sábado, 10 de junho de 2017

Seis meses depois do juramento de Guterres perante a AG da ONU

Foi no passado dia 12 de dezembro de 2016 que António Guterres prestou juramento perante o mundo através da Assembleia Geral (AG) da Organização das Nações Unidas (ONU) e vai no 6.º mês do seu mandato, pois entrou em funções a 1 de janeiro deste ano. E, se é prematuro fazer um balanço sobre a sua atuação, pois o tempo é ainda pouco e, como diz Melissa Fleming, “o estado atual do mundo é inaceitável”, já é possível dizer algo da ação do novel secretário-geral.
A este respeito, a edição em papel do Expresso de hoje, 10 de junho, a págs. 18 e 19, traz dois artigos – um de Cristina Peres sob o título “O homem certo para o lugar impossível” e outro de Miguel Monjardino sob o título “Os desafios de Guterres na ONU”, numa secção denominada “Guerra e Paz” – sobre as dificuldades, intenções e desafios que se colocam ao líder executivo da ONU. Desses dois textos se extraem alguns dados crivados e modelados a modos pessoais.
É óbvio que o antigo Primeiro-Ministro de Portugal não enfrenta, para já, novos conflitos, mas vê-os a alastrar e a ganhar nossos contornos; e não surgiu com ele o terrorismo, nem mesmo nas suas novas modalidades, mas o flagelo persiste e insiste nos mesmos e noutros lugares de forma preocupante e irritante – que o diga o Reino Unido (Londres, Manchester…), o Egito ou a Rússia! Porém, como sublinha, pela pena de Cristina Peres, Carlos Lopes (ex-secretário-geral da Comissão Económica da ONU para África – UNECA), “na encruzilhada de que não é autor, mas de que é obrigado a ser protagonista, Guterres tem de enfrentar alterações estruturais e conjunturais”. E o mesmo perito da ONU sublinha que “até agora, não tinham sido postos em causa os mecanismos tradicionais de negociação multilateral”.
E aqui o ex-líder da UNECA critica a decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris – e poderia citar o “Brexit” ou as pretéritas e passadas iminências da saída da Itália, Holanda e França do EURO ou mesmo da UE – pelo que Guterres “vai ter de lidar com a desconstrução dos consensos” que vem sendo protagonizada por Vladimir Putin. Mas o perito considera que, apesar de, como diz Louis Charbonneau (diretor da ONU para a ONG de defesa dos direitos humanos – HRW), o secretário-geral ser o homem certo para um cargo praticamente impossível”, esta realidade não baixa as expectativas em torno de Guterres, pois “Ele tem uma marca tão forte” das situações humanitárias (expatriados, refugiados, migrações, mobilidade humana…) “que nem se sentirá obrigado a falar nesses assuntos”, que afinal representa. E, a respeito de Trump, é de referir que não é só o rompimento duma negociação multilateral que é problema, mas também o desconhecimento das políticas que em concreto se propõe definir e executar, dado que nos EUA, apesar do que se faz crer, o poder do Presidente é passível de várias formas de controlo.
Porém, embora Guterres tenha granjeado um notável protagonismo na área humanitária, que se lhe colou de tal modo à pele que sossegou os defensores dos direitos humanos durante e após o pico da crise dos refugiados, Charbonneau revela preocupação face à decisão do secretário-geral de prestar declarações com menor frequência que o seu antecessor, o que poderá ser entendido como ausência nalguns casos. Em contraponto, há que ter em linha de conta que o trabalho da ONU em prol do se mundo torna cada vez mais difícil, “mesmo muito difícil”, como dizem alguns, entre os quais se conta Richard Atwwood, representante do IGG (International Crisis Group) junto da ONU. Por outro lado, Carlos Lopes, que identifica como outra tendência na ONU o fim dos “factos adquiridos” em termos da regularização e estandardização por via das tecnologias (com efeito, a regulação do discurso do ódio, as quebras de privacidade os atropelos à bioética tornaram-se mais candentes que as habituais violações dos direitos humanos), salienta as inúmeras viagens, sem parar, do secretário-geral, o qual tem tornado públicos os encontros em que, num trabalho de bastidores, promove as suas prioridades. Além disso, os conflitos evitados não são publicitados. Trata-se, pois, dum trabalho de formiga, embora se espere que Guterres passe a ser mais reativo e menos cauteloso, até porque tem a prerrogativa de invocar o artigo 99.º que lhe permite levar assuntos ao Conselho de Segurança.
É óbvio que o trabalho do secretário-geral é difícil no contexto atual. Mas já o é por natureza, dadas as três importantes funções que desempenha: a administração da ONU, o topo da sua diplomacia e a liderança política. Todavia, Guterres era, e é no momento, um dos líderes internacionais mais aptos para o desempenho do cargo – ou, como acentuava, a 1 de janeiro, o The Guardian, tem a “preparação perfeita” para o job – tanto a nível académico como a nível da governação nacional, bem como no âmbito do conhecimento da máquina burocrática da instituição e das duras realidades que o trabalho no terreno apresenta.  
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Segundo Melissa Fleming, a já referida porta-voz de Guterres nos seus dois mandatos no ACNUR (alto-comissariado das nações unidas para os refugiados), a questão fundamental do líder da ONU incide sobre o modo como se pode melhorar, o estado atual do mundo, sem que, por outro lado, ele venha a piorar. Também há que ter em conta que o ex-ACNUR manifestou como uma das suas ambições, que lhe possibilitaram o acesso ao cargo, a transformação da Organização “numa instituição indispensável na gestão da política internacional num mundo em mudança”. De facto, as Nações Unidas não podem, como frisa Monjardino, “continuar a viver entre as promessas e a ineficiência burocrática”, com a sobreposição de vários departamentos que visam o mesmo campo de preocupações (casos da água, com mais de 20 entidades, e da agricultura, com 3 organizações só em Roma), sem coordenação consistente e com dispêndio excessivo de meios. Por outro lado, segundo o mesmo perito, a ONU revela-se “completamente ultrapassada do ponto de vista tecnológico” e também está longe de ficar completa a equipa de altos funcionários de António Guterres, em que este quer incluir um número razoável de mulheres, mesmo no topo, para exemplo das organizações mundiais. Ora, a alteração destas vertentes da burocracia dos organismos das Nações Unidas é o primeiro dos desafios que interpelam Guterres.
Logo a seguir, vem o segundo desafio: a resposta às questões da conjuntura política, que são urgentes e dominam as notícias na Comunicação Social. Nestas se incluem os refugiados, os ataques terroristas e os conflitos regionais. A resposta passa pela prevenção e pela ofensiva diplomática, para o que se exige da ONU a reforma que a torne mais flexível e descentralizada. E porque não pela abolição do direito de veto da parte de um ou mais dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança?
E o terceiro dos desafios colocados a Guterres, que não é menos relevante advém das alterações estruturais na política internacional. É um tema que se tem dificuldade em discutir. Sabe-se que o mundo está a mudar e agimos como se nada de relevante estivesse a suceder. Fixados no problema do terrorismo, esquecemos as grandes questões estratégicas, o que põe os países e as regiões em confronto. Na opinião de Monjardino, estamos a viver “o regresso da história a uma série de regiões”, ao “aumento da competição estratégica” e da “desordem”.
Perante as dificuldades advenientes quer da reforma da ONU, quer das alterações conjunturais e estruturais no mundo, Guterres tem a consciência clara dos problemas e do que pode e deve fazer, como o exprime nas entrevistas que vem concedendo e nos discursos que profere.
Em suma, a tríplice missão de Guterres, vista numa perspetiva global, consiste em: evitar as crises e pôr fim aos conflitos, pela via da abordagem multifacetada, com relevo para a diplomacia da prevenção e reforço das parcerias; cuidar do Planeta através da definição e desenvolvimento de políticas comuns, nomeadamente no combate às alterações climáticas e a outras alterações nefastas para o equilíbrio ecológico e humano que venham a evidenciar-se; e a reformulação do parelho da ONU, pela criação de mecanismos de agilização da contratação de funcionários e recursos, da flexibilização e da descentralização, bem como pela instalação do regime de paridade entre o número de homens e mulheres na gestão da instituição a diversos níveis.
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Será Guterres capaz de mobilizar a colaboração de todos os decisores políticos, nomeadamente dos grandes, para efetuar as missões de que se sente incumbido? Ele sabe que muito da resolução dos problemas não depende de si e que há muitas resistências, embora disponha de um significativo ascendente pessoal ao saber tratar por tu as questões e as pessoas. Esperamos que tal ascendente seja eficaz, desígnio por que aos portugueses cabe torcer. Com efeito, o desempenho de Guterres refletir-se-á no êxito da diplomacia portuguesa, no prestígio de Portugal perante o concerto das nações e na satisfação orgulhosa dos seus admiradores. Mas, na certa, a ele lhe apraz ficar com a certeza do dever cumprido, de tudo ter feito num contexto em que a distância entre esperança e desilusão corre o risco de ser ténue e curta.

2017.06.10 – Louro de Carvalho

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