Disse
e redigo que os tribunais são poder soberano, quer pelo ordenamento
constitucional, que os inclui no âmbito do poder político (vd
CRP, art.º 110.º/1 – são órgãos de soberania o Presidente da República, a
Assembleia da República, o Governo e os Tribunais), quer pela definição que a CRP deles faz: “os tribunais são os órgãos de soberania com
competência para administrar a justiça em nome do povo” (CRP,
art.º 202.º/1). Por
isso, pode falar-se, não em independência dos tribunais relativamente aos
outros poderes políticos (os políticos não são apenas os
outros, os eleitos),
mas em separação e interdependência (cf CRP, art.º 111.º/1). É certo que, segundo a CRP,
eles “são independentes e apenas estão
sujeitos à lei” (cf CRP, art.º 203.º), o que significa não uma
independência política absoluta (mercê da
interdependência, no sistema de contrapesos), mas uma independência orgânica e funcional,
porquanto as diretrizes de funcionamento, a distribuição do pessoal, a avaliação
e controlo das decisões, atitudes e comportamentos não saem do sistema
judiciário. E seria desejável que os tribunais pudessem organizar-se
autonomamente em termos territoriais e dispor de opções de planeamento e
orçamento próprios e terem de “depender” da disponibilidade de meios da parte
do Governo.
Depois,
não pode confundir-se a prevalência das decisões definitivas dos tribunais
sobre as de quaisquer outras autoridades (cf CRP, art.º 205.º/2) com a pretensa impossibilidade
de escrutínio e crítica.
***
Há
umas semanas a esta parte, a RTP 1 organizou um debate sobre a independência da
Justiça em que primou a ausência dos titulares das instâncias judiciais.
Genericamente,
foram criticados vários procedimentos: o excesso e abuso das medidas de coação,
nomeadamente a prisão preventiva; as useiras e vezeiras violações do segredo de
justiça, designadamente o trasfego de informação da parte investigação, do
Ministério Público, do TIC para a Comunicação Social; a frequente arrogância do
Ministério Público, que oculta informação às partes, nomeadamente à defesa; a
falta de explicação pública pertinente nos casos mediáticos; o fomento da
justiça-espetáculo ou a conivência com o espetáculo (pedidos
de levantamento de imunidade parlamentar, detenção, buscas em habitações e
escritórios, etc.);
confusão entre jornalismo de investigação e faculdade de ultrapassagem do
segredo de justiça; e falta de zelo contra a perceção por parte da opinião
pública de que a justiça tem uma agenda política (pró-partidária) e de que há uma justiça para
ricos e poderosos e outra para pobres e indefesos.
Por
outro lado, são inúmeras as circunstâncias de constrição que envolvem os
cidadãos que têm a ver com a administração da justiça, de que se destacam, a
título de exemplo: muitos dos procedimentos garantistas previstos na lei são
direcionados para simples manobras dilatórias, nomeadamente alguns pedidos de
aclaração e a interposição de alguns recursos; a falta de pontualidade no
início das sessões de audiência; a facilidade com que se adiam audiências; a
convocação de várias testemunhas para a mesma hora; a solenidade e o aparato de
que se reveste o tribunal; as contradições espelhadas em algumas sentenças e
acórdãos; a linguagem utilizada e os comentários desnecessários; a nebulosidade
que rodeia a fundamentação das decisões; e o caráter discricionário com que se
rejeita a anexação de peças aos processos.
***
A
cerimónia de abertura do ano judicial, no passado dia 8 de outubro, permite-nos
apreciar aquilo que os operadores judiciários de topo entendem da justiça em
Portugal. Assim:
***
O
Presidente da República, enquanto supremo magistrado do Estado, embora
reconheça que este é “um momento privilegiado para uma reflexão conjunta sobre
os desafios que o Direito e o sistema judicial enfrentam no nosso tempo”, quase
se limita a prestar homenagem à CRP (a Constituição), aos magistrados portugueses e
a todos quantos, no dia a dia, trabalham nos nossos tribunais”. Porém, não
deixa de declarar que “não é possível analisar os problemas com que a Justiça
se defronta sem ter presente as leis que nos regem”, dado que são os tribunais a
aplicar “as opções normativas do legislador aos feitos que lhes são submetidos
a julgamento”.
Depois,
alinha, a meu ver, de modo inadequado, com o status quo da Justiça, em que os juízes têm dificuldade em julgar
apenas segundo a lei, mas dando relevo à jurisprudência por se julgarem, mais
que aplicadores da lei, os seus intérpretes e, por consequência, os criadores
do Direito. Cavaco Silva vai ao ponto de afirmar que está “há muito
ultrapassada a conceção que encarava os juízes como uma mera ‘boca da lei’, que
se limita a aplicar a vontade do legislador.
Ora parece-me
que, estando eles “sujeitos à lei”, não têm de a enredar em explicações,
ampliações ou restrições. E tiro exatamente a conclusão contrária à do PR: se
“é a lei que os juízes devem aplicar”, embora “uma reflexão sobre a Justiça
sempre” deva “começar por uma análise da qualidade da legislação vigente no
País, eles, através das suas organizações, devem colaborar, em nome do dever de
cooperação pública, para que as leis sejam melhoradas, dando sugestões de
revisão e de alteração, e não julgando as leis, criticá-las ou atirar o
exclusivo da responsabilidade por elas para os “políticos”.
***
Por sua vez, a Bastonária da
Ordem dos Advogados (OA), depois de saudar o
momento democrático, como expressão de liberdade e consequência do sobressalto
cívico pedido pela ministra da Justiça em 2014, mas com a ânsia de
estabilidade, para que a liberdade não perigue, citou palavras de Mário Soares
no seu discurso de abertura
do ano judicial em 1995:
“As democracias modernas, nas sociedades
mediatizadas do nosso tempo, não se baseiam só na representatividade dos
Parlamentos e dos outros órgãos de soberania, eleitos por sufrágio direto e
universal, e nos órgãos do poder derivado, legitimados na eleição direta, na
transitoriedade de funções e no controlo político democrático. Baseiam-se
também, significativamente, na importância decisiva dada ao Direito, postulando
a subordinação de todo o poder político à Constituição”.
A seguir, pegando na deixa soarista, destaca, da CRP,
a sua fundamentação na “dignidade humana como base e fundamento da ação
conformadora do próprio Estado” e a sua função de catálogo expressivo dos “direitos
humanos”, dos “direitos fundamentais”, dos “direitos sociais, culturais e
económicos”. E, neste particular, aponta o “retrocesso clamoroso” que tem
atingido reiteradamente o “núcleo essencial” dos direitos fundamentais,
sobretudo na área da Justiça, e professa a sua indisponibilidade e da OA para “silenciar, um retrocesso nos direitos, nas liberdades e
nas garantias”. Depois, esclarece:
“Não basta
proclamar reformas, mesmo que sejam, ou como sendo, as maiores dos últimos
séculos, sobretudo quando se hipotecam os interesses dos cidadãos à
perpetuação de um nome na História, uma vez que o final para tão ávidos
apóstolos da bondade das suas próprias reformas será sempre trágico”.
E cita, a
propósito, Hanna Arendt:
“Em virtude dessa condescendência serão ‘escravos
e prisioneiros’ das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste
algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é
tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem.”
Não perde
também o ensejo de criticar “as reformas na Justiça impostas de forma
autocrática”, ignorando “as assimetrias do país, as desigualdades das suas
populações, os ritmos e as culturas diferentes das terras” – que estimulam o
descrédito reinante nas instituições democráticas e, “em particular, na própria
Justiça”. E dirige-se contra a disenteria legislativa, ou seja, a produção em
série de diplomas legislativos, que, além de “produzidos com precipitação e no
calor do momento” chegam a vergar “juízes, procuradores e advogados com leis,
decretos-lei e portarias, numa teia indecifrável de normas, tantas vezes contraditórias,
que não só obstam à desejada celeridade, eficiência e qualidade, como nos
enredam a todos em procedimentos burocráticos, que nos funcionalizam e nos
afastam daquela que é a nossa missão essencial: administrar e contribuir para a
boa administração da Justiça”. Daqui resulta que “não há certeza, nem segurança
no Direito!”. E ousa frisar a “depressão catatónica” que “a Justiça está a
ultrapassar”, sendo os operadores judiciais que a contrariam e que suportam “as
pesadas reformas, garantindo responsável e abnegadamente o regular
funcionamento dos Tribunais, ameaçado pelo colapso do CITIUS, pela “falta de infraestruturas” (de gabinetes
e salas de audiência) e pela “manifesta
insuficiência de funcionários judiciais”.
Sobre o
estado dos tribunais, diz:
“Temos tribunais
que funcionam em contentores com centenas de milhares de processos amontoados e
por tramitar, enquanto se encerraram outros, a poucos quilómetros de distância,
com condições de excelência (…); tribunais que estão mais lentos, porque comprometidos
por uma concentração mal planeada de processos; tribunais que estão menos
próximos porque se afastaram dos cidadãos e se sediaram, na sua esmagadora maioria,
nas capitais de distrito; tribunais que estão esvaziados, porque a
especialização os desqualificou e os reduziu à tramitação e julgamento da
bagatela cível e penal.”
Não deixa de
falar do défice de independência dos tribunais, mercê da “concentração de poderes
nos órgãos de gestão e no Juiz Presidente”, já que “não há tribunais
independentes, sem juízes, procuradores e advogados independentes”.
Depois,
frisa a não aprovação dos Estatutos dos Magistrados Judiciais e dos Magistrados
do Ministério Público e a mordaça com que, através do Estatuto da OA, se tentou
atingir “uma instituição que sempre foi baluarte de defesa dos direitos dos
cidadãos e a mais forte trincheira na defesa das liberdades”.
Além da
revisita necessária ao mapa judiciário, a Bastonária aduz que, “se o Estado não
pode garantir uma Justiça tendencialmente gratuita tem, pelo menos, que garantir
que não fique vedado o acesso ao direito e aos tribunais aos cidadãos, em razão
da sua situação económica, proporcionando a todos esse direito, em condições de
total igualdade”. Pelo que se impõe “a diminuição das custas judiciais e o
alargamento do apoio judiciário, mais que não seja na modalidade de pagamento
faseado das taxas, custas e demais encargos do processo”.
Finalmente,
afirma que mais do que endeusar a Justiça como pilar do Direito ou do que
proclamar o caráter soberano dos tribunais, urge dotá-los das infraestruturas e
meios humanos e técnicos “necessários ao seu funcionamento em plenitude”; abandonar
quaisquer opções de privatização da Justiça e de recurso a manobras de
desjudicialização, atentando “tantas vezes contra a dignidade do próprio
cidadão”, não respeitando as garantias e violando-lhe direitos; e “assumir um
combate sério à corrupção”, abandonando-se de vez “a opção propagandística da
mediatização do caso concreto através de fugas cirúrgicas para a comunicação
social e da violação do segredo de Justiça”, para satisfazer o espírito justiceiro
da praça pública, não garantindo “a transparência e a igualdade de
oportunidades”.
***
A
Procuradora-Geral da República também usou da palavra essencialmente para fazer
o balanço do ano judicial transato, salientando a vitalidade das instituições e
a produção legislativa atinente à Justiça, bem como aquela que introduziu “mudanças significativas e
estruturantes no quadro substantivo e processual regulador de matérias
relevantes”.
Apontou
o Novo Portal da Procuradoria-Geral, que “permitiu dar passos seguros e
significantes na construção de uma estratégia comunicacional, interna e
externa, orientada pela constante preocupação do princípio da transparência e
do acesso dos cidadãos ao conhecimento e à informação”.
Salientou
a ação e autonomia do Ministério Público como não incompatíveis com o necessário
escrutínio. Veio mesmo a esclarecer que autonomia do Ministério Público postula
a prestação de contas e a avaliação e escrutínio da comunidade, bem como “exige
o cumprimento rigoroso das normas substantivas, processuais e estatutárias que
consagram e definem os parâmetros e as regras precisas em que se desenvolve a
fiscalização e o controlo da intervenção do Ministério Público no âmbito do
próprio processo, designadamente no processo criminal”.
Depois
explicitou que “a autonomia do Ministério Público não se configura como um
privilégio do poder da instituição e dos seus magistrados”, mas se constitui “como
um pressuposto essencial da igualdade do cidadão perante a lei” e da própria “independência
dos tribunais”.
Por
fim, aduz a necessidade de meios humanos e logísticos para garantir a autonomia
do MP.
***
Por
seu turno, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, anfitrião do evento,
começou por enaltecer a vigência da Lei da Organização do Sistema Judiciário e
pediu a reflexão sobre as perspetivas da sua execução, cujos parâmetros apresentou.
Referiu também que o CSM (Conselho
Superior da Magistratura) prestou contas “pelo exercício das suas atribuições, que foi
fundamental na execução da reorganização judiciária, e deu conta das
informações que considerou relevantes sobre os aspetos conseguidos e as
dificuldades encontradas, para ponderação no futuro da execução”. E apontou os
pontos mais problemáticos:
- A
carência de oficiais de justiça, transversal a todas as comarcas, tendo sido o
concurso que recentemente terminou um primeiro passo para atenuar as
dificuldades;
- A
garantia do direito ao acesso ao tribunal em matérias sensíveis, como: as
questões de família e menores;
- A
complexidade resultante da imediata concentração nas secções das instâncias
centrais de execução e comércio das pendências repartidas por todos os anteriores
tribunais da área territorial abrangida, gerando pendências de muito difícil
gestão;
- A
necessidade de dados fiáveis e de estudos de campo sobre a eficácia da ação
executiva, apontando alguns dados empíricos para níveis preocupantes;
- A conveniência
na reponderação de algumas competências territoriais das secções de instâncias
centrais de instrução criminal.
Sublinhando que “as circunstâncias não permitem ainda formular
juízos elaborados”, fez um juízo de dificuldade e trabalho para próximos anos. E
não deixou de salientar que a nova organização judiciária dificilmente pode
passar sem a adaptação e modernização do Estatuto dos magistrados, não tendo
sido positivo “para a justiça o
naufrágio do Estatuto no fim da viagem”.
Depois, lamentou que, uma vez que “nos anos mais recentes, as
questões de organização do sistema tomaram a tempo inteiro o debate sobre a justiça,
estreitando a reflexão” não ficou espaço para “uma abordagem crítica sobre a
conjugação democrática de modelos de justiça, que hoje estão em confronto, com
complexas implicações políticas e ideológicas”. E porfiou que “este debate é
necessário; deve ser mesmo um imperativo democrático neste tempo de
contingências no caminho crítico do Estado de direito”. E não pode “ser deixado ao sabor do
calendário das conjunturas políticas, por vezes voláteis”, antes exige a
participação política e das gentes da justiça, mas não pode dispensar o
exercício de cidadania, que deverá ser o contributo, teoricamente amadurecido,
da intelligentsia e dos meios
académicos”.
Censurando as “alterações radicais, reveladas na criação paulatina
e sub-reptícia de múltiplas instâncias de jurisdição material fora dos tribunais”,
assegurou que os tribunais constituem “as instituições de referência na
resolução de conflitos e na garantia das expectativas de validade das normas”. Por
outro lado, afiançou que “o juiz sabe que é o guardador das liberdades e o
último recurso na garantia dos direitos dos que não têm outros recursos, mas
transporta hoje consigo o sentimento amargo de que o mundo, e até a lei, não
têm a magia que lhe permita cumprir no todo o projeto do seu ideal”.
Por isso, entende que há que aprofundar o debate e repensar a justeza
dos modelos e a sua eficácia, de modo a colocar acima de tudo, o acesso ao
Direito, a realização dos direitos fundamentais do cidadão numa sociedade mais
justa, equitativa e solidária.
***
Em suma, é de questionar os poderes sobre que Justiça pretendem e
com que independência. Pode ser independente uma Justiça tão dependente de
meios e recursos? Pode ser independente a Justiça que não trata bem os seus operadores
e os seus clientes ou que deixa muitos fora do acesso ao Direito? Pode ser
independente a Justiça que não aceita a existência da figura do defensor
público ou aquela que detém por tempo quase indeterminado arguidos sem culpa
formada, sem julgamento e sob medidas de coação das liberdades? Pode ser
independente a Justiça que, verificado o erro judiciário, não corrige prontamente
ou aquela que deixa prescrever – sabe-se lá porquê – processos e mais processos?
2015.10.09
– Louro de Carvalho
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