segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O discurso político atual de Sócrates

Sim, estou a referir-me a José Sócrates, arguido alegadamente indiciado por atos de delito comum e, para si próprio e para muitos, objeto de investigação, detenção e medidas de coação da liberdade por motivos de ordem política.
Este excecional protagonista da ágora pública, nem sempre pelos melhores motivos, mesmo enquanto esteve na situação de recluso, espreitou o ensejo de se justificar perante o país, coisa a que nem todos os que estão em situação análoga à sua têm acesso. Também é verdade que poucos são tão badalados na Comunicação Social como Sócrates com o risco de a presunção de inocência, acautelada na Constituição e na lei penal, se transformar em presunção de culpa.
Todos os cidadãos têm direito ao bom nome, à presunção de inocência e a não estarem presos sem culpa formada – e esta última, a não ser em caso de flagrante delito. Todos têm direito ao acesso à justiça e a defenderem-se em tribunal e perante a opinião pública. Mas nem todos têm as possibilidades que José Sócrates tem, como também nem todos estiveram ou estão tão expostos como ele. Ele usou desse direito e espreitou a oportunidade, ao passo que outros não conseguem a possibilidade de exercer o seu direito de defesa perante a justiça, porque não têm dinheiro nem influência, nem perante a opinião pública, dado que o seu caso não tem interesse jornalístico, as suas declarações não estão em linha com o estatuto editorial ou lhe concedem, por favor, um mísero tempo de intervenção ou uns magros carateres num jornal. Muitas vezes são mais as objeções ao direito de resposta que as linhas de proteção. Têm, é claro, sempre a oportunidade de dizer coisas, recorrendo ao subterfúgio da publicidade paga.
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Entretanto, a 24 de outubro, o ex-dirigente socialista e ex-primeiro-ministro foi convidado a falar sobre “Política e Justiça” no auditório Casa de Artes e Cultura do Tejo, em Vila Velha de Ródão, no distrito de Castelo Branco.
Nessa conferência, sem direito a perguntas, Sócrates garantiu que “todos os meus direitos políticos estão intactos e tenciono exercê-los”, fez duras críticas ao atual Presidente da República, exprimiu remoques indisfarçados ao líder do seu partido e à coligação e estabeleceu um improvável paralelismo entre o seu caso e o de Luaty Beirão.
Ora, tendo em conta o que acima vem referido sobre direitos e considerando as diversas circunstâncias, gostaria de tecer alguns comentários ao seu discurso em jeito de apreciação.
Embora muitos dos conteúdos que abordou e expressou estejam corretos do ponto de vista teórico, dificilmente serão encarados como despregados da sua experiência recente, o que não é de todo abonatório. Preferiria que o experiente político tivesse apostado na sua defesa perante os espectadores embora com fundamento na doutrina política e no direito. Mas foi um pouco ao contrário, o ex-governante acabou por, a pretexto de expor doutrina, apostar na sua defesa – o que é bem diferente.
Do ponto de vista do direito, Sócrates tem razão quando diz não estar desprovido de nenhum dos direitos civis e políticos, nem os mesmos estarem sequer suspensos, dado que não tal situação não foi determinada expressamente por nenhuma decisão judicial transitada em julgado. Já, quanto ao seu exercício pleno, é de referir que tudo depende das circunstâncias. Não creio que pense, de momento, candidatar-se a autarca, a deputado ou mesmo a Presidente da República.
Parede que um socialista de 70 anos terá confessado que ele fora “subtil e irónico, um sinal de inteligência”. Quanto a ironia estou de acordo, mas não quanto a subtilidade, já que se revela demasiado claro e, às vezes, amargamente sarcástico.
Por seu turno, Fernando Serrasqueiro, socialista do antigo núcleo duro de Sócrates, mostrou-se ponderado em relação à possibilidade duma corrida às eleições presidenciais, aduzindo que “neste momento não há condições, ele está a meio do processo”, sendo natural que primeiro queira defender-se. E o processo “pode ser muito moroso, o que impossibilita uma intervenção política mais ativa neste momento”.
O ex-líder socialista falou durante mais de uma hora, tendo a Operação Marquês, em que é um dos principais arguidos, acabado por se transformar no tema central da sua intervenção. Defendeu-se sobre a investigação e organização do processo, dissertou sobre justiça e sobre política e considerou inseparáveis justiça e política, esclarecendo:
“Parece-me muito pobre, desesperadamente pobre, esse argumento do ‘à justiça o que é da justiça e à política o que é da política’, como se a política não tivesse a obrigação e o dever de debater e discutir as formas, os meios e os fins de realizar essa justiça”.
A isto o seu mencionado direto colaborador comenta:
“A interligação que ele faz entre a política e justiça é muito importante. Ajuda-nos a refletir, principalmente em função de uma experiência recente que teve. É preciso evoluir nos processos e a justiça tem a ver com as pessoas, por isso tem a ver com a política”.
Afirmando que esta reflexão constituiu um motivo para ter saído da conferência bastante satisfeito com o resultado. Serrasqueiro acrescentou:
“Foi uma oportunidade de ele poder expressar um conjunto de ideias que tem vindo a pensar ao longo destes últimos tempos. Foi um seminário muito rico em reflexões, para refletirmos em temas cruciais”.
Sobre a justiça e a política, Sócrates referiu que argumentar com o estribilho “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” parece constituir frequentemente um pretexto para afirmar não se querer falar de determinados casos em curso nas instâncias do poder judicial, como se estes fossem exclusivos do poder judicial ou que este não pudesse ser discutido e criticado. Ora é escrutinando a justiça e os seus operadores e debatendo as matérias com ela relacionadas que se contribui para que ela seja mais independente e os agentes da justiça se preparem para melhor resistirem às pressões a que estão continuamente sujeitos.
Se o ex-governante tem razão do lado da doutrina, não pode, contudo, ter a veleidade de que o escutem prescindindo do seu caso pessoal.
Sócrates não referiu o autor, mas foi John Rawls quem citou veladamente no início da sua intervenção, quando sentenciou: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais”.
Ora, a instituição a que se quer referir o ex-líder socialista – suspeito de corrupção passiva, branqueamento de capitais e fraude fiscal – é o Estado.
E começando por falar de doutrina – “Verdadeiramente aquilo que carateriza o Estado de direito democrático não é tanto aquilo que ele pode fazer, mas aquilo que ele está impedido de fazer” – passou a concretizar com o seu caso (“Julgo que todos me vão entender”, disse):
“O Estado não pode deter um indivíduo depois de esse indivíduo ter propositadamente, especificamente, se ter dirigido ao Estado dizendo que, sabendo que decorre uma investigação contra ele, ele desejaria ser ouvido pelas instâncias judiciais. Não se pode deter alguém para o interrogar quando esse alguém já disse por mail e por telefone que desejava ser ouvido. Isto não se pode fazer. A isto chama-se um abuso.”
Falando num tom académico e magistral – além de Rawls, também se estribou no subtexto de filósofos, como Hobbes e Espinoza, embora sem pronunciar os seus nomes e indicar as susa sobras – Sócrates foi amiúde interrompido por aplausos das 200 pessoas que formavam o público espectador. Foi assim, por exemplo, quando se reportou à mediatização em torno da sua detenção em novembro de 2014:
“Maior abuso é deter alguém para o interrogar, para lhe fazer perguntas, mas ao mesmo tempo fazer dessa detenção não uma ação da justiça mas um espetáculo mediático que visa apenas punir injustamente, denegrir, humilhar e ferir. Isso, numa democracia, o Estado não tem direito de fazer.”
Para lá da detenção, o ex-recluso n.º 44 do Estabelecimento Prisional de Évora criticou a sua prisão preventiva que, admitindo que esta segue a lei, considerou ser desmedida, ao opinar:
“Está vedado ao Estado de direito democrático o seguinte: a utilização da prisão preventiva para investigar. Isso não é o que está na lei. (…) Quando um Estado age contra um cidadão e o cidadão pergunta ‘faz favor de me dizer quando, como, em que é que eu cometi um crime’ e o Estado responde que a investigação ainda agora começou, é preciso dizer que a utilização da prisão preventiva como instrumento da investigação é um abuso”.
Alongando a sua exposição, o ex-primeiro-ministro socialista referiu-se a prisão preventiva, no seu caso, ora num tom magistral – “é utilizada para amachucar, denegrir, desmoralizar, é usada para despersonalizar” – ora num tom coloquial, como se o Estado, do qual tanto falou, lhe dissesse: “Já não és um cidadão que se possa defender, agora és um recluso. Já não tens a mesma voz, a mesma dignidade”.

Depois, falou do “poder oculto e não transparente” do jornalismo. Referiu, a este respeito, que há um poder oculto, um poder não transparente, que se foi organizando em resultado de uma cumplicidade escondida entre alguns elementos da justiça e alguns elementos do jornalismo”. Fê-lo em referência às fugas de informação que têm passado da investigação em seu torno para as páginas dos jornais, nomeadamente o Correio da Manhã, que escreveu sobre as escutas ao ex-primeiro-ministro e a pessoas do seu círculo pessoal, incluindo o empresário e amigo Carlos Santos Silva.

Sócrates declarou que “dessa cumplicidade ativa resulta um poder que não é fiscalizado, que não é controlado, e que age criminosamente trocando informações por elogios, por forma a que possam delas beneficiar.” E, logo em seguida, contrariou a afirmação de que as notícias que têm sido publicadas sirvam o interesse público, porfiando: “Nada mais errado”. E, atalhou:

Quando utilizam essa informação, estão apenas a pensar no próprio interesse: em aumentar a audiência ou as vendas dos jornais”.
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Entretanto, é factual que o ex-primeiro-ministro foi aplaudido com frequência, não só quando se defendia de toda a investigação da Operação Marquês, como ao atacar a atuação do Presidente da República e a atual situação governativa. Por exemplo, está certo ao declarar que “não pode governar quem tem a maioria do parlamento” contra si e ao declarar que entre a situação pós-eleitoral presente e a de 2009 as sinergias parlamentares tinham comportamentos diferentes dos de hoje, pelo que a comparação do Presidente, em sua opinião e na de muitos, não foi ajustada. Também arrancou fortes aplausos a declaração seguinte, contra a estigmatização dos partidos antiNATO e eurocéticos:
“Eu sou a favor da NATO, mas sou muito mais a favor de um país onde se possa ser contra a NATO; eu sou a favor da Europa, mas sou muito mais a favor de um país onde se possa ser contra a Europa”.
É verdade que o contraste entre as modulação das opções enunciadas me parece ajustado, bem como alguma da crítica direcionada ao inquilino de Belém. Todavia duvido do impacto positivo que estas declarações criem na opinião pública.
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Finalmente, referiu-se à posição das autoridades portuguesas e das angolanas. Aqui, José Sócrates evocou o conhecido caso de Luaty Beirão, o luso-angolano em prisão preventiva que protesta pela sua libertação com uma greve de fome mantida há mais de 30 dias, explicitando:
“Essa causa é-me muito simpática, porque há um princípio também nos estados de direito democrático, é que os cidadãos devem esperar em liberdade o seu julgamento e a prisão preventiva deve ser a todos os títulos excecional porque põe em causa o princípio da presunção da inocência.”.
Não lhe negando a razão na evocação, não posso aceitar que Sócrates tenha aproveitado oportunisticamente as semelhanças eventualmente existentes entre o seu caso e o do rapper internado numa clínica privada de Luanda. É verdade que “as autoridades angolanas respondem a esta questão como respondem as autoridades portuguesas, em que dizem que ‘à justiça o que é da justiça, à política o que é da política'”, mas os motivos da prisão preventiva do luso-angolano e companheiros não têm nada a ver com os que levaram Sócrates a ser objeto de medidas de coarctação da liberdade. Pelo que a evocação me parece abusiva.

Já me parece aceitável que tenha criticado o Estado a propósito do caso de Timor-Leste, mesmo dizendo que “O Estado português perde a autoridade moral”. O orador de Vila Velha do Ródão contou muito resumidamente o caso e apressou-se a tirar conclusões que incluem a sua situação:

“Há uns meses atrás assisti a um campanha motivada por muitos espíritos nobres em Portugal para protestarem contra o governo de Timor-Leste que tinha um cidadão português preso preventivamente há cinco meses sem acusação. Que horror, que escândalo! Pois também eu adiro a essa causa. Mas há um pequeno problema com o Estado português. É que o Estado português não tem autoridade moral para reivindicar a libertação de ninguém ao fim de cinco meses de prisão, porque mantém portugueses presos há 11 meses sem acusação.”
E, embora se refira demasiado ao seu caso, acompanho-o na crença, aliás bastante espalhada, de que “há dois pesos e duas medidas entre o que o Estado português faz e aquilo que diz a outros países” e que naturalmente, “quando tem uma atitude destas, o Estado português perde a autoridade moral para falar de direitos individuais a outros Estados.”
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Em suma, opino que Sócrates tem o direito de se defender em público sustentando a sua defesa na doutrina jurídica e política. Mas, se falar como académico e conferencista, deve conter-se na aproximação da doutrina ao seu caso pessoal e abster-se de incorrer em oportunismos de mau conselho. Um homem inteligente e esperto não tem necessidade de cair no ridículo ou na excessiva vitimização.

2015.10.25 – Louro de Carvalho

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