segunda-feira, 26 de junho de 2017

A presença da profecia de Jeremias nos domingos do Ano A

A razão de ser desta reflexão prende-se com a afirmação do presidente da celebração da Eucaristia dominical de hoje, dia 25 de junho, na Igreja dos Padres Passionistas, de que Jeremias era, em certa medida, parecido com Jesus Cristo. Dei-me, por isso, ao cuidado de ver quais os contributos que o texto da sua profecia dá à proclamação da Palavra e reflexão/oração na missa dos domingos do ano. Assim, no Ano A, é assumida como Leitura I apenas no 12.º domingo do Tempo Comum (que, este ano, ocorreu hoje) e no 22.º (que, este ano, ocorrerá a 3 de setembro): Jr 20,10-13; e Jr 20,7-9 – respetivamente. Porém, no Ano B, a profecia de Jeremias é assumida como Leitura I no 5.º domingo da Quaresma (Jr 31,31-34) e no 16.º domingo do Tempo comum (Jr 23,1-6) e no 30.º (Jr 31,7-9); e, no ano C, no 1.º domingo do Advento (Jr 33,14-16) e no 4.º domingo do Tempo Comum (Jr 1,4-5.17-19) e no 20.º (Jr 38,4-6.8-10).
Depois dum conspecto geral sobre o Livro de Jeremias, far-se-á um pequeno comentário aos dois textos que figuram nos dois preditos domingos do Ano A.
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“Jeremias” é o nome atribuído ao livro do profeta, filho de Hilquias, cuja vida melhor se conhece, visto que a sua obra nos fornece inúmeros dados, tanto de caráter pessoal como social e histórico, atinentes ao seu tempo.
O seu nascimento por volta de 650 a.C., em Anatot, aldeia da tribo de Benjamim, situada a uns 5 km a nordeste de Jerusalém, duma família de ascendência sacerdotal, marcou de forma decisiva a sua mensagem, especialmente no que se refere à vinculação às tradições provenientes das tribos do norte e a insistência com que sublinha a importância da aliança de Moisés. No que respeita à personalidade do profeta, temos diversos capítulos de índole autobiográfica: 1; 20,1-6; 26; 28-29; 34,8-22; 36-38; 45. Ainda mais significativos são os seus textos denominados “confissões”, em que ele testemunha, ao lado das suas angústias, o seu enamoramento por Deus: 11,18-12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18.
Jeremias (“o que chora muito”) não teve uma vida fácil. Deus ordenou-lhe que não casasse, o que o inibiu de constituir família, porque as crianças nascidas nesse período não teriam futuro (Jr 16,2-4). E, não participando em festas nem indo a funerais, como sinal que Deus havia abandonado seu povo, a sua vida foi muito solitária.
No atinente ao contexto temporal, o profeta viveu num período altamente conturbado da história de Israel: o fim do reino de Judá e a destruição de Jerusalém (587/86 a.C.) pelo império babilónico; e recebeu a vocação profética ainda na juventude (cf 1,6-7), no ano treze do reinado de Josias (cf 1,2), em 626. Num primeiro momento, manifesta a esperança na restauração da unidade do povo, tarefa em que se empenhara o rei Josias, através da reforma religiosa, com um ponto forte em 622 (cf 2 Rs 22,1-23,30) e centrada no movimento deuteronomista.
Por via das mudanças políticas que ocorreram no Médio Oriente, a partir de 625, ocasião em que a Babilónia começou a impor-se politicamente, tal esperança foi-se esfumando; e, com a morte de Josias às mãos do faraó Necao (em 609), o destino do reino ficou traçado, tendo o profeta de suportar as trágicas consequências que daí resultaram. Na Judeia, durante a vida de Jeremias, houve 3 reis (Josias, Joaquim e Sedecias) e o governador Godolias. Os reis que sucederam a Josias – Joaquim (609-597) e Sedecias (597-586), limitaram-se a adiar um pouco o destino traçado para Jerusalém após a morte de Josias. Jeremias viu-se assim confrontado entre o imperativo da sua missão profética e a perseguição sistemática por parte dos contemporâneos, que o acusavam de estar na origem do descalabro da pátria. São deste período os oráculos mais dramáticos do livro, que refletem a experiência do profeta e a tragédia iminente que pairava sobre o reino de Judá e, em especial, sobre Jerusalém.
Devido à sua mensagem de castigo e destruição, Jeremias foi considerado um traidor, que estava tentando desmoralizar o povo. Foi preso várias vezes mercê das suas pregações, foi maltratado e alguns tentaram matá-lo! (cf Jr 20,1-3; 26,8-9). Mas no meio desse sofrimento todo, Deus protegeu a vida de Jeremias. Por causa dos muitos sofrimentos por que passou, Jeremias ficou triste e deprimido. Em certa ocasião, ele até quis morrer (cf Jr 20,17-18). Mas Jeremias continuou a confiar em Deus, que lhe deu força para prosseguir.
O livro de Jeremias é fruto duma composição lenta no tempo e muito complexa. Segundo os dados do cap. 36, o profeta não escrevia; tinha para isso um “secretário” (Baruc), que lhe registou os oráculos e os leu no Templo. Porém, Joaquim mandou queimar a que terá sido, em linguagem hodierna, a primeira versão do livro do profeta. Não obstante, foram refeitos os seus oráculos e foram adicionados outros. Por se tratar da melhor fonte que possuímos acerca da situação política e social coeva, o livro tem sido objeto de inúmeros estudos, que possibilitam um melhor conhecimento duma época tão conturbada. Para além do relato da vocação do profeta (1,4-19), o texto divide-se nas seguintes secções temáticas:
(i) oráculos dirigidos ao povo de Deus (1,1–25,14); (ii) oráculos contra as nações estrangeiras (25,15-38); (iii) relatos biográficos de Jeremias (26,1–45,5); (iv) oráculos contra as nações estrangeiras (46,1–51,64); e (v) apêndice (52,1-34).
Em virtude da forma como está organizada a obra e da falta de ordem cronológica, nem sempre é fácil seguir a mensagem do profeta no seu desenvolvimento, sucedendo também, por vezes, que as versões atuais são apresentadas a partir do texto grego (tradução dos Setenta), que não corresponde integralmente ao original hebraico, pois, além de ser mais breve (cerca de um oitavo), os textos encontram-se numa ordem diferente.
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Do ângulo da sua teologia, a mensagem de Jeremias é marcadamente espiritual e teológica. Nela, sobressai a doutrina da nova aliança (31,31-34) e a sua constante e afincada confiança no Senhor, que ajuda o profeta a superar todas as adversidades com que se vê confrontado. Dotado de grande sensibilidade, Jeremias é um testemunho vivo de homem plenamente apaixonado pela causa de Deus e pela identidade espiritual e religiosa do povo. É neste sentido que devem ser lidos os seus oráculos sobre a infidelidade do povo e o castigo de Deus – paixão que ele viveu até ao fim e por causa da qual deu a vida, apedrejado pelos contemporâneos.
Além da veemência com que proclamava os oráculos, o profeta recorria frequentemente a gestos simbólicos com forte acento nacional, capazes de impressionar os ouvintes e os interpelar com vista à conversão. E, apesar das constantes proclamações de que a pátria seria destruída, Jeremias nunca foi profeta ao serviço da Babilónia. Soube colocar o projeto de Deus acima dos interesses políticos e exortar à fidelidade os seus contemporâneos, embora os seus apelos tenham sido em vão. Por isso, Jerusalém viria a ser destruída em 587 e o povo de Israel partiria para o exílio na Babilónia, a fim de expiar o seu pecado.
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Também se atribui tradicionalmente a Jeremias o livro das Lamentações ou Trenos. É um pequeno conjunto de cinco poemas, em estilo elegíaco, provavelmente escritos após a queda e destruição de Jeru­salém por Nabucodonosor (587-586 a.C.), sendo os primeiros 4 desenvolvidos por estrofes encimadas pelas letras do alfabeto hebraico e o quinto (também denominado “Oração” do profeta Jeremias) desenvolvido em estrofes sem qualquer título. Apesar de a tradição o atribuir a Jeremias, essa autoria tem pouca consistência, pois tal atribuição fundamenta-se em 2 Cr 35,25 – texto que diz respeito à morte do último grande rei de Judá, Josias, nada tendo a ver com o conteúdo deste livro. Ademais, em Lm 2,9 diz-se que “aos profetas são recusadas as visões”, o que seria estranho em Jeremias. A Bíblia Hebraica coloca ainda este livro entre os Escritos, depois do Cântico dos Cânticos, não entre os Profetas. Deverá, pois, o autor ser um discípulo de Jeremias que guarda algumas afinidades com o estilo do mestre.
O título da obra traduz o hebraico “qinôt”, que se encontra no “Talmud” (Hag 5b fala do Livro das Lamentações: “Sefer Qinôt”) e em outros escritos rabínicos (v.g., o grande “Midrash Rabbá”, em “Lamentações Rabbá” IV,20); e a versão grega chama-lhe “thrénoi”, que expressa o mesmo sentido.
Como se disse, os 4 primeiros poemas são alfabéticos, iniciando-se cada estrofe com a respetiva letra do alfabeto hebraico. Trata-se de um processo literário complexo, em que, além da arte e mestria, parece pretender realçar o simbolismo do texto e o ritmo do seu próprio canto.
O au­tor lamenta-se da situação miserável em que o povo e as instituições se encontram; e realça a humilhação extrema a que chegaram Israel e Jerusalém – em con­se­quên­cia do mau proceder do povo e da sua infidelidade à Aliança. A situação é efetivamente interpretada à luz da fé como um castigo e como um tempo de purificação, dado haver uma es­­perança última de que Deus voltará o seu olhar cle­mente para o povo (fim da 5.ª Lamentação/oração). É, assim, que judeus e cristãos fazem uso destes poemas na liturgia em momentos significativos da sua História: os judeus, nas festas de jejum, recordando a destruição de Jerusalém, no ano 70, pelos romanos; os cristãos, na liturgia da Semana Santa, recordando os sofrimentos da Paixão de Cristo.
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No 22.º domingo do Tempo Comum ler-se-á Jr 20,7-9:
“Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir! Tu me dominaste e venceste. Sou objeto de contínua irrisão, e todos escarnecem de mim. Todas as vezes que falo é para proclamar: ‘Violência! Opressão!’. A palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia após dia. A mim mesmo dizia: ‘Não pensarei nele mais! Não falarei mais em seu nome!’. Mas, no meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia.”. 
E, no 12.º domingo do Tempo Comum, leu-se Jr 20,10-13:
“Ouvia invectivas da multidão: ‘Cerco de terror! Denunciai-o! Vamos denunciá-lo!’. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos: ‘Se o enganarmos, triunfaremos dele, e dele nos vingaremos’. Mas o Senhor está comigo como poderoso guerreiro. Por isso, os meus perseguidores serão esmagados e cobertos de confusão, porque não hão de prevalecer. A sua ignomínia nunca se apagará da memória. E Tu, Senhor do universo, examinas o justo, sondas os rins e os corações. Que eu possa contemplar a tua vingança contra eles, pois a ti confiei a minha causa! Cantai ao Senhor, glorificai o Senhor, porque salvou a vida do pobre da mão dos malvados.”.
Como se vê, os dois textos pertencem ao capítulo 20 que constitui a chamada quinta confissão de Jeremias e que evidencia um depoimento original sobre o drama do ministério profético, imposto por Deus e efetivamente levado a cabo com grande relutância por parte do chamado. Este foi seduzido pelo Senhor cuja força e poder de atração foram mais fortes que a inércia ou a resistência do profeta. Porém, o desempenho ministerial do profeta é cercado pelos insultos e escárnios dos ouvintes. E, apesar de se sentir vítima da sedução do Senhor e dos insultos dos contemporâneos, consegue resistir à tentação de abandonar o serviço da palavra por causa do fogo devorador que habita o seu íntimo: é a força irresistível da Palavra de Deus.
Acusado de sedutor das massas e anunciador de desgraças, Jeremias não passa de funcionar como o pregão do realismo. O Rei e o seu Conselho preferiram confiar nos poderes terrestres em detrimento da confiança no Senhor. Por isso e apesar de o profeta se sentir abalado pelo que anuncia, ele persiste na proclamação da certeza de que o povo não resistirá ao poderio da Babilónia. É também o realismo com que o Senhor quer persuadir os discípulos para, apesar de resistentes, O seguirem até à morte e morte de cruz por causa do Reino, ficando merecedores da Ressurreição e dignos de anunciarem a Boa Nova (cf Mt 16,21-27).
O segundo texto mostra-nos o profeta consciente da índole espinhosa da missão. Impelido por Deus, mas cercado pela perseguição dos circunstantes, a sua postura acaba por roçar a desesperação, em paralelo com o que se passa no cap. 3 do livro de Job. De facto, ter de anunciar que o povo irá para o exílio por causa das suas infidelidades suscita ódios, conspiração e perseguição. No entanto, o profeta recobra ânimo e redobra a sua confiança no Senhor, entregando-lhe a causa do mesmo Senhor e acabando por convidar os companheiros a entoar os louvores de Deus:
Cantai ao Senhor, glorificai o Senhor, porque salvou a vida do pobre da mão dos malvados.”.
O texto de Jeremias (Jeremias quer dizer: Deus exalta) constitui um antídoto contra o medo que a cultura de hoje, como no tempo do profeta, instaurou na sociedade. Hoje é a guerra em pedaços, terrorismo, atentados, crime organizado, violência domestica e social. Porém, nada ocorre sem que o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e Pai comum o saiba. É a sua providência em torno das coisas pequenas como os passarinhos. Ora, nós, que valemos mais que os passarinhos, não podemos temer os que matam o corpo, mas não podem matar a alma e a sua liberdade. Pelo que, acima de tudo, tem de estar o declarar-se por Cristo diante dos homens (cf Mt 10, 26-33).
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O livro de Jeremias lê-se com gosto, pois é ambientado numa época importante para o povo de Israel e tem imagens surpreendentes, apresentando-nos um Deus livre que busca justamente a transformação da realidade, permanecendo sempre fiel à aliança. E é entusiasmante a biografia de Jeremias: o profeta que sofre por mor da sua fidelidade. Porém, há dois elementos, aparentemente contraditórios, típicos do livro. Por um lado o livro apresenta – e poderíamos dizer que é a missão de Jeremias – a promessa, cheia de esperança, de uma aliança nova, escrita no coração; por outro, são típicas as lamentações do profeta, a ponto de em espanhol se usar o termo “jeremiada” para descrever uma situação onde existe lamentações contínuas.
O contexto religioso em que viveu o profeta é peculiar. O povo pensava que a presença de Deus garantiria a proteção contra todas as catástrofes. Com efeito, muitos acreditavam que, enquanto Samaria foi destruída, Deus livrava milagrosamente Jerusalém da guerra (2Rs 19,35; Is 36,37), pois ali estava o seu Templo. Por isso, no tempo de Jeremias, o povo tinha a convicção que a presença de YHWH o protegeria dos seus inimigos. Jeremias anuncia que tal confiança, sem nenhuma atitude pessoal, acarretará a destruição de Jerusalém.
Face à ameaça de Babilónia, os governantes da Judeia buscam alianças humanas. Jeremias, ao invés, pede a confiança em Deus e anuncia a destruição e o exílio – vistos como castigo pelos pecados do povo, dos governantes. Contudo, dá-se conta de que esse fim trágico para o povo não é a última palavra. Diante do exílio e da destruição do Templo ele anuncia um novo início, uma nova criação, uma nova aliança. De profeta da desgraça presente por causa dos homens passa a profeta da esperança futura por causa da bondade de Deus!

2017.06.25 – Louro de Carvalho

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