quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Presidente Cavaco na 70.ª Assembleia Geral das Nações Unidas

Dado o fervor emprestado pelos diversos atores à campanha eleitoral, com vista às escolhas a fazer nas eleições dos deputados à Assembleia da República, e a consequente atenção da parte do eleitorado, parece que ficou eclipsada a alocução do Presidente da República de Portugal no areópago mundial, a sede da ONU, por ocasião da 70.ª sessão da sua assembleia geral.
Independentemente do impacto que as suas palavras possam ter ou não na opinião pública internacional e, consequentemente, nas decisões deste organismo que representa praticamente todos os povos do Orbe, elas compaginam um conteúdo que todos devemos ter em boa conta.
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É perfeitamente normal que o PR português saliente o que os outros chefes de Estado também referem, mas Cavaco Silva não deixou de apresentar posições específicas do nosso país.
Como é óbvio, acentuou o “momento único da história coletiva da humanidade” que a criação da Organização das Nações Unidas configura e cujo efeito se torna visível na “consagração de princípios e objetivos” ditados pela “busca de uma paz duradoura, do desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos” – “uma das principais conquistas do mundo contemporâneo”.
Depois, elege a Carta das Nações Unidas e os princípios e valores nela consagrados como “um referencial e um sinal de esperança para o nosso futuro coletivo”.
Como iniciativas concretas em cima da mesa das discussões o PR destaca:
- A adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, enquanto “oportunidade sem paralelo para prepararmos uma era que erradique a pobreza e que leve a um mundo de justiça e dignidade para todos”.
- O acordo global, justo e vinculativo para todos sobre as alterações climáticas, a celebrar em dezembro próximo na cidade de Paris – o que fará do ano de 2015 um ano decisivo para estas negociações, decorridos que são dezassete anos desde Quioto, exigindo-se à Comunidade Internacional ambição “no combate a esta particular ameaça ao seu desenvolvimento sustentável”.
- As questões dos Oceanos – “diretamente relacionadas com as alterações climáticas” – “de crucial importância para Portugal, à luz da sua história, da sua geografia e da sua identidade”.
Sobre este último parâmetro de iniciativas, o Presidente adiantou o enaltecimento das ações promovidas e a promover pelo nosso país:
- A organização da Semana Azul, em junho deste ano – “um evento internacional sobre o Mar”, que “mobilizou mais de setenta países e instituições internacionais” e “permitiu um debate alargado e uma reflexão estratégica sobre os desafios da gestão global dos Oceanos e do aproveitamento responsável das suas potencialidades”;
- A continuidade do nosso interesse no aprofundamento do “diálogo multilateral sobre a sustentabilidade dos oceanos, reforçando o esforço global das Nações Unidas”;
- A copresidência portuguesa do grupo de Trabalho das Nações Unidas que visa a criação de um “sistema fiável e detalhado de informação sobre o ambiente marinho”, de que resultou publicação do “primeiro Relatório Global de Avaliação do Ambiente Marinho”, que representa “um passo na direção certa” nesta matéria;
- E o empenho de Portugal na elaboração de “um instrumento juridicamente vinculativo sobre conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas que vão para além da jurisdição nacional”.
No âmbito dos direitos humanos
Tendo Portugal orientado, na ótica do PR, “a sua ação para a defesa do caráter universal e individual de todos os direitos humanos”, “não só direitos civis e políticos, mas também económicos, sociais e culturais”, Cavaco destaca a clara prioridade do “combate à violência contra mulheres” (E porque não também contra idosos, crianças e todas a pessoas indefesas?), sublinhando “o alarmante número de casos de violência doméstica, nas mais diversas sociedades e estratos sociais, casos que não podem continuar impunes”. A este respeito, ousa convidar “todos os Estados a redobrarem os esforços para que se ponha cobro a este flagelo”, esperando que “este seja um indicador a ter em conta na avaliação global do cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.
Depois, releva a importância atribuída em Portugal “aos Direitos da Criança, incluindo o Direito à Educação, e às políticas de juventude”.
Os conflitos regionais e o papel do Conselho de Segurança
À luz da convicção de que “os Direitos Humanos são património comum da Humanidade que todos temos obrigação de defender, independentemente da geografia”, o PR releva a tese de que, face à proliferação, a que assistimos, de “confrontos violentos em várias regiões”, “nenhum conflito, por mais complexo que seja, permite justificar a barbárie, seja por parte de Estados seja por atores não estatais”.  
Destaca o primordial papel relevante do Conselho de Segurança neste âmbito. Porém, entende que, “para que possa desempenhar da forma mais eficaz o seu mandato, deve refletir as realidades do nosso Mundo, o que pressupõe um alargamento de ambas as categorias de membros, a par de uma revisão dos seus métodos de trabalho”.
Em certo modo, Cavaco Silva está no alinhamento do discurso do Papa Francisco, mas o líder da Igreja Católica estende a necessidade de renovação a todos os órgãos executivos da ONU, dotados de real poder de decisão – nomeou, em especial, o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises económicas – salientando a necessidade de suscitar a múltipla e assídua participação nas decisões. Cavaco, por seu turno, circunscrevendo-se ao Conselho de Segurança, não deixa de lançar um repto pertinente: por um lado, este órgão deve ser mais representativo (tanto ao nível dos membros permanentes como ao nível dos membros que integram o órgão na sua composição mais alargada) de modo a refletir as realidades do Mundo; e, por outro, deve rever os seus métodos de trabalho.
Talvez aqui o PR pudesse ter ousado propor a supressão do direito de veto de alguns países com assento permanente no Conselho de Segurança. Porém, pôr-se em bicos de pés perante o mundo não é próprio de todos.
Portugal e o panorama internacional
O PR começa por afirmar o dever de ação solidária e responsável por força da trágica situação humanitária na Síria, no Iraque, na Líbia e em tantos outros cenários de conflito.
Referindo que “algumas destas crises, nomeadamente na Síria, já custaram muitos milhares de vidas humanas e estão na origem de um dos maiores fluxos de refugiados desde a II Guerra Mundial”, censura o facto de a sua resolução se encontrar “refém de bloqueios que prolongam e agravam situações de sofrimento para vastas populações – o que não pode não pode continuar a acontecer”.
Destaca, nesta matéria, o papel de Portugal, que, “numa linha de coerente tradição humanista”, tem, desde a primeira hora, manifestado a devida solidariedade, já traduzida na disponibilidade para acolher alguns milhares de pessoas carecidas de proteção internacional”; e louva “o Alto Comissariado para os Refugiados, que tem projetado os valores humanitários consagrados na Carta da ONU, porque “a dignidade da vida humana é um bem absoluto que temos obrigação de respeitar e proteger”.
Por outro lado, a ameaça do terrorismo, que vem de alguns anos a esta parte, mas que hoje “assume caraterísticas cada vez mais bárbaras e preocupantes”, obriga a “uma resposta firme e concertada” e a “um combate determinado por parte da Comunidade Internacional”. Tem de ser “uma resposta que atue também sobre as causas que conduzem à radicalização e ao extremismo violento e que envolva os Estados, as organizações internacionais, as comunidades religiosas e as organizações da sociedade civil”.
Parece que o PR terá em mente a responsabilidade do dito Ocidente (sobretudo do lado dos EUA, da Grã-Bretanha, Espanha e Portugal; mais tarde, França e toda a UE) nas crises que eclodiram na Tunísia, na Líbia, no Egito, na Síria e na Ucrânia, quando se apoiou não se sabia quem contra quem que personalizava um determinado mal – afinal, substituído por males bem piores.
Vem, depois, a expressão da nossa “preocupação com o impasse que afeta o Processo de Paz no Médio Oriente”, já que “não haverá paz duradoura sem uma resolução justa da questão palestiniana que simultaneamente garanta a segurança de Israel”. Por isso, é de instar com as partes no sentido de “retomarem as conversações de paz”, na convicção de que “a única solução para o conflito será a criação, com base nas resoluções das Nações Unidas, de dois Estados, vivendo lado a lado em democracia, paz e segurança”.
Por outro lado, a saudação que o PR fez pelo “acordo alcançado sobre o programa nuclear iraniano” vem acompanhada pelo pressuposto do empenho de todas as partes envolvidas na sua plena implementação.
Neste capítulo, porém, o relevo discursivo vai para África, que “ocupa um lugar especial na política externa portuguesa”. Portugal, segundo o PR, “encontra em África parceiros de referência com os quais mantém um relacionamento próximo nos mais diversos domínios”, desde “o diálogo político ao relacionamento económico, à abordagem de questões de segurança e ao estabelecimento de parcerias mutuamente vantajosas”.
Neste ano do 40.º aniversário da independência de vários países africanos de língua oficial portuguesa – designadamente Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola – “Portugal e o Povo Português associam-se a esta importante efeméride histórica” – afirma o PR. No entanto, merece particular referência a situação da Guiné-Bissau, que proclamou a sua independência em 1973, reconhecida por Portugal no ano seguinte. O PR espera confiadamente “que os seus responsáveis políticos reconheçam o valor essencial da estabilidade política e do trabalho em conjunto que é exigido para a realização das reformas necessárias”, incluindo o setor de segurança, o combate à impunidade e os projetos de desenvolvimento socioeconómico. Por outro lado, Cavaco Silva, salientando que “a maturidade democrática que o povo da Guiné-Bissau vem demonstrando é razão suficiente para que a comunidade internacional permaneça unida e coordenada para apoiar aquele país”, evoca “o quadro necessário para que a comunidade internacional possa cumprir os compromissos de cooperação alcançados, em março, na Conferência de Bruxelas” e assegura a continuidade do empenho de Portugal nas “questões relativas à segurança marítima, especialmente no Golfo da Guiné”, participando na “elaboração de estratégias internacionais de apoio” e reforçando “a nossa cooperação bilateral com os Estados e as Organizações regionais africanas”.
Ainda, no quadro deste capítulo, o PR aponta o reforço do relacionamento de Portugal com Estados da América Latina, que levou a que “às nossas afinidades históricas e culturais” adicionássemos “a vontade recíproca de nos conhecermos melhor e de aprofundarmos o nosso relacionamento político e económico”.
Nesta ordem de ideias o Chefe de Estado português saudou “os desenvolvimentos positivos no plano das negociações de paz em curso na Colômbia e a normalização das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA”.
Sobre a língua portuguesa
Considerando que “a língua portuguesa é um veículo de comunicação global economicamente relevante, na qual se exprimem cerca de 250 milhões de pessoas, da Ásia à Europa, da África à América, na sua vida quotidiana, no comércio e nos negócios, na cultura e nas redes sociais”; e considerando igualmente que “é, também, língua oficial ou de trabalho em diversas organizações internacionais, nomeadamente em algumas das agências especializadas da ONU – Cavaco Silva põe em evidência, perante a assembleia geral da ONU, “a legítima ambição da CPLP” de “ver a língua portuguesa reconhecida como língua oficial das Nações Unidas”.
E porque não? Qual será a razão da sua não inclusão como língua oficial da ONU? Falta de empenho ou de política da língua? No entanto, andamos a perder tempo a discutir uma mera reforma ortográfica, com a capa de acordo, a incidir sobre umas míseras centenas de vocábulos…
No atinente ao compromisso de Portugal
Por fim, o PR de Portugal, neste 70.º aniversário da ONU, reitera o compromisso que ali expressou em 2008 (é esta a segunda vez que Cavaco Silva discursa na sede da ONU, na assembleia geral) em nome do país a que preside e que representa: “Portugal, que comemora os sessenta anos da sua adesão à ONU [atrasou-se dez anos], continua firmemente empenhado num multilateralismo eficaz”, participando “em operações de peacekeeping”, tendo integrado por três vezes “o Conselho de Segurança”, integrando atualmente “o Conselho de Direitos Humanos” e defendendo “de forma intransigente, na sua atuação internacional, os princípios orientadores da Carta”.
E terminou assegurando que, “num mundo globalizado e interdependente como aquele em que vivemos, apenas instituições multilaterais fortes poderão assegurar os valores fundamentais da Paz, dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento Sustentável, da Democracia e o respeito pelo Direito Internacional – no respeito integral da dignidade da pessoa humana e na liberdade.

2015.10.01 – Louro de Carvalho

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