Foi
no passado dia 12 de dezembro de 2016 que António Guterres prestou juramento
perante o mundo através da Assembleia Geral (AG) da Organização das Nações
Unidas (ONU) e vai no 6.º mês do seu mandato,
pois entrou em funções a 1 de janeiro deste ano. E, se é prematuro fazer um
balanço sobre a sua atuação, pois o tempo é ainda pouco e, como diz Melissa
Fleming, “o estado atual do mundo é inaceitável”, já é possível dizer algo da
ação do novel secretário-geral.
A
este respeito, a edição em papel do Expresso
de hoje, 10 de junho, a págs. 18 e 19, traz dois artigos – um de Cristina Peres
sob o título “O homem certo para o lugar
impossível” e outro de Miguel Monjardino sob o título “Os desafios de Guterres na ONU”, numa secção denominada “Guerra e Paz” – sobre as dificuldades,
intenções e desafios que se colocam ao líder executivo da ONU. Desses dois
textos se extraem alguns dados crivados e modelados a modos pessoais.
É
óbvio que o antigo Primeiro-Ministro de Portugal não enfrenta, para já, novos
conflitos, mas vê-os a alastrar e a ganhar nossos contornos; e não surgiu com
ele o terrorismo, nem mesmo nas suas novas modalidades, mas o flagelo persiste
e insiste nos mesmos e noutros lugares de forma preocupante e irritante – que o
diga o Reino Unido (Londres, Manchester…), o Egito ou a Rússia! Porém,
como sublinha, pela pena de Cristina Peres, Carlos Lopes (ex-secretário-geral
da Comissão Económica da ONU para África – UNECA), “na encruzilhada de que não é autor, mas de que é
obrigado a ser protagonista, Guterres tem de enfrentar alterações estruturais e
conjunturais”. E o mesmo perito da ONU sublinha que “até agora, não tinham sido
postos em causa os mecanismos tradicionais de negociação multilateral”.
E
aqui o ex-líder da UNECA critica a decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo
de Paris – e poderia citar o “Brexit” ou as pretéritas e passadas iminências da
saída da Itália, Holanda e França do EURO ou mesmo da UE – pelo que Guterres
“vai ter de lidar com a desconstrução dos consensos” que vem sendo
protagonizada por Vladimir Putin. Mas o perito considera que, apesar de, como
diz Louis Charbonneau (diretor da ONU para a ONG de defesa dos
direitos humanos – HRW),
o secretário-geral ser o homem certo para um cargo praticamente impossível”,
esta realidade não baixa as expectativas em torno de Guterres, pois “Ele tem
uma marca tão forte” das situações humanitárias (expatriados, refugiados,
migrações, mobilidade humana…)
“que nem se sentirá obrigado a falar nesses assuntos”, que afinal representa. E,
a respeito de Trump, é de referir que não é só o rompimento duma negociação
multilateral que é problema, mas também o desconhecimento das políticas que em
concreto se propõe definir e executar, dado que nos EUA, apesar do que se faz
crer, o poder do Presidente é passível de várias formas de controlo.
Porém,
embora Guterres tenha granjeado um notável protagonismo na área humanitária,
que se lhe colou de tal modo à pele que sossegou os defensores dos direitos
humanos durante e após o pico da crise dos refugiados, Charbonneau revela
preocupação face à decisão do secretário-geral de prestar declarações com menor
frequência que o seu antecessor, o que poderá ser entendido como ausência nalguns
casos. Em contraponto, há que ter em linha de conta que o trabalho da ONU em
prol do se mundo torna cada vez mais difícil, “mesmo muito difícil”, como dizem
alguns, entre os quais se conta Richard Atwwood, representante do IGG (International
Crisis Group) junto
da ONU. Por outro lado, Carlos Lopes, que identifica como outra tendência na
ONU o fim dos “factos adquiridos” em termos da regularização e estandardização
por via das tecnologias (com efeito, a regulação do discurso do
ódio, as quebras de privacidade os atropelos à bioética tornaram-se mais candentes
que as habituais violações dos direitos humanos), salienta as inúmeras viagens, sem parar, do
secretário-geral, o qual tem tornado públicos os encontros em que, num trabalho
de bastidores, promove as suas prioridades. Além disso, os conflitos evitados
não são publicitados. Trata-se, pois, dum trabalho de formiga, embora se espere
que Guterres passe a ser mais reativo e menos cauteloso, até porque tem a
prerrogativa de invocar o artigo 99.º que lhe permite levar assuntos ao
Conselho de Segurança.
É
óbvio que o trabalho do secretário-geral é difícil no contexto atual. Mas já o
é por natureza, dadas as três importantes funções que desempenha: a administração
da ONU, o topo da sua diplomacia e a liderança política. Todavia, Guterres era,
e é no momento, um dos líderes internacionais mais aptos para o desempenho do
cargo – ou, como acentuava, a 1 de janeiro, o The Guardian, tem a “preparação perfeita” para o job – tanto a nível académico como a
nível da governação nacional, bem como no âmbito do conhecimento da máquina
burocrática da instituição e das duras realidades que o trabalho no terreno
apresenta.
***
Segundo
Melissa Fleming, a já referida porta-voz de Guterres nos seus dois mandatos no
ACNUR (alto-comissariado
das nações unidas para os refugiados),
a questão fundamental do líder da ONU incide sobre o modo como se pode
melhorar, o estado atual do mundo, sem que, por outro lado, ele venha a piorar.
Também há que ter em conta que o ex-ACNUR manifestou como uma das suas
ambições, que lhe possibilitaram o acesso ao cargo, a transformação da
Organização “numa instituição indispensável na gestão da política internacional
num mundo em mudança”. De facto, as Nações Unidas não podem, como frisa
Monjardino, “continuar a viver entre as promessas e a ineficiência burocrática”,
com a sobreposição de vários departamentos que visam o mesmo campo de
preocupações (casos da água, com mais de 20 entidades, e da
agricultura, com 3 organizações só em Roma),
sem coordenação consistente e com dispêndio excessivo de meios. Por outro lado,
segundo o mesmo perito, a ONU revela-se “completamente ultrapassada do ponto de
vista tecnológico” e também está longe de ficar completa a equipa de altos
funcionários de António Guterres, em que este quer incluir um número razoável
de mulheres, mesmo no topo, para exemplo das organizações mundiais. Ora, a
alteração destas vertentes da burocracia dos organismos das Nações Unidas é o
primeiro dos desafios que interpelam Guterres.
Logo
a seguir, vem o segundo desafio: a resposta às questões da conjuntura política,
que são urgentes e dominam as notícias na Comunicação Social. Nestas se incluem
os refugiados, os ataques terroristas e os conflitos regionais. A resposta
passa pela prevenção e pela ofensiva diplomática, para o que se exige da ONU a
reforma que a torne mais flexível e descentralizada. E porque não pela abolição
do direito de veto da parte de um ou mais dos cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança?
E
o terceiro dos desafios colocados a Guterres, que não é menos relevante advém das
alterações estruturais na política internacional. É um tema que se tem
dificuldade em discutir. Sabe-se que o mundo está a mudar e agimos como se nada
de relevante estivesse a suceder. Fixados no problema do terrorismo, esquecemos
as grandes questões estratégicas, o que põe os países e as regiões em confronto.
Na opinião de Monjardino, estamos a viver “o regresso da história a uma série de
regiões”, ao “aumento da competição estratégica” e da “desordem”.
Perante
as dificuldades advenientes quer da reforma da ONU, quer das alterações
conjunturais e estruturais no mundo, Guterres tem a consciência clara dos problemas
e do que pode e deve fazer, como o exprime nas entrevistas que vem concedendo e
nos discursos que profere.
Em
suma, a tríplice missão de Guterres, vista numa perspetiva global, consiste em:
evitar as crises e pôr fim aos conflitos, pela via da abordagem multifacetada,
com relevo para a diplomacia da prevenção e reforço das parcerias; cuidar do
Planeta através da definição e desenvolvimento de políticas comuns,
nomeadamente no combate às alterações climáticas e a outras alterações nefastas
para o equilíbrio ecológico e humano que venham a evidenciar-se; e a
reformulação do parelho da ONU, pela criação de mecanismos de agilização da
contratação de funcionários e recursos, da flexibilização e da descentralização,
bem como pela instalação do regime de paridade entre o número de homens e
mulheres na gestão da instituição a diversos níveis.
***
Será
Guterres capaz de mobilizar a colaboração de todos os decisores políticos,
nomeadamente dos grandes, para efetuar as missões de que se sente incumbido? Ele
sabe que muito da resolução dos problemas não depende de si e que há muitas resistências,
embora disponha de um significativo ascendente pessoal ao saber tratar por tu
as questões e as pessoas. Esperamos que tal ascendente seja eficaz, desígnio
por que aos portugueses cabe torcer. Com efeito, o desempenho de Guterres
refletir-se-á no êxito da diplomacia portuguesa, no prestígio de Portugal
perante o concerto das nações e na satisfação orgulhosa dos seus admiradores. Mas,
na certa, a ele lhe apraz ficar com a certeza do dever cumprido, de tudo ter
feito num contexto em que a distância entre esperança e desilusão corre o risco
de ser ténue e curta.
2017.06.10 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário