Sim,
estou a referir-me a José Sócrates, arguido alegadamente indiciado por atos de
delito comum e, para si próprio e para muitos, objeto de investigação, detenção
e medidas de coação da liberdade por motivos de ordem política.
Este
excecional protagonista da ágora pública, nem sempre pelos melhores motivos, mesmo
enquanto esteve na situação de recluso, espreitou o ensejo de se justificar
perante o país, coisa a que nem todos os que estão em situação análoga à sua
têm acesso. Também é verdade que poucos são tão badalados na Comunicação Social
como Sócrates com o risco de a presunção de inocência, acautelada na
Constituição e na lei penal, se transformar em presunção de culpa.
Todos
os cidadãos têm direito ao bom nome, à presunção de inocência e a não estarem
presos sem culpa formada – e esta última, a não ser em caso de flagrante delito.
Todos têm direito ao acesso à justiça e a defenderem-se em tribunal e perante a
opinião pública. Mas nem todos têm as possibilidades que José Sócrates tem,
como também nem todos estiveram ou estão tão expostos como ele. Ele usou desse
direito e espreitou a oportunidade, ao passo que outros não conseguem a
possibilidade de exercer o seu direito de defesa perante a justiça, porque não
têm dinheiro nem influência, nem perante a opinião pública, dado que o seu caso
não tem interesse jornalístico, as suas declarações não estão em linha com o
estatuto editorial ou lhe concedem, por favor, um mísero tempo de intervenção
ou uns magros carateres num jornal. Muitas vezes são mais as objeções ao direito
de resposta que as linhas de proteção. Têm, é claro, sempre a oportunidade de
dizer coisas, recorrendo ao subterfúgio da publicidade paga.
***
Entretanto, a 24 de outubro, o ex-dirigente socialista e
ex-primeiro-ministro foi convidado a falar sobre “Política e Justiça” no auditório Casa de Artes e Cultura do Tejo, em Vila Velha de
Ródão, no distrito de Castelo Branco.
Nessa conferência, sem direito a perguntas, Sócrates garantiu que “todos
os meus direitos políticos estão intactos e tenciono exercê-los”, fez duras
críticas ao atual Presidente da República, exprimiu remoques indisfarçados ao
líder do seu partido e à coligação e estabeleceu um improvável paralelismo
entre o seu caso e o de Luaty Beirão.
Ora, tendo em conta o que acima vem referido sobre direitos e
considerando as diversas circunstâncias, gostaria de tecer alguns comentários
ao seu discurso em jeito de apreciação.
Embora muitos dos conteúdos que abordou e expressou estejam corretos do
ponto de vista teórico, dificilmente serão encarados como despregados da sua
experiência recente, o que não é de todo abonatório. Preferiria que o experiente
político tivesse apostado na sua defesa perante os espectadores embora com
fundamento na doutrina política e no direito. Mas foi um pouco ao contrário, o
ex-governante acabou por, a pretexto de expor doutrina, apostar na sua defesa –
o que é bem diferente.
Do ponto de vista do direito, Sócrates tem razão quando diz não estar
desprovido de nenhum dos direitos civis e políticos, nem os mesmos estarem
sequer suspensos, dado que não tal situação não foi determinada expressamente
por nenhuma decisão judicial transitada em julgado. Já, quanto ao seu exercício
pleno, é de referir que tudo depende das circunstâncias. Não creio que pense,
de momento, candidatar-se a autarca, a deputado ou mesmo a Presidente da
República.
Parede que um socialista de 70 anos terá confessado que ele fora “subtil
e irónico, um sinal de inteligência”. Quanto a ironia estou de acordo, mas não
quanto a subtilidade, já que se revela demasiado claro e, às vezes, amargamente
sarcástico.
Por seu turno, Fernando Serrasqueiro,
socialista do antigo núcleo duro de Sócrates, mostrou-se ponderado em relação à
possibilidade duma corrida às eleições presidenciais, aduzindo que “neste
momento não há condições, ele está a meio do processo”, sendo natural que primeiro
queira defender-se. E o processo “pode ser muito moroso, o que impossibilita
uma intervenção política mais ativa neste momento”.
O ex-líder
socialista falou durante mais de uma hora, tendo a Operação Marquês, em que é um dos
principais arguidos, acabado por se transformar no tema central da sua
intervenção. Defendeu-se sobre a investigação e organização do processo,
dissertou sobre justiça e sobre política e considerou inseparáveis justiça e
política, esclarecendo:
“Parece-me muito pobre,
desesperadamente pobre, esse argumento do ‘à justiça o que é da justiça e à
política o que é da política’, como se a política não tivesse a obrigação e o dever
de debater e discutir as formas, os meios e os fins de realizar essa justiça”.
A isto o seu
mencionado direto colaborador comenta:
“A interligação que ele faz entre a
política e justiça é muito importante. Ajuda-nos a refletir, principalmente em
função de uma experiência recente que teve. É preciso evoluir nos processos e a
justiça tem a ver com as pessoas, por isso tem a ver com a política”.
Afirmando que
esta reflexão constituiu um motivo para ter saído da conferência bastante
satisfeito com o resultado. Serrasqueiro acrescentou:
“Foi uma oportunidade de ele poder
expressar um conjunto de ideias que tem vindo a pensar ao longo destes
últimos tempos. Foi um seminário muito rico em reflexões, para refletirmos
em temas cruciais”.
Sobre a
justiça e a política, Sócrates referiu que argumentar com o estribilho “à
justiça o que é da justiça, à política o que é da política” parece constituir
frequentemente um pretexto para afirmar não se querer falar de determinados
casos em curso nas instâncias do poder judicial, como se estes fossem
exclusivos do poder judicial ou que este não pudesse ser discutido e criticado.
Ora é escrutinando a justiça e os seus operadores e debatendo as matérias com
ela relacionadas que se contribui para que ela seja mais independente e os agentes
da justiça se preparem para melhor resistirem às pressões a que estão
continuamente sujeitos.
Se o
ex-governante tem razão do lado da doutrina, não pode, contudo, ter a veleidade
de que o escutem prescindindo do seu caso pessoal.
Sócrates não
referiu o autor, mas foi John Rawls quem citou veladamente no início da
sua intervenção, quando sentenciou: “A
justiça é a primeira virtude das instituições sociais”.
Ora, a instituição
a que se quer referir o ex-líder socialista – suspeito de corrupção passiva,
branqueamento de capitais e fraude fiscal – é o Estado.
E começando
por falar de doutrina – “Verdadeiramente
aquilo que carateriza o Estado de direito democrático não é tanto aquilo que
ele pode fazer, mas aquilo que ele está impedido de fazer” – passou a concretizar
com o seu caso (“Julgo
que todos me vão entender”, disse):
“O Estado não pode deter um indivíduo
depois de esse indivíduo ter propositadamente, especificamente, se ter dirigido
ao Estado dizendo que, sabendo que decorre uma investigação contra ele, ele
desejaria ser ouvido pelas instâncias judiciais. Não se pode deter alguém para
o interrogar quando esse alguém já disse por mail e por
telefone que desejava ser ouvido. Isto não se pode fazer. A isto chama-se um
abuso.”
Falando num
tom académico e magistral – além de Rawls, também se estribou no subtexto de
filósofos, como Hobbes e Espinoza, embora sem pronunciar os seus nomes e indicar
as susa sobras – Sócrates foi amiúde interrompido por aplausos das 200 pessoas
que formavam o público espectador. Foi assim, por exemplo, quando se reportou à
mediatização em torno da sua detenção em novembro de 2014:
“Maior abuso é deter alguém para o
interrogar, para lhe fazer perguntas, mas ao mesmo tempo fazer dessa detenção
não uma ação da justiça mas um espetáculo mediático que visa apenas punir
injustamente, denegrir, humilhar e ferir. Isso, numa democracia, o Estado não
tem direito de fazer.”
Para lá da
detenção, o ex-recluso n.º 44 do Estabelecimento Prisional de Évora criticou a
sua prisão preventiva que, admitindo que esta segue a lei, considerou ser
desmedida, ao opinar:
“Está vedado ao Estado de direito
democrático o seguinte: a utilização da prisão preventiva para investigar. Isso
não é o que está na lei. (…) Quando um Estado age contra um cidadão e o cidadão
pergunta ‘faz favor de me dizer quando, como, em que é que eu cometi um crime’
e o Estado responde que a investigação ainda agora começou, é preciso dizer que
a utilização da prisão preventiva como instrumento da investigação é um abuso”.
Alongando a
sua exposição, o ex-primeiro-ministro socialista referiu-se a prisão
preventiva, no seu caso, ora num tom magistral – “é utilizada para amachucar, denegrir, desmoralizar, é usada para
despersonalizar” – ora num tom coloquial, como se o Estado, do qual tanto
falou, lhe dissesse: “Já não és um
cidadão que se possa defender, agora és um recluso. Já não tens a mesma voz, a
mesma dignidade”.
Depois, falou do “poder oculto e não transparente” do
jornalismo. Referiu, a este respeito, que há “um poder oculto, um poder não transparente,
que se foi organizando em resultado de uma cumplicidade escondida entre alguns
elementos da justiça e alguns elementos do jornalismo”. Fê-lo em referência
às fugas de informação que têm passado da investigação em seu torno para as
páginas dos jornais, nomeadamente o Correio da Manhã, que escreveu sobre as escutas
ao ex-primeiro-ministro e a pessoas do seu círculo pessoal, incluindo o empresário
e amigo Carlos Santos Silva.
Sócrates declarou que “dessa cumplicidade ativa resulta um poder
que não é fiscalizado, que não é controlado, e que age criminosamente trocando
informações por elogios, por forma a que possam delas beneficiar.” E, logo
em seguida, contrariou a afirmação de que as notícias que têm sido publicadas
sirvam o interesse público, porfiando: “Nada
mais errado”. E, atalhou:
“Quando utilizam essa
informação, estão apenas a pensar no próprio interesse: em aumentar a audiência
ou as vendas dos jornais”.
***
Entretanto, é
factual que o ex-primeiro-ministro foi aplaudido com frequência, não só quando
se defendia de toda a investigação da Operação
Marquês, como ao atacar a atuação do Presidente da República e a
atual situação governativa. Por exemplo, está certo ao declarar que “não pode
governar quem tem a maioria do parlamento” contra si e ao declarar que entre a
situação pós-eleitoral presente e a de 2009 as sinergias parlamentares tinham
comportamentos diferentes dos de hoje, pelo que a comparação do Presidente, em
sua opinião e na de muitos, não foi ajustada. Também arrancou fortes aplausos a
declaração seguinte, contra a estigmatização dos partidos antiNATO e
eurocéticos:
“Eu sou a favor da NATO, mas sou muito
mais a favor de um país onde se possa ser contra a NATO; eu sou a favor da
Europa, mas sou muito mais a favor de um país onde se possa ser contra a
Europa”.
É verdade que
o contraste entre as modulação das opções enunciadas me parece ajustado, bem
como alguma da crítica direcionada ao inquilino de Belém. Todavia duvido do
impacto positivo que estas declarações criem na opinião pública.
***
Finalmente,
referiu-se à posição das autoridades portuguesas e das angolanas. Aqui, José
Sócrates evocou o conhecido caso de Luaty Beirão, o luso-angolano em prisão
preventiva que protesta pela sua libertação com uma greve de fome mantida há mais
de 30 dias, explicitando:
“Essa causa é-me muito simpática,
porque há um princípio também nos estados de direito democrático, é que os
cidadãos devem esperar em liberdade o seu julgamento e a prisão preventiva deve
ser a todos os títulos excecional porque põe em causa o princípio da presunção
da inocência.”.
Não lhe
negando a razão na evocação, não posso aceitar que Sócrates tenha aproveitado
oportunisticamente as semelhanças eventualmente existentes entre o seu caso e o
do rapper internado numa clínica privada de Luanda. É verdade que
“as autoridades angolanas respondem a esta questão como respondem as
autoridades portuguesas, em que dizem que ‘à justiça o que é da justiça, à
política o que é da política'”, mas os motivos da prisão preventiva do
luso-angolano e companheiros não têm nada a ver com os que levaram Sócrates a
ser objeto de medidas de coarctação da liberdade. Pelo que a evocação me parece
abusiva.
Já me parece aceitável que tenha criticado o Estado a
propósito do caso de Timor-Leste, mesmo dizendo que “O Estado português perde a
autoridade moral”. O orador de Vila Velha do Ródão contou muito resumidamente o caso e apressou-se a tirar conclusões que incluem a sua situação:
“Há uns meses atrás assisti a um
campanha motivada por muitos espíritos nobres em Portugal para protestarem
contra o governo de Timor-Leste que tinha um cidadão português preso
preventivamente há cinco meses sem acusação. Que horror, que escândalo! Pois
também eu adiro a essa causa. Mas há um pequeno problema com o Estado português.
É que o Estado português não tem autoridade moral para reivindicar a libertação
de ninguém ao fim de cinco meses de prisão, porque mantém portugueses presos há
11 meses sem acusação.”
E, embora se
refira demasiado ao seu caso, acompanho-o na crença, aliás bastante espalhada,
de que “há dois pesos e duas medidas entre o que o Estado português faz e
aquilo que diz a outros países” e que naturalmente, “quando tem uma atitude
destas, o Estado português perde a autoridade moral para falar de direitos
individuais a outros Estados.”
***
Em
suma, opino que Sócrates tem o direito de se defender em público sustentando a
sua defesa na doutrina jurídica e política. Mas, se falar como académico e
conferencista, deve conter-se na aproximação da doutrina ao seu caso pessoal e
abster-se de incorrer em oportunismos de mau conselho. Um homem inteligente e
esperto não tem necessidade de cair no ridículo ou na excessiva vitimização.
2015.10.25 –
Louro de Carvalho
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