quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Dos ruídos da presidencial comunicação

Vem o arrazoado seguinte, sob o título enunciado em epígrafe, a propósito das declarações do Presidente da República na Itália à margem da sua participação no X Encontro COTEC Europa, em que marcam presença também os Chefes de Estado de Espanha e de Itália, além de algumas dezenas de empresários portugueses.
Referindo-se aos ecos críticos da sua comunicação ao país em que emoldurou a indigitação do primeiro-ministro com o tecimento de numerosas considerações polémicas e justificações políticas, declarou que não está arrependido de nenhuma das linhas daquela comunicação, considera que ela foi muito clara e porfia que nunca se guiou por qualquer interesse pessoal, mas sempre pelo interesse nacional. 
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Quem está minimamente por dentro da economia da comunicação sabe perfeitamente que o ato de comunicação, para surtir eficácia, além de dever sido despido de quaisquer ruídos de canal ou de contexto, tem de partir do conhecimento recíproco da parte de emissor e de recetor e de o ter em conta.
Ora, se qualquer ato eleitoral cria, por si só, um conjunto de ruídos típicos de uma democracia que funcione, as recentes eleições legislativas possibilitaram a criação em torno de si de vários fatores de ruído, o qual se tornou efetivo. Recordam-se alguns, a título de exemplo. Desde logo, assinala-se a disponibilidade de Cavaco Silva ter em meados de 2013 apelado a um acordo tripartidário (deixando de fora os não aproveitáveis para a governança), a troco duma dissolução do Parlamento daí a um ano, com a consequente marcação de eleições (como se a dissolução fosse negociável e pudesse ser anunciada a prazo… podendo o lançamento da “bomba atómica” ser anunciada ao alvo com um ano de antecedência). Depois, verificou-se, a pretexto da necessidade de cumprir a Constituição e a lei eleitoral, a sua persistência em contrariar a antecipação de eleições para a primavera de 2015, a tempo de se preparar o primeiro orçamento após a saída técnico-política da crise de ajustamento, acabando por a demarcar para o passado dia 4 de outubro.
Por várias vezes, o Chefe de Estado apelou ao compromisso e aconselhava a que, fosse qual fosse o resultado das eleições de outubro, o governo que delas resultasse deveria apoiar-se numa base parlamentar maioritária. Porém, mal foram conhecidos os resultados eleitorais, de que não resultou uma força ganhadora com maioria absoluta de deputados na Assembleia da República, parece que o país se sentiu numa situação ambiental fortemente sísmica. A esta situação, o PCP e o BE, cumprindo a palavra dada ao seu eleitorado, garantiram a apresentação de moção de rejeição do programa de governo minoritário da força dita ganhadora, mas sem maioria; o líder do PS, em nome da índole responsável do partido, garantiu que não alinharia numa coligação negativa para rejeição dum programa de governo sem ter uma alternativa a contrapor.
O Presidente da República, que dizia saber bem o que fazer a seguir às eleições, optou por um dia de reflexão; os corifeus da coligação eleitoral, desfeita por força do art.º 22.º da lei eleitoral, apressaram-se a fazer um acordo de governo, esquecendo-se de evitar que o líder do PS tratasse de construir uma alternativa de governo. E, entretanto, a 6 de outubro, o mesmo Presidente comunicou ao país que encarregara o líder do partido mais votado de desenvolver diligências com vista a avaliar as possibilidades de constituir uma solução governativa que assegure a estabilidade política e a governabilidade do País”.
Já, por este facto, Cavaco Silva foi objeto de duras críticas da parte dalguns setores por alegadamente se ter antecipado à audição dos partidos com assento parlamentar. Porém, o que fez criar o elã da coligação de esquerda foi a condição imposta pelo Presidente da República:
“O Governo a empossar pelo Presidente da República deverá dar aos portugueses garantias firmes de que respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos cidadãos. Em particular, exige-se a observância das obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de defesa coletiva, como a NATO, e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro, assim como o aprofundamento da relação transatlântica e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados de expressão portuguesa, nomeadamente no âmbito da CPLP.”.

Por isso e na sequência duma certa disponibilidade anteriormente revelada, PCP e BE vieram afirmar claramente que o partido socialista tinha todas as condições de formar governo, a menos que não o quisesse fazer. E multiplicaram-se as negociações políticas e técnicas conducentes a um acordo tripartidário com vista à constituição de um governo alternativo ao que a coligação teimaria em apresentar ao Presidente e ao Parlamento, sendo reiterada a intenção de inviabilizar um governo que persistisse na continuação das políticas praticadas no último quadriénio.
É certo que também houve sessões de pseudonegociação entre a coligação e o PS, mas as mútuas acusações revelavam que o desejo de êxito negocial nem no hiperurânio platónico tinha qualquer existência – o que se compreendia dadas as ambições do novel líder do PS, a mudança pragmaticamente propalada pelos interlocutores do PS e o excesso de zelo do Presidente, presumivelmente acima da Constituição, que se revelou na linha da pretensa tradição.
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Quando, a 22 de outubro, o Presidente indigitou o primeiro-ministro, como era de esperar, emoldurou o ato de considerações que, na sustância, não passam de reiteração das suas posições anteriores, mas com um enquadramento, uma clareza e uma especificação ao detalhe, de que não restam quaisquer dúvidas sobre as suas intenções, a pôr em prática desde que possível.
Os felizes contemplados com a decisão presidencial, mesmo que atingidos por algum quinhão da crítica presidencial, enalteceram a atitude de Cavaco consubstanciada na indigitação do primeiro-ministro na pessoa do líder da força partidária que ganhara as eleições e na alocução presidencial muito “bem estruturada” e “democrática”. Os autoexcluídos e os governoexcluídos fizeram disparar as setas da crítica ao Presidente.
Sobre estas reações já me pronunciei noutra ocasião.
O que se verifica é que a predita comunicação, que o Presidente subscreve e reitera por inteiramente clara, é tudo menos isso, dado o bloqueio decorrente do conhecimento que se tem do perfil do Presidente e das suas anteriores declarações, desde 1980, e dada a índole dos partidos, que não se contentam com o estatuto político de forças de protesto, mas que espreitam tenazmente a oportunidade de atingir o poder ou de, pelo menos, o condicionar fortemente.
É óbvio que o Presidente da República não disse explicitamente que não empossaria um governo tripartido do PS, PCP e BE (apresentado pelo PS com o apoio do PCP e do BE). Porém, quem o ouviu e/ou leu, percebeu (e bem) que ele não o faria, a não ser que aceitasse contradizer-se, uma vez que o senso canino nos faz inferir que, ao colocar-se uma condição essencial para a prática de um determinado ato, não se vai praticar um ato que contrarie essa condição.
Refere o Presidente que “é significativo que não tenham sido apresentadas, por essas forças políticas (PS, PCP e BE), garantias de uma solução alternativa estável, duradoura e credível”. Resta saber que acordo – estável, duradouro e credível – terá sido apresentado por Passo Coelho e Paulo Portas. Nem o Presidente da República é um notário que tenha de analisar qualquer acordo partidário e dar-lhe pública forma. Deve “ouvir” os partidos, não analisar em pormenor os seus normativos. É ao Parlamento que incumbe a análise do programa de governo.
É também óbvio que o Chefe de Estado não disse que os deputados do Partido Socialista deviam quebrar a disciplina partidária na apreciação do programa do governo a apresentar por Passos Coelho. Porém, notando a emenda textual que fez – “a última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos Deputados à Assembleia da República” – disse tudo, até, porque depois diz sempre Deputados (mais quatro vezes). Não é expectável que sejam deputados do PSD, do CDS, do BE, do PEV, do PCP ou do PAN a abster-se, pois não?!
É, por outro lado, excrescente – diga-se em abono da verdade – que o Presidente venha hoje dizer que assumirá as suas responsabilidades e que a sua única preocupação “é a defesa do superior interesse nacional, depois de estudar muito aprofundadamente todos os problemas”. Ninguém esperava que viesse dizer o contrário. Qual é o político que, em casos como este, não faz exatamente o mesmo tipo de discurso? E não vale a pena também vir porfiar  que nunca teve nem tem qualquer interesse pessoal, desde o primeiro dia do seu mandato, até ao último dia do mesmo: não se esperava que dissesse outra coisa e nenhum político o diria. Porém, todos percebem que o político Cavaco Silva, que se diz não político (que disse não falar em Roma da política portuguesa, mas falou da sua comunicação ao país e referiu explicitamente que em comunicado disse ter visto e aceitado a proposta governativa que lhe foi apresentada e daria posse no próximo dia 30), foi o homem que melhor preparou a sua agenda política. Quem não se lembra da postura assumida de concordância com a generalidade das medidas implementadas por Sócrates, no tempo da sua maioria, da tolerância no tempo da minoria até à reeleição presidencial e da agressividade discursiva após a reeleição? E quem não se lembra de que levou o seu partido a apoiar a candidatura presidencial de Freitas do Amaral e, depois, levou o mesmo partido a apoiar a reeleição de Mário Soares?
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Enfim, tanto Cavaco Silva conhece o contexto dos seus destinatários como estes conhecem o contexto comunicacional do Presidente. Ora, como uns contextos e outros são controversos, mais de dialética do que de postura cooperativa, surgem inevitavelmente estas interpretações díspares e estas reiterações presidenciais. Mas isto também é democracia!
E vir dizer que não tira uma linha ao que disse a 22 de outubro, para reiterar as suas ideias, as intenções e a postura de que assumirá as suas responsabilidades, quadra bem com a sua personalidade determinada, mas não atesta a não inatacabilidade das suas posições nem o seu estilo de não contradição. Aliás, tanto fica mal ao político enveredar pelo estilo de vir sistematicamente explicar o que disse antes, por ter sido entendido ao invés das suas intenções discursivas, como vir a adotar a postura de estar sempre a reiterar o antes afirmado como se as circunstâncias fossem imutáveis e as críticas fossem sempre desajustadas e destrutivas.
Os políticos – e também Cavaco Silva – deveriam saber que as palavras são de quem as proferiu. Não obstante a paternidade discursiva, após a sua pronúncia perante um interlocutor e, por maioria de razão, se for público, as palavras deixam de pertencer em exclusivo ao emissor, passando a pertencer também ao recetor. A palavra pronunciada é património da Comunidade!

2015.10.28 – Louro de Carvalho

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