porfiar que nunca
teve nem tem qualquer interesse pessoal, desde o primeiro dia do seu mandato,
até ao último dia do mesmo: não se esperava que dissesse outra coisa e nenhum
político o diria. Porém, todos percebem que o político Cavaco Silva, que se diz
não político (que disse não falar em Roma da
política portuguesa, mas falou da sua comunicação ao país e referiu explicitamente
que em comunicado disse ter visto e aceitado a proposta governativa que lhe foi
apresentada e daria posse no próximo dia 30), foi o homem que melhor preparou a sua
agenda política. Quem não se lembra da postura assumida de concordância com a generalidade
das medidas implementadas por Sócrates, no tempo da sua maioria, da tolerância
no tempo da minoria até à reeleição presidencial e da agressividade discursiva após
a reeleição? E quem não se lembra de que levou o seu partido a apoiar a
candidatura presidencial de Freitas do Amaral e, depois, levou o mesmo partido
a apoiar a reeleição de Mário Soares?
***
Enfim,
tanto Cavaco Silva conhece o contexto dos seus destinatários como estes
conhecem o contexto comunicacional do Presidente. Ora, como uns contextos e
outros são controversos, mais de dialética do que de postura cooperativa,
surgem inevitavelmente estas interpretações díspares e estas reiterações
presidenciais. Mas isto também é democracia!
E
vir dizer que não tira uma linha ao que disse a 22 de outubro, para reiterar as
suas ideias, as intenções e a postura de que assumirá as suas
responsabilidades, quadra bem com a sua personalidade determinada, mas não
atesta a não inatacabilidade das suas posições nem o seu estilo de não
contradição. Aliás, tanto fica mal ao político enveredar pelo estilo de vir sistematicamente
explicar o que disse antes, por ter sido entendido ao invés das suas intenções
discursivas, como vir a adotar a postura de estar sempre a reiterar o antes
afirmado como se as circunstâncias fossem imutáveis e as críticas fossem sempre
desajustadas e destrutivas.
Os
políticos – e também Cavaco Silva – deveriam saber que as palavras são de quem
as proferiu. Não obstante a paternidade discursiva, após a sua pronúncia
perante um interlocutor e, por maioria de razão, se for público, as palavras deixam
de pertencer em exclusivo ao emissor, passando a pertencer também ao recetor. A
palavra pronunciada é património da Comunidade!
2015.10.28 –
Louro de Carvalho
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