Segundo o site zenit.org,
“o mundo visto de Roma”, uma das memórias litúrgicas que se podem celebrar a 8
de outubro de cada ano é a de Santa Pelágia. A razão de ser da evocação desta
especial amiga de Deus tem a ver com a celebração da XIV Assembleia Geral do
Sínodo dos Bispos, sendo necessário perceber as diferenças e as eventuais
semelhanças entre o que se passou no século V em Antioquia e o que se pode
passar hoje em Roma.
Sucedendo que uns colocam a sua vida terrena no século
III, outros no século IV e outros no século V, a dúvida dissipa-se com a informação
fornecida sobre São Nono, bispo de Heliópolis e, mais tarde, de Edessa.
Com efeito, Jaime, diácono da igreja de Heliópolis,
diz-nos que Nono fora um grande homem, um perfeito monge, levado do seu Mosteiro
de Tabenna para o múnus episcopal de Heliópolis, graças à sua vida de eminente virtude.
Devido a conturbação gerada no quadro do Segundo Concílio de Éfeso, que levou à
deposição do Bispo Ibas de Edessa, Nono tornou-se o bispo desta cidade. E, quando
o Papa, por meio do Concílio de Calcedónia, em 451, decidiu pela restituição da
cátedra episcopal a Ibas, Nono manteve as faculdades episcopais em Edessa até à
morte de Ibas, em 457, ano em que lhe sucedeu como metropolita.
Crê-se que, neste ínterim de 6 anos, Nono tenha
passado ao Egito onde
era conhecido como Nono ou Nano de Heliópolis, tendo lá convertido muitos
habitantes, entre os quais Pelágia.
É, portanto, na segunda metade do
século V que se deve situar a conversão da santa em causa.
***
De acordo
com a tradição, Pelágia era uma donzela de 15 anos, nascida
em Antioquia, que atuava como bailarina e era dotada de
inigualável beleza.
Era
efetivamente uma bailarina belíssima, escandalosa, muito divertida, ostensivamente
festiva e pagã. Costumava encantar e seduzir os homens com a dança, alegria,
roupas, joias e outros ornamentos luxuosos utilizados exclusivamente com essa
finalidade. Com isso, tornou-se uma das figuras mais conhecidas da vida mundana
e social da sua cidade e conseguiu sólida riqueza e grande influência. A sua
fama ultrapassava os limites do movimentado polo económico e social, pois
muitos nobres ricos vinham apenas para poder estar com ela, que aumentava cada
vez mais suas posses e poder. Em virtude da sua beleza e artimanhas, esta
donzela, que encantava os homens e assiduamente os envolvia por veredas de
promiscuidade e devassidão, chegou a virar a cabeça de muitos homens, inclusive
a do irmão do Imperador.
Entretanto,
foi convocado para Antioquia o Sínodo dos Bispos da região. No contexto daquela
assembleia episcopal, sucedeu que se encontrava diante da Basílica de São
Juliano o Bispo de Edessa São Nono a pregar aos outros bispos, no
quadro da pregação inserida na procissão a caminho da sessão sinodal, quando
Pelágia passa a cavalo em frente ao pórtico, seguida por uma pequena multidão
de homens que a acompanhavam maravilhados com sua beleza, ficando ela certa de
que as atenções de todos eram apenas voltadas para ela.
São Nono
interrompeu a pregação e deteve-se a olhar a jovem. Após a sua passagem, o
Bispo de Edessa interpelou reiteradamente os demais se não tinham ficado muito
contentes por verem tão grande e rara beleza.
Perante o
silêncio envergonhado dos seus irmãos no episcopado, o pregador chorou de
arrependimento e confessou o seu encantamento e felicidade, pois a beleza daquela
donzela lhe agradara imenso. Porém, inferiu que Deus se serviu desta beleza
extraordinária para ali vir como testemunha do juízo de Deus sobre tudo,
incluindo a qualidade do serviço episcopal daqueles pastores colocados por Deus
à frente das dioceses da região.
Sendo assim,
pediu a cada um dos elementos do seu distinto auditório que pensasse quantas horas
aquela mulher gastaria no seu camarim a lavar-se, a perfumar-se, a
vestir-se e a adornar-se com o máximo de cuidado e atenção para obter o
encantamento dos homens. Ao mesmo tempo, recordava que para os bispos (aliás para
todos os cristãos) há no céu um
Pai todo-poderoso, um esposo imortal que faz irreversíveis promessas para
aqueles que o servem, que oferece riquezas celestiais e recompensas eternas, ao
passo que os Pastores (e os cristãos em geral) não realizam pela Igreja e pelas almas a metade do que ela faz.
Daquela
sua leviandade, provavelmente como a dos demais, o santo bispo extraiu, como se
viu, um útil subtema para a continuação da sua pregação: se uma mulher se
embeleza daquele modo para agradar a um simples mortal como ela, com muito
maior razão deveremos nós cuidar do adorno da nossa alma destinada às místicas
núpcias com Deus. E com a oração e a boa palavra conseguiu realmente recolocar
no redil de Bom Pastor aquele auditório e, como se verá, aquela bela ovelha
tresmalhada.
Naquela
noite, São Nono sonhou que, durante a celebração da Santa Missa, um pássaro
sujo e violento o tentou impedir. Porém, o celebrante conseguiu apanhá-lo e
mergulhá-lo numa fonte, saindo dela o pássaro inteiramente limpo.
Na manha do
dia seguinte, enquanto o Bispo celebrava, Pelágia, que tinha acorrido ao
templo, sentiu-se tocada pela pregação e pediu a São Nono, através de uma
mensagem escrita, que a acolhesse. O Bispo aceitou recebê-la e verificou
as suas disposições. Entretanto, houve por bem enviá-la a uma senhora cristã, com vista à
preparação para o batismo. Foi assim que, oito dias depois, ela trocou as
roupas e adereços de seda e ouro por uma túnica branca para ser batizada. O
santo bispo batizou-a e ministrou-lhe a sagrada comunhão.
À
noite, com autorização de Nono, Pelágia trocou a sua túnica de neófita por uma
de penitente, deu ao
bispo toda a sua fortuna e bens, que ele entregou ao tesoureiro da igreja para
provisão a viúvas e órfãos. Depois, abandonou Antioquia e dirigiu-se a pé para
Jerusalém, onde escavou na rocha uma cela para si no Monte das Oliveiras, lugar em que Jesus
viveu a sua agonia da Paixão, para aí viver como
eremita e penitente e onde veio a falecer três anos depois de muitas
penitências e orações.
***
São João Crisóstomo, sob o nome
de Pelágia e louvando a sua coragem, refere uma jovem mártir de Antioquia, que
se jogou da janela para evitar a perda da virgindade.
O mesmo santo bispo, sem lhe
apontar o nome, narra as vicissitudes duma célebre atriz, tão bela como
dissoluta que, depois da conversão, levou austera vida de penitência. Porém, um
autor desconhecido, que se autonomeia Tiago, identifica-a com Santa Pelágia.
Este pseudoTiago acrescenta que aquela
mulher convertida e apostada na mudança radical de vida, para não ser objeto de
desejos desordenados, travestiu-se de homem e viveu longamente em penitência,
purificando-se, assim, dos desregramentos do passado.
Porque vivia
vestida como homem, para evitar que a sua beleza perturbasse os outros eremitas
da pequena comunidade do monte das Oliveiras, ali viveu chamada de Pelágio, o
monge sem barba. Quando morreu, os ermitãos que desconheciam a sua origem
descobriram que Pelágio era afinal uma mulher. Foi então que reconheceram
tratar-se da bailarina da Antioquia, agora uma simples penitente arrependida,
que se anulara do mundo, no seguimento do Cristo.
O seu culto
e a sua história foram muito difundidos no mundo cristão oriental. Chegou ao
Ocidente através das tradições trazidas pelos peregrinos, que na Terra Santa
também visitavam a gruta de santa Pelágia, a Penitente.
A beleza de Pelágia encontrou a beleza de
Cristo através da Igreja a quem se dedicou sem quaisquer reservas. A
Igreja autorizou esta tradicional devoção popular, mantendo no dia 8 de outubro
a sua memória litúrgica, a par de outras. Santa Pelágia Penitente é considerada
a padroeira dos cómicos e das atrizes.
(cf Medeiros, F. (2015). Santa
Pelágia. http://www.zenit.org/pt/articles/santa-pelagia--2;
Sgarbossa, Mario. Os Santos e os Beatos
da Igreja do Ocidente e do Oriente, Paulinas Editora).
***
E que terá esta
informação hagiográfica a ver com o corrente Sínodo dos Bispos?
É
óbvio que não está em causa, a meu ver, o encantamento dos bispos e a sedução
feminina sobre eles, como no sínodo de Antioquia, dado que hoje as belezas femininas
invadem generalizadamente praticamente todos os espaços. E, uma vez que, como
reza o adágio latino assueta vilescunt
(as coisas costumeiras desvalorizam-se), não me parece estar em perigo,
por esta via, a castidade dos padres sinodais e, ainda, porque o Vaticano
costuma ser rigoroso no atinente ao traje.
Todavia,
os padres sinodais podem tentar-se a fazer o sínodo segundo os critérios ditados
pelos parâmetros da Comunicação Social, em vez dos critérios evangélicos. Por isso,
tem razão o Cardeal Patriarca de Lisboa quando adverte que “nós aqui estamos
para fazer o nosso sínodo e não o sínodo dos media”. Por outro lado, os bispos
podem ser invadidos pelo olhar pessimista a partir das realidades mais negras
do mundo, inferindo que tudo está perdido, esquecendo que “Ele” venceu o mundo (cf
Jo 16,33) e que
pediu ao Pai, não que nos tire do mundo, mas que nos livre do mal (cf
Jo 17,15). O próprio
Papa denunciou a “hermenêutica conspirativa” de quem vê alguma árvore podre, perdendo
a beleza da floresta. (cf Rui Osório, in JN, de 11 de outubro, pg 8).
Podem
alguns bispos, armados até aos dentes, olhar única e unilateralmente para a
pureza da doutrina e tentar impô-la contra tudo e contra todos, custe o que custar.
Podem outros, desvalorizando o depositum
fidei, ser tentados a contemporizar com o facilitismo, a permissividade, a moral
de circunstância. Uns e outros podem pugnar por um protagonismo desmedido, em
prol do seu ego e subvalorizando o
bem da Igreja e das pessoas e povos.
Podem
uns querer doutrina sem misericórdia; e outros, misericórdia sem doutrina. Podem
mesmo tentar sobrepor uma doutrina cristalizada per saecula à limpidez da doutrina de Cristo e à sua postura
misericordiosa ou eternizar, como se fora doutrina, uma disciplina processual
erigida por força de abusos cometidos num determinado tempo e lugar, como foi o
caso da exigência da dupla sentença em favor da declaração da nulidade matrimonial
introduzida por Bento XIV.
Sendo
assim, talvez seja necessário que os padres sinodais se disponham a escutar
mais a voz do Espírito que a própria voz, mais a voz de Deus que a do mundo, mais
uma voz de Deus para o homem que uma voz alegadamente de Deus para ficar a
pairar sobre a Terra.
Talvez
fosse necessário suspender por algum tempo, ainda que reduzido, a doutrina
trazida à tona pelos teólogos e pelo Magistério para escutar o Evangelho e com
ele confrontar a doutrina. Provavelmente o depositum
fidei necessita de um refrescamento periódico resultante da agitação, já
não provocada pelo anjo da piscina de Betzatá (cf Jo 5,1-14), mas pelo Espírito de Deus. E Ele
atua: basta que Lhe deem espaço e O ouçam.
Depois,
virá a doutrina na sua pureza, acompanhada necessariamente da misericórdia para
com os que erram, os pobres, os doentes, os pecadores. Sem anátemas, interditos
e excomunhões, mas com apelo, acompanhamento, convite, convivência e cooperação
dentro do possível.
Sem
misericórdia, a doutrina é como o sino que badala, mas que já nem espanta os pardais;
a doutrina com misericórdia é espaço criador e tempo de liberdade e torna-se kairós de salvação.
2015.10.10/11 – Louro
de Carvalho
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