domingo, 11 de outubro de 2015

Santa Pelágia (II metade do séc. V)

Segundo o site zenit.org, “o mundo visto de Roma”, uma das memórias litúrgicas que se podem celebrar a 8 de outubro de cada ano é a de Santa Pelágia. A razão de ser da evocação desta especial amiga de Deus tem a ver com a celebração da XIV Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, sendo necessário perceber as diferenças e as eventuais semelhanças entre o que se passou no século V em Antioquia e o que se pode passar hoje em Roma.
Sucedendo que uns colocam a sua vida terrena no século III, outros no século IV e outros no século V, a dúvida dissipa-se com a informação fornecida sobre São Nono, bispo de Heliópolis e, mais tarde, de Edessa.
Com efeito, Jaime, diácono da igreja de Heliópolis, diz-nos que Nono fora um grande homem, um perfeito monge, levado do seu Mosteiro de Tabenna para o múnus episcopal de Heliópolis, graças à sua vida de eminente virtude. Devido a conturbação gerada no quadro do Segundo Concílio de Éfeso, que levou à deposição do Bispo Ibas de Edessa, Nono tornou-se o bispo desta cidade. E, quando o Papa, por meio do Concílio de Calcedónia, em 451, decidiu pela restituição da cátedra episcopal a Ibas, Nono manteve as faculdades episcopais em Edessa até à morte de Ibas, em 457, ano em que lhe sucedeu como metropolita.  
Crê-se que, neste ínterim de 6 anos, Nono tenha passado ao Egito onde era conhecido como Nono ou Nano de Heliópolis, tendo lá convertido muitos habitantes, entre os quais Pelágia.
É, portanto, na segunda metade do século V que se deve situar a conversão da santa em causa.
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De acordo com a tradição, Pelágia era uma donzela de 15 anos, nascida em Antioquia, que atuava como bailarina e era dotada de inigualável beleza.
Era efetivamente uma bailarina belíssima, escandalosa, muito divertida, ostensivamente festiva e pagã. Costumava encantar e seduzir os homens com a dança, alegria, roupas, joias e outros ornamentos luxuosos utilizados exclusivamente com essa finalidade. Com isso, tornou-se uma das figuras mais conhecidas da vida mundana e social da sua cidade e conseguiu sólida riqueza e grande influência. A sua fama ultrapassava os limites do movimentado polo económico e social, pois muitos nobres ricos vinham apenas para poder estar com ela, que aumentava cada vez mais suas posses e poder. Em virtude da sua beleza e artimanhas, esta donzela, que encantava os homens e assiduamente os envolvia por veredas de promiscuidade e devassidão, chegou a virar a cabeça de muitos homens, inclusive a do irmão do Imperador.
Entretanto, foi convocado para Antioquia o Sínodo dos Bispos da região. No contexto daquela assembleia episcopal, sucedeu que se encontrava diante da Basílica de São Juliano o Bispo de Edessa São Nono a pregar aos outros bispos, no quadro da pregação inserida na procissão a caminho da sessão sinodal, quando Pelágia passa a cavalo em frente ao pórtico, seguida por uma pequena multidão de homens que a acompanhavam maravilhados com sua beleza, ficando ela certa de que as atenções de todos eram apenas voltadas para ela.
São Nono interrompeu a pregação e deteve-se a olhar a jovem. Após a sua passagem, o Bispo de Edessa interpelou reiteradamente os demais se não tinham ficado muito contentes por verem tão grande e rara beleza.
Perante o silêncio envergonhado dos seus irmãos no episcopado, o pregador chorou de arrependimento e confessou o seu encantamento e felicidade, pois a beleza daquela donzela lhe agradara imenso. Porém, inferiu que Deus se serviu desta beleza extraordinária para ali vir como testemunha do juízo de Deus sobre tudo, incluindo a qualidade do serviço episcopal daqueles pastores colocados por Deus à frente das dioceses da região.
Sendo assim, pediu a cada um dos elementos do seu distinto auditório que pensasse quantas horas aquela mulher gastaria no seu camarim a lavar-se, a perfumar-se, a vestir-se e a adornar-se com o máximo de cuidado e atenção para obter o encantamento dos homens. Ao mesmo tempo, recordava que para os bispos (aliás para todos os cristãos) há no céu um Pai todo-poderoso, um esposo imortal que faz irreversíveis promessas para aqueles que o servem, que oferece riquezas celestiais e recompensas eternas, ao passo que os Pastores (e os cristãos em geral) não realizam pela Igreja e pelas almas a metade do que ela faz.
Daquela sua leviandade, provavelmente como a dos demais, o santo bispo extraiu, como se viu, um útil subtema para a continuação da sua pregação: se uma mulher se embeleza daquele modo para agradar a um simples mortal como ela, com muito maior razão deveremos nós cuidar do adorno da nossa alma destinada às místicas núpcias com Deus. E com a oração e a boa palavra conseguiu realmente recolocar no redil de Bom Pastor aquele auditório e, como se verá, aquela bela ovelha tresmalhada. 
Naquela noite, São Nono sonhou que, durante a celebração da Santa Missa, um pássaro sujo e violento o tentou impedir. Porém, o celebrante conseguiu apanhá-lo e mergulhá-lo numa fonte, saindo dela o pássaro inteiramente limpo.
Na manha do dia seguinte, enquanto o Bispo celebrava, Pelágia, que tinha acorrido ao templo, sentiu-se tocada pela pregação e pediu a São Nono, através de uma mensagem escrita, que a acolhesse. O Bispo aceitou recebê-la e verificou as suas disposições. Entretanto, houve por bem enviá-la a uma senhora cristã, com vista à preparação para o batismo. Foi assim que, oito dias depois, ela trocou as roupas e adereços de seda e ouro por uma túnica branca para ser batizada. O santo bispo batizou-a e ministrou-lhe a sagrada comunhão. 
À noite, com autorização de Nono, Pelágia trocou a sua túnica de neófita por uma de penitente, deu ao bispo toda a sua fortuna e bens, que ele entregou ao tesoureiro da igreja para provisão a viúvas e órfãos. Depois, abandonou Antioquia e dirigiu-se a pé para Jerusalém, onde escavou na rocha uma cela para si no Monte das Oliveiras, lugar em que Jesus viveu a sua agonia da Paixão,  para aí viver como eremita e penitente e onde veio a falecer três anos depois de muitas penitências e orações.
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São João Crisóstomo, sob o nome de Pelágia e louvando a sua coragem, refere uma jovem mártir de Antioquia, que se jogou da janela para evitar a perda da virgindade.
O mesmo santo bispo, sem lhe apontar o nome, narra as vicissitudes duma célebre atriz, tão bela como dissoluta que, depois da conversão, levou austera vida de penitência. Porém, um autor desconhecido, que se autonomeia Tiago, identifica-a com Santa Pelágia.
Este pseudoTiago acrescenta que aquela mulher convertida e apostada na mudança radical de vida, para não ser objeto de desejos desordenados, travestiu-se de homem e viveu longamente em penitência, purificando-se, assim, dos desregramentos do passado.
Porque vivia vestida como homem, para evitar que a sua beleza perturbasse os outros eremitas da pequena comunidade do monte das Oliveiras, ali viveu chamada de Pelágio, o monge sem barba. Quando morreu, os ermitãos que desconheciam a sua origem descobriram que Pelágio era afinal uma mulher. Foi então que reconheceram tratar-se da bailarina da Antioquia, agora uma simples penitente arrependida, que se anulara do mundo, no seguimento do Cristo. 
O seu culto e a sua história foram muito difundidos no mundo cristão oriental. Chegou ao Ocidente através das tradições trazidas pelos peregrinos, que na Terra Santa também visitavam a gruta de santa Pelágia, a Penitente.
A beleza de Pelágia encontrou a beleza de Cristo através da Igreja a quem se dedicou sem quaisquer reservas. A Igreja autorizou esta tradicional devoção popular, mantendo no dia 8 de outubro a sua memória litúrgica, a par de outras. Santa Pelágia Penitente é considerada a padroeira dos cómicos e das atrizes.

(cf Medeiros, F. (2015). Santa Pelágia. http://www.zenit.org/pt/articles/santa-pelagia--2; Sgarbossa, Mario. Os Santos e os Beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente, Paulinas Editora).

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E que terá esta informação hagiográfica a ver com o corrente Sínodo dos Bispos?
É óbvio que não está em causa, a meu ver, o encantamento dos bispos e a sedução feminina sobre eles, como no sínodo de Antioquia, dado que hoje as belezas femininas invadem generalizadamente praticamente todos os espaços. E, uma vez que, como reza o adágio latino assueta vilescunt (as coisas costumeiras desvalorizam-se), não me parece estar em perigo, por esta via, a castidade dos padres sinodais e, ainda, porque o Vaticano costuma ser rigoroso no atinente ao traje.
Todavia, os padres sinodais podem tentar-se a fazer o sínodo segundo os critérios ditados pelos parâmetros da Comunicação Social, em vez dos critérios evangélicos. Por isso, tem razão o Cardeal Patriarca de Lisboa quando adverte que “nós aqui estamos para fazer o nosso sínodo e não o sínodo dos media”. Por outro lado, os bispos podem ser invadidos pelo olhar pessimista a partir das realidades mais negras do mundo, inferindo que tudo está perdido, esquecendo que “Ele” venceu o mundo (cf Jo 16,33) e que pediu ao Pai, não que nos tire do mundo, mas que nos livre do mal (cf Jo 17,15). O próprio Papa denunciou a “hermenêutica conspirativa” de quem vê alguma árvore podre, perdendo a beleza da floresta. (cf Rui Osório, in JN, de 11 de outubro, pg 8).
Podem alguns bispos, armados até aos dentes, olhar única e unilateralmente para a pureza da doutrina e tentar impô-la contra tudo e contra todos, custe o que custar. Podem outros, desvalorizando o depositum fidei, ser tentados a contemporizar com o facilitismo, a permissividade, a moral de circunstância. Uns e outros podem pugnar por um protagonismo desmedido, em prol do seu ego e subvalorizando o bem da Igreja e das pessoas e povos.
Podem uns querer doutrina sem misericórdia; e outros, misericórdia sem doutrina. Podem mesmo tentar sobrepor uma doutrina cristalizada per saecula à limpidez da doutrina de Cristo e à sua postura misericordiosa ou eternizar, como se fora doutrina, uma disciplina processual erigida por força de abusos cometidos num determinado tempo e lugar, como foi o caso da exigência da dupla sentença em favor da declaração da nulidade matrimonial introduzida por Bento XIV.
Sendo assim, talvez seja necessário que os padres sinodais se disponham a escutar mais a voz do Espírito que a própria voz, mais a voz de Deus que a do mundo, mais uma voz de Deus para o homem que uma voz alegadamente de Deus para ficar a pairar sobre a Terra.
Talvez fosse necessário suspender por algum tempo, ainda que reduzido, a doutrina trazida à tona pelos teólogos e pelo Magistério para escutar o Evangelho e com ele confrontar a doutrina. Provavelmente o depositum fidei necessita de um refrescamento periódico resultante da agitação, já não provocada pelo anjo da piscina de Betzatá (cf Jo 5,1-14), mas pelo Espírito de Deus. E Ele atua: basta que Lhe deem espaço e O ouçam.
Depois, virá a doutrina na sua pureza, acompanhada necessariamente da misericórdia para com os que erram, os pobres, os doentes, os pecadores. Sem anátemas, interditos e excomunhões, mas com apelo, acompanhamento, convite, convivência e cooperação dentro do possível.
Sem misericórdia, a doutrina é como o sino que badala, mas que já nem espanta os pardais; a doutrina com misericórdia é espaço criador e tempo de liberdade e torna-se kairós de salvação.

2015.10.10/11 – Louro de Carvalho

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