Em
torno do exame nacional de Português do 12.º, nesta 1.ª fase, surgiram dois
factos que geram polémica: um tem a ver com um alegado erro no enunciado, erro
que o IAVE, IP (Instituto de Avaliação Educativa,
Instituto Público),
entidade responsável pela elaboração, organização e avaliação das provas,
desmente; e outro, atinente a uma alegada fuga de informação prévia ao dia do dito
exame, que foi o dia 19.
***
O poema XXXVI (“Há poetas que são artistas”) de “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro, o heterónimo naturalista
de Fernando Pessoa, escolhido para o Grupo I de questões de resposta de média
extensão, tem um verso não igual à versão original, o que alegadamente provocou
confusão aos estudantes.
De facto, o seu 9.º verso, no original e na maior parte das versões que se
confrontam com o manuscrito, é: “Penso
nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”. Entretanto, no
exame, cuja referência é a 3.ª edição da obra “Poesia de Alberto Caeiro”, de Fernando Cabral Martins e Richard
Zenith, publicada em 2009, o mesmo verso tem a seguinte variante: “Penso nisto, não como quem pensa, mas
como quem não pensa”. A análise e interpretação do poema, que surge na parte A do Grupo
I da prova, devem ser feitas mediante a resposta a três questões. A segunda dessas
questões incide precisamente sobre o verso em causa, solicitando aos estudantes
que o interpretem “atendendo à especificidade da poesia de Alberto Caeiro”.
De acordo com
Hélder Sousa, Presidente do IAVE, “não há erro nenhum”. No comunicado enviado à
imprensa, o IAVE esclarece que “o verso em apreço apresenta, na obra citada na
prova, a redação que dela consta”. A edição da obra que foi citada no exame
“diverge de outras edições”, mas “o seu teor não impede nem condiciona a
resposta ao item 2 do Grupo I”: o aluno deve responder à questão com base no
poema citado, não com base em qualquer outro. E, no dia 21, o IAVE prestou mais
um esclarecimento reafirmando a inexistência de erro e argumentando:
“Como habitualmente, o IAVE tem de fazer opções na escolha de textos a
incluir nas provas, opções essas que são sempre sustentadas em pareceres de
especialistas, como aliás acontece com todo o conteúdo da prova”.
É óbvio que
não é o IAVE o autor material das provas, mas os professores a quem a sua
elaboração é confiada e ninguém duvida da competência destes professores. Não
obstante, seria útil que a entidade responsável, em vez de fugir com o rabo à
seringa, viesse esclarecer e promovesse a intervenção atempada de quem pudesse
esclarecer. Na verdade, há uma alteração, que não pode ser escamoteada, pois
uma alteração é uma alteração. É certo que não se trata de erro qua tali. Porém, como estamos a lidar
com estudantes a quem tudo pode servir de pretexto para perturbação, exceto o
comportamento deles, o IAVE ou o JNE (Júri Nacional de Exames) deveriam permitir e até aconselhar a intervenção
apaziguadora dos professores coadjuvantes nas salas de exame. Aliás, se não for
para intervirem em casos de necessidade ou de conveniência, pergunto-me para
que serve a figura do professor coadjuvante.
Eu sei que não é possível este professor entrar nas salas a não ser
com autorização do IAVE ou do JNE, mas devia ser. Basta de os professores
estarem simplesmente às ordens do comando, que podem nunca chegar. Há anos,
houve um erro na prova de História A e só quase no fim da prova o GAVE (então era assim que
se denominava) é que autorizou os
coadjuvantes a irem à sala, quando até alguns vigilantes já se tinham
apercebido da inexatidão e, sem alarme, pediam a intervenção de coadjuvantes
que não era autorizada. Burocracia que afinal não obsta a fugas de informação
prévias, mas tolhe o serviço!
Do meu ponto
de vista, os organizadores da prova, neste caso, estão livres de qualquer
censura, uma vez que mencionaram corretamente a edição em que se apoiaram.
Quanto aos alunos, há que dizer que tinham de analisar e
interpretar o material que lhes
foi apresentado, já que não é obrigatório que os textos do programa sejam todos
analisados em aula nem o exame se vincula necessariamente aos textos indicados
no programa. Nesta fase do campeonato, têm os alunos de considerar, na análise,
as caraterísticas da obra, mas atendo-se fundamentalmente ao texto em presença
e não a outro. E um aluno que detetasse a diferença de texto e a expressasse na
prova deveria ser valorizado por isso. E deixemo-nos de fantochadas. Quantos
alunos deram em aula o poema XXXVI?
“Penso
nisto, não como quem pensa, mas como quem respira” ou “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa”
não se torna essencial para a análise da poesia de Caeiro. Todavia, “como quem
respira” pode implicar, além da naturalidade desta ação automática, uma
necessidade, quando o poeta entende que o pensar é prejudicial, implicando “estar
doente dos olhos” e quebra a inocência, pois, “Amar é a eterna inocência / E a
única inocência não pensar”.
***
E
não é a primeira vez que surgem dúvidas em relação aos enunciados dos exames de
Português. Em 2015, a ANPROPORT (Associação Nacional de Professores de Português) denunciou a
existência de critérios diferentes para corrigir respostas idênticas nos exames
do ensino secundário. E nem todos os classificadores das provas tinham recebido
a mesma informação com as indicações para a correção do exame. Mas o IAVE
sustentou:
“A questão relativa ao
item do Grupo III, colocada nos media pela ANPROPORT, parece assentar num
desconhecimento da versão final dos critérios de classificação, na qual se
refere que a «apresentação de uma reflexão que associe os estímulos sensoriais
apenas ao domínio da publicidade não implica, por si só, a desvalorização das
respostas»”.
Em
2014, a mesma ANPROPORT disse ter encontrado um erro nos critérios de correção
do exame de Português do 12.º ano e que valia meio valor. O erro era referente
a um texto de Lídia Jorge sobre Eça de Queiroz em que o estudante tinha de
identificar o ato ilocutório da expressão “como um dia veremos”. A resposta
certa seria ato ilocutório assertivo, mas os critérios de avaliação lançados
pelo IAVE admitiam como resposta correta ato ilocutório compromissivo. E o IAVE
garantiu que não havia qualquer erro.
Já
em 2003, nas provas de aferição de Língua Portuguesa do 6.º ano, uma questão
continha um segmento linguístico do género “este livro não me pertence”. E os
alunos tinham de identificar o pronome pessoal e o demonstrativo. Os
professores classificadores levantaram a questão de a palavra “este” ser um
determinante demonstrativo e não um pronome demonstrativo. O então GAVE não se
deu às boas, mantendo a classificação de pronome demonstrativo e remeteu para a
Nova Gramática do Português Contemporâneo,
de Lindley Cintra e Celso Cunha. É certo que estes autores não distinguiam
pronomes e determinantes, mas que os pronomes se utilizam em posição
substantiva ou em posição adjetiva. Ora, desde há muitos anos que se ensina, de
acordo como os programas ministeriais, que os pronomes colocados em posição
adjetiva se denominam determinantes – eu ainda aprendi a chamar-lhes adjetivos
determinativos e ainda ensinei a chamar-lhes pronomes adjuntos.
Mas
o GAVE/IAVE não cede.
***
Outra
polémica rodeia o exame de Português do 12.º ano desta 1.ª fase. De acordo com
o Expresso on line, no dia 21, e
outros órgãos de Comunicação Social, o IAVE, IP, responsável pela elaboração
dos exames nacionais, divulgou a seguinte informação:
“Na sequência da divulgação de um
ficheiro áudio que revela informações sobre a prova de Português 639 da 1.ª
fase, realizada no passado dia 19, e que alegadamente foi difundido antes da
aplicação da prova, o IAVE vem informar que, como habitualmente, vai hoje
remeter para a IGEC [Inspeção Geral de Educação e Ciência] e para o Ministério
Público todas as informações de que dispõe sobre o caso para efeitos de
averiguação disciplinar e criminal”.
Em causa está
a gravação áudio que esteve a circular nas redes sociais e no Whastapp dias antes da prova que se
realizou no dia 19. Nesse áudio, ouve-se uma adolescente, que não se
identifica, a revelar conteúdos que coincidem com o que saiu no exame:
“Ó malta, falei com uma amiga minha
cuja explicadora é presidente do sindicato de professores – uma comuna – e diz
que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo e só de estudar Alberto Caeiro e contos e
poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E
pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória e
outra sobre a importância dos vizinhos no combate à solidão.”.
Tendo
o professor Miguel Bagorro, da Escola Secundária Luísa de Gusmão, em Lisboa,
tido conhecimento dessa gravação no passado dia 17, através de um aluno a quem dava explicações de
Português, acabou
por denunciar o sucedido ao ME (Ministério da Educação) logo no dia 19, após ter
confirmado que o conteúdo da prova correspondia ao que a jovem referia. Não o
fez antes, pois todos os anos há boatos sobre o que sai nos exames.
Ao final da
tarde do dia 21, quarta-feira, o IAVE emitiu novo comunicado explicando que “os
processos de denúncia ocorrem ocasionalmente, sendo sempre encaminhados para a
IGEC e para o Ministério Público que apuram responsabilidades e determinam as
sanções a aplicar, quando tal se justifique”. E diz que “o processo está a
entrar em fase de averiguação e estará em segredo de justiça, nada mais havendo
por ora a declarar”. No entanto, remeteu para os “próximos dias”
esclarecimentos sobre a possível fuga de informação relativo ao exame nacional
de Português, invocando o segredo de justiça para não avançar informações sobre
o processo judicial. O mesmo documento remete para os “próximos dias” outros
esclarecimentos sobre o caso, nomeadamente no atinente a “aspetos estatísticos,
históricos, metodológicos, de enquadramento, suas consequências”, entre outros.
Na denúncia
que enviou ao ME e ao JNE, o referido professor refere que esta alegada fuga de
informação “compromete seriamente a justiça do exame de Português” e defende
que este “deveria pura e simplesmente ser repetido”. E acrescenta:
“Independentemente
de vir ou não a ser anulada, o que me parece óbvio é que tem de haver um
controlo muito maior sobre as provas porque o que aconteceu descredibiliza
totalmente os exames nacionais”.
O referido professor entende que “não passa pela
cabeça de ninguém que seja possível, por coincidência, acertar nas três coisas”
e que “é óbvio que houve uma fuga”; e sustenta que “houve alunos que só
estudaram o referido” ou, pelo menos, dedicaram-se-lhe mais, “o que os beneficiou”.
No entanto, compreende que “anular a prova também pode causar injustiças,
nomeadamente para os estudantes que a realizaram sem ter acesso àquela gravação
e a quem o exame correu bem”, pelo que considera que esta “é uma decisão muito
difícil”.
***
Como foi referido, o ME reencaminhou a denúncia para o
IAVE, entidade independente a partir de Nuno Crato e responsável pelos exames
nacionais, que está a investigar. E o IAVE remeteu ainda para a IGEC e para o Ministério
Público. Porém, a Procuradora-Geral
da República (PGR), Joana Marques Vidal, afirmou que “até
ao final do dia de quarta-feira o Ministério Público não recebeu nenhuma
participação formal sobre uma alegada fuga de informação no exame de Português
do 12.º ano. Com efeito, na passada quinta-feira, disse à margem VII Congresso
dos Solicitadores e dos Agentes de Execução que decorreu até este sábado, em
Viana do Castelo que não sabia “se hoje houve
já a chegada de alguma participação formal ao Ministério Público”, pois, “ontem
[quarta-feira], ao fim da tarde, ainda não tinha dado entrada”. E adiantou que “o que existe é uma declaração pública
das entidades responsáveis a dizerem que vão mandar [a participação] ao Ministério Público”, frisando: “Estamos no início
de qualquer investigação”.
***
Não percebo
como ainda se duvida da existência da fuga de informação. Há dois pontos (e não três como
refere o professor) em que as
redes sociais e exame coincidem: texto de Fernando Pessoa / Alberto Caeiro e a
composição sobre a memória. Só falta encontrar os responsáveis.
É certo que
anular a prova traz injustiça para os que tiveram êxito sem terem sabido da informação
prévia. O razoável seria obrigar a nova prova os prevaricadores. Porém, dado o desconhecimento
da extensão da fraude, isso não é possível: nem uma inquirição sob juramento a
cada aluno resolveria o problema da verdade sobre o sucedido. A sujeição de um
universo delimitado de alunos a uma prova é viável em casos especiais como uma
greve de professores, funcionários, transportes ou o recentíssimo caso dos incêndios
florestais que acarretaram a necessidade de luto.
Não anular a
prova é erro e injustiça. Deve fazer-se investigação disciplinar e criminal que
leve ao apuramento das responsabilidades e ao efetivo castigo dos responsáveis –
cada um segundo a sua medida – sejam alunos ou professores, sejam sindicalistas
ou forças de segurança, sejam outros quaisquer. E não se pode esperar pelo
encontro e castigo dos responsáveis para tomar esta medida de anulação. Tomá-la
tardiamente seria prejuízo maior e maior injustiça.
Veja-se o
que se passa em caso de epidemia ou de incêndios: tomam-se medidas, mesmo sem
encontrar os responsáveis. É a saúde, a segurança e, neste caso, a confiança que
estão em causa.
Se isto
passa impune, para quê tanto aperto em sala de exames? É a proibição de entrada
a todos na sala, com exceção de inspetores e membros do secretariado; a
identificação do examinando e a verificação entre a prova e documentos; as
rubricas dos dois vigilantes na folha; a rubrica dos mesmos e do aluno em caso
de rasura do n.º de páginas; a proibição de os vigilantes se afastarem da sala,
estarem sentados, passearem, lerem, conversar alguma coisinha; a obrigação de distribuírem
primeiro a folha de prova e só depois o enunciado (quase sempre
com duas versões); e o facto
de não poderem os alunos chegar atrasados, sair antes do tempo regulamentar, usar
folhas de rascunho próprias, nem telemóveis nem máquinas de calcular não autorizadas,
nem dicionários… Para quê, se uma fuga de informação passa impune e sem
consequências?
E depois ainda
têm a lata de dizer que é na sala de exame que se cometem as falhas. Pudera! Não
há fugas todos os dias, nem os secretariados de exames e agrupamentos se estão
sempre a enganar…
2017.
06.23 – Louro de
Carvalho
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