A
razão de ser desta reflexão prende-se com a afirmação do presidente da
celebração da Eucaristia dominical de hoje, dia 25 de junho, na Igreja dos
Padres Passionistas, de que Jeremias era, em certa medida, parecido com Jesus
Cristo. Dei-me, por isso, ao cuidado de ver quais os contributos que o texto da
sua profecia dá à proclamação da Palavra e reflexão/oração na missa dos
domingos do ano. Assim, no Ano A, é assumida como Leitura I apenas no 12.º
domingo do Tempo Comum (que, este ano, ocorreu hoje) e no 22.º (que,
este ano, ocorrerá a 3 de setembro):
Jr 20,10-13; e Jr 20,7-9 – respetivamente. Porém, no Ano B, a profecia de
Jeremias é assumida como Leitura I no 5.º domingo da Quaresma (Jr
31,31-34) e no 16.º
domingo do Tempo comum (Jr 23,1-6) e no 30.º (Jr 31,7-9); e, no ano C, no 1.º domingo do
Advento (Jr
33,14-16) e no 4.º
domingo do Tempo Comum (Jr 1,4-5.17-19) e no 20.º (Jr
38,4-6.8-10).
Depois
dum conspecto geral sobre o Livro de Jeremias, far-se-á um pequeno comentário
aos dois textos que figuram nos dois preditos domingos do Ano A.
***
“Jeremias” é
o nome atribuído ao livro do profeta, filho de Hilquias, cuja vida melhor se
conhece, visto que a sua obra nos fornece inúmeros dados, tanto de caráter
pessoal como social e histórico, atinentes ao seu tempo.
O seu
nascimento por volta de 650 a.C., em Anatot, aldeia da tribo de Benjamim,
situada a uns 5 km a nordeste de Jerusalém, duma família de ascendência
sacerdotal, marcou de forma decisiva a sua mensagem, especialmente no que se
refere à vinculação às tradições provenientes das tribos do norte e a
insistência com que sublinha a importância da aliança de Moisés. No que
respeita à personalidade do profeta, temos diversos capítulos de índole
autobiográfica: 1; 20,1-6; 26; 28-29; 34,8-22; 36-38; 45. Ainda mais
significativos são os seus textos denominados “confissões”, em que ele
testemunha, ao lado das suas angústias, o seu enamoramento por Deus:
11,18-12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18.
Jeremias (“o que chora muito”) não teve uma vida fácil. Deus ordenou-lhe que não
casasse, o que o inibiu de constituir família, porque as crianças nascidas
nesse período não teriam futuro (Jr 16,2-4). E, não participando em festas nem indo a funerais,
como sinal que Deus havia abandonado seu povo, a sua vida foi muito solitária.
No atinente ao contexto temporal, o profeta viveu num
período altamente conturbado da história de Israel: o fim do reino de Judá e a
destruição de Jerusalém (587/86 a.C.) pelo
império babilónico; e recebeu a vocação profética ainda na juventude (cf 1,6-7), no ano treze do reinado de Josias (cf 1,2), em 626. Num primeiro momento, manifesta a esperança
na restauração da unidade do povo, tarefa em que se empenhara o rei Josias,
através da reforma religiosa, com um ponto forte em 622 (cf 2 Rs
22,1-23,30) e centrada no movimento
deuteronomista.
Por via das
mudanças políticas que ocorreram no Médio Oriente, a partir de 625, ocasião em
que a Babilónia começou a impor-se politicamente, tal esperança foi-se esfumando;
e, com a morte de Josias às mãos do faraó Necao (em 609), o destino do reino ficou traçado, tendo o profeta de suportar as
trágicas consequências que daí resultaram. Na Judeia, durante a vida de
Jeremias, houve 3 reis (Josias, Joaquim e
Sedecias) e o governador Godolias. Os reis que
sucederam a Josias – Joaquim (609-597) e Sedecias
(597-586), limitaram-se a adiar um pouco o destino traçado
para Jerusalém após a morte de Josias. Jeremias viu-se assim confrontado entre
o imperativo da sua missão profética e a perseguição sistemática por parte dos
contemporâneos, que o acusavam de estar na origem do descalabro da pátria. São
deste período os oráculos mais dramáticos do livro, que refletem a experiência
do profeta e a tragédia iminente que pairava sobre o reino de Judá e, em
especial, sobre Jerusalém.
Devido à sua mensagem de castigo e destruição,
Jeremias foi considerado um traidor, que estava tentando desmoralizar o povo.
Foi preso várias vezes mercê das suas pregações, foi maltratado e alguns tentaram
matá-lo! (cf Jr 20,1-3; 26,8-9). Mas no
meio desse sofrimento todo, Deus
protegeu a vida de Jeremias. Por causa dos muitos sofrimentos por que passou,
Jeremias ficou triste e deprimido. Em certa ocasião, ele até quis morrer (cf Jr 20,17-18). Mas Jeremias continuou a confiar em Deus, que lhe deu força para
prosseguir.
O livro de
Jeremias é fruto duma composição lenta no tempo e muito complexa. Segundo os
dados do cap. 36, o profeta não escrevia; tinha para isso um “secretário” (Baruc), que lhe registou os oráculos e os leu no Templo.
Porém, Joaquim mandou queimar a que terá sido, em linguagem hodierna, a primeira
versão do livro do profeta. Não obstante, foram refeitos os seus oráculos e
foram adicionados outros. Por se tratar da melhor fonte que possuímos acerca da
situação política e social coeva, o livro tem sido objeto de inúmeros estudos,
que possibilitam um melhor conhecimento duma época tão conturbada. Para além do
relato da vocação do profeta (1,4-19), o texto
divide-se nas seguintes secções temáticas:
(i) oráculos dirigidos ao povo de Deus (1,1–25,14); (ii) oráculos contra as nações estrangeiras (25,15-38); (iii) relatos
biográficos de Jeremias (26,1–45,5); (iv) oráculos contra as nações
estrangeiras (46,1–51,64); e (v) apêndice
(52,1-34).
Em virtude
da forma como está organizada a obra e da falta de ordem cronológica, nem
sempre é fácil seguir a mensagem do profeta no seu desenvolvimento, sucedendo
também, por vezes, que as versões atuais são apresentadas a partir do texto
grego (tradução dos Setenta), que não corresponde integralmente ao original
hebraico, pois, além de ser mais breve (cerca de um oitavo), os textos encontram-se numa ordem diferente.
***
Do ângulo da
sua teologia, a mensagem de Jeremias é marcadamente espiritual e teológica. Nela,
sobressai a doutrina da nova aliança (31,31-34) e a sua constante e afincada confiança no Senhor,
que ajuda o profeta a superar todas as adversidades com que se vê confrontado.
Dotado de grande sensibilidade, Jeremias é um testemunho vivo de homem
plenamente apaixonado pela causa de Deus e pela identidade espiritual e
religiosa do povo. É neste sentido que devem ser lidos os seus oráculos sobre a
infidelidade do povo e o castigo de Deus – paixão que ele viveu até ao fim e
por causa da qual deu a vida, apedrejado pelos contemporâneos.
Além da
veemência com que proclamava os oráculos, o profeta recorria frequentemente a
gestos simbólicos com forte acento nacional, capazes de impressionar os ouvintes
e os interpelar com vista à conversão. E, apesar das constantes proclamações de
que a pátria seria destruída, Jeremias nunca foi profeta ao serviço da
Babilónia. Soube colocar o projeto de Deus acima dos interesses políticos e
exortar à fidelidade os seus contemporâneos, embora os seus apelos tenham sido
em vão. Por isso, Jerusalém viria a ser destruída em 587 e o povo de Israel
partiria para o exílio na Babilónia, a fim de expiar o seu pecado.
***
Também se
atribui tradicionalmente a Jeremias o livro das Lamentações ou Trenos. É um
pequeno conjunto de cinco poemas, em estilo elegíaco, provavelmente escritos
após a queda e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor (587-586 a.C.), sendo
os primeiros 4 desenvolvidos por estrofes encimadas pelas letras do alfabeto
hebraico e o quinto (também denominado “Oração” do profeta Jeremias) desenvolvido em estrofes sem qualquer título. Apesar
de a tradição o atribuir a Jeremias, essa autoria tem pouca consistência, pois
tal atribuição fundamenta-se em 2 Cr 35,25 – texto que diz respeito à morte do
último grande rei de Judá, Josias, nada tendo a ver com o conteúdo deste livro.
Ademais, em Lm 2,9 diz-se que “aos profetas são recusadas as visões”, o que
seria estranho em Jeremias. A Bíblia Hebraica coloca ainda este livro entre os Escritos, depois do Cântico dos Cânticos, não entre os Profetas. Deverá, pois, o autor
ser um discípulo de Jeremias que guarda algumas afinidades com o estilo do
mestre.
O título da
obra traduz o hebraico “qinôt”, que
se encontra no “Talmud” (Hag 5b fala do Livro das Lamentações: “Sefer Qinôt”) e em outros escritos rabínicos (v.g., o
grande “Midrash Rabbá”, em “Lamentações Rabbá” IV,20); e a versão grega chama-lhe “thrénoi”, que expressa o mesmo sentido.
Como se
disse, os 4 primeiros poemas são alfabéticos, iniciando-se cada estrofe com a
respetiva letra do alfabeto hebraico. Trata-se de um processo literário
complexo, em que, além da arte e mestria, parece pretender realçar o simbolismo
do texto e o ritmo do seu próprio canto.
O autor
lamenta-se da situação miserável em que o povo e as instituições se encontram;
e realça a humilhação extrema a que chegaram Israel e Jerusalém – em consequência
do mau proceder do povo e da sua infidelidade à Aliança. A situação é efetivamente interpretada à luz da fé como um castigo e como um tempo de purificação,
dado haver uma esperança última de que Deus voltará o seu olhar clemente
para o povo (fim da 5.ª Lamentação/oração). É, assim,
que judeus e cristãos fazem uso destes poemas na liturgia em momentos significativos da sua História: os judeus, nas festas de jejum, recordando a destruição de
Jerusalém, no ano 70, pelos romanos; os cristãos, na liturgia da Semana Santa,
recordando os sofrimentos da Paixão de Cristo.
***
No
22.º domingo do Tempo Comum ler-se-á Jr 20,7-9:
“Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir! Tu me
dominaste e venceste. Sou objeto de contínua irrisão, e todos escarnecem de
mim. Todas as vezes que falo é para proclamar:
‘Violência! Opressão!’. A palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de
insultos e escárnios, dia após dia. A
mim mesmo dizia: ‘Não pensarei nele mais! Não falarei mais em seu nome!’. Mas,
no meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos.
Esforçava-me por contê-lo, mas não podia.”.
E,
no 12.º domingo do Tempo Comum, leu-se Jr 20,10-13:
“Ouvia invectivas da multidão: ‘Cerco de terror! Denunciai-o!
Vamos denunciá-lo!’. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos: ‘Se o
enganarmos, triunfaremos dele, e dele nos vingaremos’. Mas o Senhor está comigo como poderoso
guerreiro. Por isso, os meus perseguidores serão esmagados e cobertos de confusão,
porque não hão de prevalecer. A sua ignomínia nunca se apagará da memória. E Tu, Senhor do universo, examinas o justo,
sondas os rins e os corações. Que eu possa contemplar a tua vingança contra
eles, pois a ti confiei a minha causa! Cantai
ao Senhor, glorificai o Senhor, porque salvou a vida do pobre da mão dos
malvados.”.
Como
se vê, os dois textos pertencem ao capítulo 20 que constitui a chamada quinta
confissão de Jeremias e que evidencia um depoimento original sobre o drama do ministério
profético, imposto por Deus e efetivamente levado a cabo com grande relutância
por parte do chamado. Este foi seduzido pelo Senhor cuja força e poder de
atração foram mais fortes que a inércia ou a resistência do profeta. Porém, o desempenho
ministerial do profeta é cercado pelos insultos e escárnios dos ouvintes. E,
apesar de se sentir vítima da sedução do Senhor e dos insultos dos
contemporâneos, consegue resistir à tentação de abandonar o serviço da palavra
por causa do fogo devorador que habita o seu íntimo: é a força irresistível da
Palavra de Deus.
Acusado
de sedutor das massas e anunciador de desgraças, Jeremias não passa de
funcionar como o pregão do realismo. O Rei e o seu Conselho preferiram confiar
nos poderes terrestres em detrimento da confiança no Senhor. Por isso e apesar
de o profeta se sentir abalado pelo que anuncia, ele persiste na proclamação da
certeza de que o povo não resistirá ao poderio da Babilónia. É também o
realismo com que o Senhor quer persuadir os discípulos para, apesar de
resistentes, O seguirem até à morte e morte de cruz por causa do Reino, ficando
merecedores da Ressurreição e dignos de anunciarem a Boa Nova (cf
Mt 16,21-27).
O
segundo texto mostra-nos o profeta consciente da índole espinhosa da missão. Impelido
por Deus, mas cercado pela perseguição dos circunstantes, a sua postura acaba por
roçar a desesperação, em paralelo com o que se passa no cap. 3 do livro de Job.
De facto, ter de anunciar que o povo irá para o exílio por causa das suas
infidelidades suscita ódios, conspiração e perseguição. No entanto, o profeta
recobra ânimo e redobra a sua confiança no Senhor, entregando-lhe a causa do mesmo
Senhor e acabando por convidar os companheiros a entoar os louvores de Deus:
“Cantai
ao Senhor, glorificai o Senhor, porque salvou a vida do pobre da mão dos
malvados.”.
O
texto de Jeremias (Jeremias quer dizer: Deus exalta) constitui um antídoto contra o
medo que a cultura de hoje, como no tempo do profeta, instaurou na sociedade. Hoje
é a guerra em pedaços, terrorismo, atentados, crime organizado, violência
domestica e social. Porém, nada ocorre sem que o Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo e Pai comum o saiba. É a sua providência em torno das coisas pequenas como
os passarinhos. Ora, nós, que valemos mais que os passarinhos, não podemos temer
os que matam o corpo, mas não podem matar a alma e a sua liberdade. Pelo que,
acima de tudo, tem de estar o declarar-se por Cristo diante dos homens (cf
Mt 10, 26-33).
***
O livro de Jeremias lê-se com gosto, pois é ambientado numa
época importante para o povo de Israel e tem imagens surpreendentes,
apresentando-nos um Deus livre que busca justamente a transformação da
realidade, permanecendo sempre fiel à aliança. E é entusiasmante a biografia de
Jeremias: o profeta que sofre por mor da sua fidelidade. Porém, há dois
elementos, aparentemente contraditórios, típicos do livro. Por um lado o livro
apresenta – e poderíamos dizer que é a missão de Jeremias – a promessa, cheia
de esperança, de uma aliança nova, escrita no coração; por outro, são típicas
as lamentações do profeta, a ponto de em espanhol se usar o termo “jeremiada”
para descrever uma situação onde existe lamentações contínuas.
O contexto religioso em que viveu o profeta é peculiar. O
povo pensava que a presença de Deus garantiria a proteção contra todas as
catástrofes. Com efeito, muitos acreditavam que, enquanto Samaria foi destruída,
Deus livrava milagrosamente Jerusalém da guerra (2Rs
19,35; Is 36,37), pois ali estava o seu Templo. Por isso, no tempo de
Jeremias, o povo tinha a convicção que a presença de YHWH o protegeria dos seus
inimigos. Jeremias anuncia que tal confiança, sem nenhuma atitude pessoal, acarretará
a destruição de Jerusalém.
Face
à ameaça de Babilónia, os governantes da Judeia
buscam alianças humanas. Jeremias, ao invés, pede a confiança em Deus e anuncia
a destruição e o exílio – vistos como castigo pelos pecados do povo, dos
governantes. Contudo, dá-se conta de que esse fim trágico para o povo não é a
última palavra. Diante do exílio e da destruição do Templo ele anuncia um novo
início, uma nova criação, uma nova aliança. De profeta da desgraça presente por
causa dos homens passa a profeta da esperança futura por causa da bondade de
Deus!
2017.06.25 – Louro de Carvalho
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