sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Que independência a da Justiça?

Disse e redigo que os tribunais são poder soberano, quer pelo ordenamento constitucional, que os inclui no âmbito do poder político (vd CRP, art.º 110.º/1 – são órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais), quer pela definição que a CRP deles faz: “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” (CRP, art.º 202.º/1). Por isso, pode falar-se, não em independência dos tribunais relativamente aos outros poderes políticos (os políticos não são apenas os outros, os eleitos), mas em separação e interdependência (cf CRP, art.º 111.º/1). É certo que, segundo a CRP, eles “são independentes e apenas estão sujeitos à lei” (cf CRP, art.º 203.º), o que significa não uma independência política absoluta (mercê da interdependência, no sistema de contrapesos), mas uma independência orgânica e funcional, porquanto as diretrizes de funcionamento, a distribuição do pessoal, a avaliação e controlo das decisões, atitudes e comportamentos não saem do sistema judiciário. E seria desejável que os tribunais pudessem organizar-se autonomamente em termos territoriais e dispor de opções de planeamento e orçamento próprios e terem de “depender” da disponibilidade de meios da parte do Governo.
Depois, não pode confundir-se a prevalência das decisões definitivas dos tribunais sobre as de quaisquer outras autoridades (cf CRP, art.º 205.º/2) com a pretensa impossibilidade de escrutínio e crítica.
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Há umas semanas a esta parte, a RTP 1 organizou um debate sobre a independência da Justiça em que primou a ausência dos titulares das instâncias judiciais.
Genericamente, foram criticados vários procedimentos: o excesso e abuso das medidas de coação, nomeadamente a prisão preventiva; as useiras e vezeiras violações do segredo de justiça, designadamente o trasfego de informação da parte investigação, do Ministério Público, do TIC para a Comunicação Social; a frequente arrogância do Ministério Público, que oculta informação às partes, nomeadamente à defesa; a falta de explicação pública pertinente nos casos mediáticos; o fomento da justiça-espetáculo ou a conivência com o espetáculo (pedidos de levantamento de imunidade parlamentar, detenção, buscas em habitações e escritórios, etc.); confusão entre jornalismo de investigação e faculdade de ultrapassagem do segredo de justiça; e falta de zelo contra a perceção por parte da opinião pública de que a justiça tem uma agenda política (pró-partidária) e de que há uma justiça para ricos e poderosos e outra para pobres e indefesos.
Por outro lado, são inúmeras as circunstâncias de constrição que envolvem os cidadãos que têm a ver com a administração da justiça, de que se destacam, a título de exemplo: muitos dos procedimentos garantistas previstos na lei são direcionados para simples manobras dilatórias, nomeadamente alguns pedidos de aclaração e a interposição de alguns recursos; a falta de pontualidade no início das sessões de audiência; a facilidade com que se adiam audiências; a convocação de várias testemunhas para a mesma hora; a solenidade e o aparato de que se reveste o tribunal; as contradições espelhadas em algumas sentenças e acórdãos; a linguagem utilizada e os comentários desnecessários; a nebulosidade que rodeia a fundamentação das decisões; e o caráter discricionário com que se rejeita a anexação de peças aos processos.
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A cerimónia de abertura do ano judicial, no passado dia 8 de outubro, permite-nos apreciar aquilo que os operadores judiciários de topo entendem da justiça em Portugal. Assim:
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O Presidente da República, enquanto supremo magistrado do Estado, embora reconheça que este é “um momento privilegiado para uma reflexão conjunta sobre os desafios que o Direito e o sistema judicial enfrentam no nosso tempo”, quase se limita a prestar homenagem à CRP (a Constituição), aos magistrados portugueses e a todos quantos, no dia a dia, trabalham nos nossos tribunais”. Porém, não deixa de declarar que “não é possível analisar os problemas com que a Justiça se defronta sem ter presente as leis que nos regem”, dado que são os tribunais a aplicar “as opções normativas do legislador aos feitos que lhes são submetidos a julgamento”.
Depois, alinha, a meu ver, de modo inadequado, com o status quo da Justiça, em que os juízes têm dificuldade em julgar apenas segundo a lei, mas dando relevo à jurisprudência por se julgarem, mais que aplicadores da lei, os seus intérpretes e, por consequência, os criadores do Direito. Cavaco Silva vai ao ponto de afirmar que está “há muito ultrapassada a conceção que encarava os juízes como uma mera ‘boca da lei’, que se limita a aplicar a vontade do legislador.
Ora parece-me que, estando eles “sujeitos à lei”, não têm de a enredar em explicações, ampliações ou restrições. E tiro exatamente a conclusão contrária à do PR: se “é a lei que os juízes devem aplicar”, embora “uma reflexão sobre a Justiça sempre” deva “começar por uma análise da qualidade da legislação vigente no País, eles, através das suas organizações, devem colaborar, em nome do dever de cooperação pública, para que as leis sejam melhoradas, dando sugestões de revisão e de alteração, e não julgando as leis, criticá-las ou atirar o exclusivo da responsabilidade por elas para os “políticos”.
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Por sua vez, a Bastonária da Ordem dos Advogados (OA), depois de saudar o momento democrático, como expressão de liberdade e consequência do sobressalto cívico pedido pela ministra da Justiça em 2014, mas com a ânsia de estabilidade, para que a liberdade não perigue, citou palavras de Mário Soares no seu discurso de abertura do ano judicial em 1995: 
“As democracias modernas, nas sociedades mediatizadas do nosso tempo, não se baseiam só na representatividade dos Parlamentos e dos outros órgãos de soberania, eleitos por sufrágio direto e universal, e nos órgãos do poder derivado, legitimados na eleição direta, na transitoriedade de funções e no controlo político democrático. Baseiam-se também, significativamente, na importância decisiva dada ao Direito, postulando a subordinação de todo o poder político à Constituição”. 

A seguir, pegando na deixa soarista, destaca, da CRP, a sua fundamentação na “dignidade humana como base e fundamento da ação conformadora do próprio Estado” e a sua função de catálogo expressivo dos “direitos humanos”, dos “direitos fundamentais”, dos “direitos sociais, culturais e económicos”. E, neste particular, aponta o “retrocesso clamoroso” que tem atingido reiteradamente o “núcleo essencial” dos direitos fundamentais, sobretudo na área da Justiça, e professa a sua indisponibilidade e da OA para “silenciar, um retrocesso nos direitos, nas liberdades e nas garantias”. Depois, esclarece:
“Não basta proclamar reformas, mesmo que sejam, ou como sendo, as maiores dos últimos séculos, sobretudo quando se hipotecam os interesses dos cidadãos à perpetuação de um nome na História, uma vez que o final para tão ávidos apóstolos da bondade das suas próprias reformas será sempre trágico”.

E cita, a propósito, Hanna Arendt:
“Em virtude dessa condescendência serão ‘escravos e prisioneiros’ das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem.”

Não perde também o ensejo de criticar “as reformas na Justiça impostas de forma autocrática”, ignorando “as assimetrias do país, as desigualdades das suas populações, os ritmos e as culturas diferentes das terras” – que estimulam o descrédito reinante nas instituições democráticas e, “em particular, na própria Justiça”. E dirige-se contra a disenteria legislativa, ou seja, a produção em série de diplomas legislativos, que, além de “produzidos com precipitação e no calor do momento” chegam a vergar “juízes, procuradores e advogados com leis, decretos-lei e portarias, numa teia indecifrável de normas, tantas vezes contraditórias, que não só obstam à desejada celeridade, eficiência e qualidade, como nos enredam a todos em procedimentos burocráticos, que nos funcionalizam e nos afastam daquela que é a nossa missão essencial: administrar e contribuir para a boa administração da Justiça”. Daqui resulta que “não há certeza, nem segurança no Direito!”. E ousa frisar a “depressão catatónica” que “a Justiça está a ultrapassar”, sendo os operadores judiciais que a contrariam e que suportam “as pesadas reformas, garantindo responsável e abnegadamente o regular funcionamento dos Tribunais, ameaçado pelo colapso do CITIUS, pela “falta de infraestruturas” (de gabinetes e salas de audiência) e pela “manifesta insuficiência de funcionários judiciais”.
Sobre o estado dos tribunais, diz:
“Temos tribunais que funcionam em contentores com centenas de milhares de processos amontoados e por tramitar, enquanto se encerraram outros, a poucos quilómetros de distância, com condições de excelência (…); tribunais que estão mais lentos, porque comprometidos por uma concentração mal planeada de processos; tribunais que estão menos próximos porque se afastaram dos cidadãos e se sediaram, na sua esmagadora maioria, nas capitais de distrito; tribunais que estão esvaziados, porque a especialização os desqualificou e os reduziu à tramitação e julgamento da bagatela cível e penal.”

Não deixa de falar do défice de independência dos tribunais, mercê da “concentração de poderes nos órgãos de gestão e no Juiz Presidente”, já que “não há tribunais independentes, sem juízes, procuradores e advogados independentes”.
Depois, frisa a não aprovação dos Estatutos dos Magistrados Judiciais e dos Magistrados do Ministério Público e a mordaça com que, através do Estatuto da OA, se tentou atingir “uma instituição que sempre foi baluarte de defesa dos direitos dos cidadãos e a mais forte trincheira na defesa das liberdades”.
Além da revisita necessária ao mapa judiciário, a Bastonária aduz que, “se o Estado não pode garantir uma Justiça tendencialmente gratuita tem, pelo menos, que garantir que não fique vedado o acesso ao direito e aos tribunais aos cidadãos, em razão da sua situação económica, proporcionando a todos esse direito, em condições de total igualdade”. Pelo que se impõe “a diminuição das custas judiciais e o alargamento do apoio judiciário, mais que não seja na modalidade de pagamento faseado das taxas, custas e demais encargos do processo”.
Finalmente, afirma que mais do que endeusar a Justiça como pilar do Direito ou do que proclamar o caráter soberano dos tribunais, urge dotá-los das infraestruturas e meios humanos e técnicos “necessários ao seu funcionamento em plenitude”; abandonar quaisquer opções de privatização da Justiça e de recurso a manobras de desjudicialização, atentando “tantas vezes contra a dignidade do próprio cidadão”, não respeitando as garantias e violando-lhe direitos; e “assumir um combate sério à corrupção”, abandonando-se de vez “a opção propagandística da mediatização do caso concreto através de fugas cirúrgicas para a comunicação social e da violação do segredo de Justiça”, para satisfazer o espírito justiceiro da praça pública, não garantindo “a transparência e a igualdade de oportunidades”.
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A Procuradora-Geral da República também usou da palavra essencialmente para fazer o balanço do ano judicial transato, salientando a vitalidade das instituições e a produção legislativa atinente à Justiça, bem como aquela que introduziu “mudanças significativas e estruturantes no quadro substantivo e processual regulador de matérias relevantes”.
Apontou o Novo Portal da Procuradoria-Geral, que “permitiu dar passos seguros e significantes na construção de uma estratégia comunicacional, interna e externa, orientada pela constante preocupação do princípio da transparência e do acesso dos cidadãos ao conhecimento e à informação”.
Salientou a ação e autonomia do Ministério Público como não incompatíveis com o necessário escrutínio. Veio mesmo a esclarecer que autonomia do Ministério Público postula a prestação de contas e a avaliação e escrutínio da comunidade, bem como “exige o cumprimento rigoroso das normas substantivas, processuais e estatutárias que consagram e definem os parâmetros e as regras precisas em que se desenvolve a fiscalização e o controlo da intervenção do Ministério Público no âmbito do próprio processo, designadamente no processo criminal”.
Depois explicitou que “a autonomia do Ministério Público não se configura como um privilégio do poder da instituição e dos seus magistrados”, mas se constitui “como um pressuposto essencial da igualdade do cidadão perante a lei” e da própria “independência dos tribunais”.  
Por fim, aduz a necessidade de meios humanos e logísticos para garantir a autonomia do MP.
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Por seu turno, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, anfitrião do evento, começou por enaltecer a vigência da Lei da Organização do Sistema Judiciário e pediu a reflexão sobre as perspetivas da sua execução, cujos parâmetros apresentou.
Referiu também que o CSM (Conselho Superior da Magistratura) prestou contas “pelo exercício das suas atribuições, que foi fundamental na execução da reorganização judiciária, e deu conta das informações que considerou relevantes sobre os aspetos conseguidos e as dificuldades encontradas, para ponderação no futuro da execução”. E apontou os pontos mais problemáticos:
- A carência de oficiais de justiça, transversal a todas as comarcas, tendo sido o concurso que recentemente terminou um primeiro passo para atenuar as dificuldades; 
- A garantia do direito ao acesso ao tribunal em matérias sensíveis, como: as questões de família e menores; 
- A complexidade resultante da imediata concentração nas secções das instâncias centrais de execução e comércio das pendências repartidas por todos os anteriores tribunais da área territorial abrangida, gerando pendências de muito difícil gestão;
- A necessidade de dados fiáveis e de estudos de campo sobre a eficácia da ação executiva, apontando alguns dados empíricos para níveis preocupantes;
- A conveniência na reponderação de algumas competências territoriais das secções de instâncias centrais de instrução criminal.

Sublinhando que “as circunstâncias não permitem ainda formular juízos elaborados”, fez um juízo de dificuldade e trabalho para próximos anos. E não deixou de salientar que a nova organização judiciária dificilmente pode passar sem a adaptação e modernização do Estatuto dos magistrados, não tendo sido positivopara a justiça o naufrágio do Estatuto no fim da viagem”.
Depois, lamentou que, uma vez que “nos anos mais recentes, as questões de organização do sistema tomaram a tempo inteiro o debate sobre a justiça, estreitando a reflexão” não ficou espaço para “uma abordagem crítica sobre a conjugação democrática de modelos de justiça, que hoje estão em confronto, com complexas implicações políticas e ideológicas”. E porfiou que “este debate é necessário; deve ser mesmo um imperativo democrático neste tempo de contingências no caminho crítico do Estado de direito”. E não pode “ser deixado ao sabor do calendário das conjunturas políticas, por vezes voláteis”, antes exige a participação política e das gentes da justiça, mas não pode dispensar o exercício de cidadania, que deverá ser o contributo, teoricamente amadurecido, da intelligentsia e dos meios académicos”.
Censurando as “alterações radicais, reveladas na criação paulatina e sub-reptícia de múltiplas instâncias de jurisdição material fora dos tribunais”, assegurou que os tribunais constituem “as instituições de referência na resolução de conflitos e na garantia das expectativas de validade das normas”. Por outro lado, afiançou que “o juiz sabe que é o guardador das liberdades e o último recurso na garantia dos direitos dos que não têm outros recursos, mas transporta hoje consigo o sentimento amargo de que o mundo, e até a lei, não têm a magia que lhe permita cumprir no todo o projeto do seu ideal”.
Por isso, entende que há que aprofundar o debate e repensar a justeza dos modelos e a sua eficácia, de modo a colocar acima de tudo, o acesso ao Direito, a realização dos direitos fundamentais do cidadão numa sociedade mais justa, equitativa e solidária.
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Em suma, é de questionar os poderes sobre que Justiça pretendem e com que independência. Pode ser independente uma Justiça tão dependente de meios e recursos? Pode ser independente a Justiça que não trata bem os seus operadores e os seus clientes ou que deixa muitos fora do acesso ao Direito? Pode ser independente a Justiça que não aceita a existência da figura do defensor público ou aquela que detém por tempo quase indeterminado arguidos sem culpa formada, sem julgamento e sob medidas de coação das liberdades? Pode ser independente a Justiça que, verificado o erro judiciário, não corrige prontamente ou aquela que deixa prescrever – sabe-se lá porquê – processos e mais processos?

2015.10.09 – Louro de Carvalho

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