Dado o fervor
emprestado pelos diversos atores à campanha eleitoral, com vista às escolhas a
fazer nas eleições dos deputados à Assembleia da República, e a consequente
atenção da parte do eleitorado, parece que ficou eclipsada a alocução do
Presidente da República de Portugal no areópago mundial, a sede da ONU, por
ocasião da 70.ª sessão da sua assembleia geral.
Independentemente
do impacto que as suas palavras possam ter ou não na opinião pública
internacional e, consequentemente, nas decisões deste organismo que representa
praticamente todos os povos do Orbe, elas compaginam um conteúdo que todos devemos
ter em boa conta.
***
É
perfeitamente normal que o PR português saliente o que os outros chefes de
Estado também referem, mas Cavaco Silva não deixou de apresentar posições
específicas do nosso país.
Como é óbvio,
acentuou o “momento único da história coletiva da humanidade” que a criação da Organização
das Nações Unidas configura e cujo efeito se torna visível na “consagração de
princípios e objetivos” ditados pela “busca de uma paz duradoura, do
desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos” – “uma das principais
conquistas do mundo contemporâneo”.
Depois, elege
a Carta das Nações Unidas e os princípios e valores nela consagrados como “um
referencial e um sinal de esperança para o nosso futuro coletivo”.
Como
iniciativas concretas em cima da mesa das discussões o PR destaca:
- A adoção da
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, enquanto “oportunidade sem
paralelo para prepararmos uma era que erradique a pobreza e que leve a um mundo
de justiça e dignidade para todos”.
- O acordo
global, justo e vinculativo para todos sobre as alterações climáticas, a
celebrar em dezembro próximo na cidade de Paris – o que fará do ano de 2015 um
ano decisivo para estas negociações, decorridos que são dezassete anos desde
Quioto, exigindo-se à Comunidade Internacional ambição “no combate a esta
particular ameaça ao seu desenvolvimento sustentável”.
- As questões
dos Oceanos – “diretamente
relacionadas com as alterações climáticas” – “de crucial importância para
Portugal, à luz da sua história, da sua geografia e da sua identidade”.
Sobre este
último parâmetro de iniciativas, o Presidente adiantou o enaltecimento das
ações promovidas e a promover pelo nosso país:
- A
organização da Semana Azul, em junho
deste ano – “um evento internacional sobre o Mar”, que “mobilizou mais de
setenta países e instituições internacionais” e “permitiu um debate alargado e
uma reflexão estratégica sobre os desafios da gestão global dos Oceanos e do
aproveitamento responsável das suas potencialidades”;
- A
continuidade do nosso interesse no aprofundamento do “diálogo multilateral
sobre a sustentabilidade dos oceanos, reforçando o esforço global das Nações
Unidas”;
- A copresidência
portuguesa do grupo de Trabalho das Nações Unidas que visa a criação de um “sistema
fiável e detalhado de informação sobre o ambiente marinho”, de que resultou
publicação do “primeiro Relatório Global de Avaliação do Ambiente Marinho”, que
representa “um passo na direção certa” nesta matéria;
- E o empenho
de Portugal na elaboração de “um instrumento juridicamente vinculativo sobre
conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas que vão para
além da jurisdição nacional”.
No âmbito dos direitos humanos
Tendo
Portugal orientado, na ótica do PR, “a sua ação para a defesa do caráter
universal e individual de todos os direitos humanos”, “não só direitos civis e
políticos, mas também económicos, sociais e culturais”, Cavaco destaca a clara
prioridade do “combate à violência contra mulheres” (E porque não também contra idosos,
crianças e todas a pessoas indefesas?), sublinhando “o alarmante número de casos de violência
doméstica, nas mais diversas sociedades e estratos sociais, casos que não podem
continuar impunes”. A este respeito, ousa convidar “todos os Estados a
redobrarem os esforços para que se ponha cobro a este flagelo”, esperando que “este
seja um indicador a ter em conta na avaliação global do cumprimento dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.
Depois,
releva a importância atribuída em Portugal “aos Direitos da Criança, incluindo
o Direito à Educação, e às políticas de juventude”.
Os conflitos regionais e o papel do Conselho de Segurança
À luz da
convicção de que “os Direitos Humanos são património comum da Humanidade que
todos temos obrigação de defender, independentemente da geografia”, o PR releva
a tese de que, face à proliferação, a que assistimos, de “confrontos violentos
em várias regiões”, “nenhum conflito, por mais complexo que seja, permite
justificar a barbárie, seja por parte de Estados seja por atores não estatais”.
Destaca o primordial
papel relevante do Conselho de Segurança neste âmbito. Porém, entende que, “para
que possa desempenhar da forma mais eficaz o seu mandato, deve refletir as
realidades do nosso Mundo, o que pressupõe um alargamento de ambas as
categorias de membros, a par de uma revisão dos seus métodos de trabalho”.
Em certo
modo, Cavaco Silva está no alinhamento do discurso do Papa Francisco, mas o
líder da Igreja Católica estende a necessidade de renovação a todos os órgãos
executivos da ONU, dotados de real poder de decisão – nomeou, em especial, o
Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos
criados especificamente para enfrentar as crises económicas – salientando a
necessidade de suscitar a múltipla e assídua participação nas decisões. Cavaco,
por seu turno, circunscrevendo-se ao Conselho de Segurança, não deixa de lançar
um repto pertinente: por um lado, este órgão deve ser mais representativo (tanto ao nível dos membros
permanentes como ao nível dos membros que integram o órgão na sua composição
mais alargada) de modo a
refletir as realidades do Mundo; e, por outro, deve rever os seus métodos de
trabalho.
Talvez aqui o
PR pudesse ter ousado propor a supressão do direito de veto de alguns países
com assento permanente no Conselho de Segurança. Porém, pôr-se em bicos de pés
perante o mundo não é próprio de todos.
Portugal e o panorama internacional
O PR começa
por afirmar o dever de ação solidária e
responsável por força da trágica
situação humanitária na Síria, no Iraque, na Líbia e em tantos outros cenários
de conflito.
Referindo que
“algumas destas crises, nomeadamente na Síria, já custaram muitos milhares de
vidas humanas e estão na origem de um dos maiores fluxos de refugiados desde a
II Guerra Mundial”, censura o facto de a sua resolução se encontrar “refém de
bloqueios que prolongam e agravam situações de sofrimento para vastas
populações – o que não pode não pode continuar a acontecer”.
Destaca,
nesta matéria, o papel de Portugal, que, “numa linha de coerente tradição
humanista”, tem, desde a primeira hora, manifestado a devida solidariedade, já
traduzida na disponibilidade para acolher alguns milhares de pessoas carecidas
de proteção internacional”; e louva “o Alto Comissariado para os Refugiados,
que tem projetado os valores humanitários consagrados na Carta da ONU, porque
“a dignidade da vida humana é um bem absoluto que temos obrigação de respeitar
e proteger”.
Por outro
lado, a ameaça do terrorismo, que vem de alguns anos a esta parte, mas que hoje
“assume caraterísticas cada vez mais bárbaras e preocupantes”, obriga a “uma
resposta firme e concertada” e a “um combate determinado por parte da
Comunidade Internacional”. Tem de ser “uma resposta que atue também sobre as
causas que conduzem à radicalização e ao extremismo violento e que envolva os
Estados, as organizações internacionais, as comunidades religiosas e as
organizações da sociedade civil”.
Parece que o
PR terá em mente a responsabilidade do dito Ocidente (sobretudo do lado dos EUA, da
Grã-Bretanha, Espanha e Portugal; mais tarde, França e toda a UE) nas crises que eclodiram na
Tunísia, na Líbia, no Egito, na Síria e na Ucrânia, quando se apoiou não se
sabia quem contra quem que personalizava um determinado mal – afinal,
substituído por males bem piores.
Vem, depois, a
expressão da nossa “preocupação com o impasse que afeta o Processo de Paz no
Médio Oriente”, já que “não haverá paz duradoura sem uma resolução justa da
questão palestiniana que simultaneamente garanta a segurança de Israel”. Por
isso, é de instar com as partes no sentido de “retomarem as conversações de paz”,
na convicção de que “a única solução para o conflito será a criação, com base
nas resoluções das Nações Unidas, de dois Estados, vivendo lado a lado em
democracia, paz e segurança”.
Por outro
lado, a saudação que o PR fez pelo “acordo alcançado sobre o programa nuclear
iraniano” vem acompanhada pelo pressuposto do empenho de todas as partes
envolvidas na sua plena implementação.
Neste
capítulo, porém, o relevo discursivo vai para África, que “ocupa um lugar
especial na política externa portuguesa”. Portugal, segundo o PR, “encontra em
África parceiros de referência com os quais mantém um relacionamento próximo
nos mais diversos domínios”, desde “o diálogo político ao relacionamento
económico, à abordagem de questões de segurança e ao estabelecimento de
parcerias mutuamente vantajosas”.
Neste ano do 40.º
aniversário da independência de vários países africanos de língua oficial
portuguesa – designadamente Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e
Angola – “Portugal e o Povo Português associam-se a esta importante efeméride
histórica” – afirma o PR. No entanto, merece particular referência a situação da
Guiné-Bissau, que proclamou a sua independência em 1973, reconhecida por
Portugal no ano seguinte. O PR espera confiadamente “que os seus responsáveis
políticos reconheçam o valor essencial da estabilidade política e do trabalho
em conjunto que é exigido para a realização das reformas necessárias”,
incluindo o setor de segurança, o combate à impunidade e os projetos de
desenvolvimento socioeconómico. Por outro lado, Cavaco Silva, salientando que “a
maturidade democrática que o povo da Guiné-Bissau vem demonstrando é razão
suficiente para que a comunidade internacional permaneça unida e coordenada
para apoiar aquele país”, evoca “o quadro necessário para que a comunidade
internacional possa cumprir os compromissos de cooperação alcançados, em março,
na Conferência de Bruxelas” e assegura a continuidade do empenho de Portugal nas
“questões relativas à segurança marítima, especialmente no Golfo da Guiné”, participando
na “elaboração de estratégias internacionais de apoio” e reforçando “a nossa
cooperação bilateral com os Estados e as Organizações regionais africanas”.
Ainda, no quadro
deste capítulo, o PR aponta o reforço do relacionamento de Portugal com Estados
da América Latina, que levou a que “às nossas afinidades históricas e culturais”
adicionássemos “a vontade recíproca de nos conhecermos melhor e de aprofundarmos
o nosso relacionamento político e económico”.
Nesta ordem de
ideias o Chefe de Estado português saudou “os desenvolvimentos positivos no
plano das negociações de paz em curso na Colômbia e a normalização das relações
diplomáticas entre Cuba e os EUA”.
Sobre a língua portuguesa
Considerando
que “a língua portuguesa é um veículo de comunicação global economicamente
relevante, na qual se exprimem cerca de 250 milhões de pessoas, da Ásia à
Europa, da África à América, na sua vida quotidiana, no comércio e nos
negócios, na cultura e nas redes sociais”; e considerando igualmente que “é,
também, língua oficial ou de trabalho em diversas organizações internacionais,
nomeadamente em algumas das agências especializadas da ONU – Cavaco Silva põe
em evidência, perante a assembleia geral da ONU, “a legítima ambição da CPLP”
de “ver a língua portuguesa reconhecida como língua oficial das Nações Unidas”.
E porque não?
Qual será a razão da sua não inclusão como língua oficial da ONU? Falta de
empenho ou de política da língua? No entanto, andamos a perder tempo a discutir
uma mera reforma ortográfica, com a capa de acordo, a incidir sobre umas
míseras centenas de vocábulos…
No atinente ao compromisso de Portugal
Por fim, o PR
de Portugal, neste 70.º aniversário da ONU, reitera o compromisso que ali
expressou em 2008 (é
esta a segunda vez que Cavaco Silva discursa na sede da ONU, na assembleia
geral) em nome do país a
que preside e que representa: “Portugal, que comemora os sessenta anos da sua
adesão à ONU [atrasou-se
dez anos], continua
firmemente empenhado num multilateralismo eficaz”, participando “em operações
de peacekeeping”, tendo integrado por
três vezes “o Conselho de Segurança”, integrando atualmente “o Conselho de
Direitos Humanos” e defendendo “de forma intransigente, na sua atuação
internacional, os princípios orientadores da Carta”.
E terminou
assegurando que, “num mundo globalizado e interdependente como aquele em que
vivemos, apenas instituições multilaterais fortes poderão assegurar os
valores fundamentais da Paz, dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento Sustentável,
da Democracia e o respeito pelo Direito Internacional” –
no respeito integral da dignidade da pessoa humana e na liberdade.
2015.10.01 – Louro de Carvalho
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