Está na mesa da
discussão a hipótese e uma greve dos juízes portugueses para o mês de agosto,
com o risco de prejuízo para o desenvolvimento do processo eleitoral para as
autarquias.
Greve de magistrados
Em 3 de junho, os magistrados judiciais, reunidos em Coimbra, decidiram mandatar a direção da sua associação para negociar com o Governo o novo Estatuto, cujos termos contestam. Se as negociações fracassarem, poderão efetivar a paralisação, “sob o modelo que for entendido como mais conveniente e em períodos que possam abranger o próximo processo eleitoral autárquico”.
Greve de magistrados
Em 3 de junho, os magistrados judiciais, reunidos em Coimbra, decidiram mandatar a direção da sua associação para negociar com o Governo o novo Estatuto, cujos termos contestam. Se as negociações fracassarem, poderão efetivar a paralisação, “sob o modelo que for entendido como mais conveniente e em períodos que possam abranger o próximo processo eleitoral autárquico”.
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Assim, o que pode dizer-se em termos factuais é que a ASJP (Associação Sindical dos
Juízes Portugueses) decidiu negociar com o Governo antes de avançar para a greve em
agosto que, a ocorrer, porá em causa a realização na data prevista das eleições
autárquicas. A sua Presidente, Manuela Paupério, disse que qualquer proposta
que coloque em causa “a dignidade e a independência” dos juízes será recusada.
De facto, a ASJP já dispõe da proposta completa de
revisão dos Estatutos, após ter recebido do Ministério da Justiça as alterações
em matéria remuneratória. Manuela Paupério disse aos jornalistas que a Ministra
da Justiça se reunira com os dirigentes da ASJP, tendo a associação recebido a
parte do documento que faltava, ou seja, a matéria remuneratória.
Quanto às propostas remuneratórias, a presidente da
ASJP disse “não poder adiantar nada”, até porque isso não tinha sido discutido
em reunião da direção. Mas, apesar de o documento estar agora completo, entende
que “não houve alteração substancial” da situação e que as eventuais medidas de
protesto continuam em “cima da mesa”.
Contactado pela Lusa,
António Ventinhas, Presidente do SMMP (Sindicato dos Magistrados
do Ministério Público), garantiu que o sindicato ainda não recebeu a parte em falta nos
Estatutos (parte remuneratória), embora a Ministra já tenha informado
telefonicamente das alterações previstas nesse domínio. E o Presidente do SMMP
adiantou que os aumentos salariais nem sequer são a parte mais importante do
projeto de revisão dos Estatutos, estando os magistrados do MP preocupados com
soluções contidas no diploma em matérias de mobilidade de magistrados,
processos disciplinares, hierarquia do MP e carreira – “questões estruturais”. Segundo
este dirigente sindical, a proposta aponta soluções de mobilidade que “nenhum trabalhador
público-privado tem”, pelo que esta e outras questões estruturantes preocupam
mais os magistrados do que saber “se vão ganhar mais 100 ou 200 euros”.
Determinada na prossecução das negociações com o Governo, aliás de
acordo com a disponibilidade garantida pelo Primeiro-Ministro, a Presidente da
ASJP diz que a proposta de estatuto que foi entregue pelo Governo” é um mau estatuto,
que põe em causa a independência dos juízes”. Assim, a associação espera chegar
a um entendimento, mas, se findo o processo negocial, os juízes continuarem a
considerar que o que lhes é proposto não dignifica a classe, a direção está
mandatada para avançar com formas de luta que incluem a paralisação.
Manuela Paupério entregou formalmente ao Governo a sua contraproposta
no passado dia 16, esperando que o processo negocial se possa concluir no prazo
de 15 dias.
Veio a
público a informação que o máximo que o Ministério da Justiça, liderado por
Francisca Van Dunem, pode fazer é dar um aumento de 155 euros, sendo que se
trata da reposição dum corte de 2010 no subsídio de transporte e alojamento.
Esta informação terá deixado os magistrados ainda mais convictos da necessidade
de avançaram para a paralisação laboral.
Os juízes apelam ao Conselho Superior da Magistratura e ao
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais a que tomem posição
pública na defesa da independência dos juízes. E o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça e também do Conselho Superior da Magistratura, António
Henriques Gaspar, chegou a apelar ao Presidente da República para interceder.
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Legitimidade de greves e até de algumas reivindicações
Uma greve de professores em dia de exame nacional ou
de provas de aferição fica esvaziada de conteúdo, por força da obrigatoriedade
de assegurar estes serviços mínimos em educação (vd art.º 397.º da LGTFP), e torna-se impopular, embora pouco prejudicial ao
Estado, mas permanece na sua legitimidade. Uma greve de médicos, desde que
garanta os serviços mínimos, mantém a sua legitimidade. O próprio Ministro da
Saúde, Adalberto Campos Fernandes, assumiu em público que a esmagadora maioria
das reivindicações sindicais dos médicos, aquando da última greve, eram legítimas,
lembrando que nos últimos anos a Saúde foi um setor “muito fustigado”. Pelo
que, embora não pudesse negociar sob pressão, como declarara ele e o
Primeiro-Ministro, quis estabelecer com os sindicatos um calendário negocial
alargado até final da legislatura.
Contudo, o governante indicara que “não é possível fazer tudo por todos ao
mesmo tempo”. Não obstante, afirmava que “há espaço em termos de faseamento no
tempo” para acolher as propostas dos dois sindicatos que convocaram a
paralisação, estimando que o calendário das negociações possa estar encerrado
em setembro.
Os sindicatos queriam, basicamente, a limitação do trabalho suplementar a
150 horas anuais, em vez das atuais 200, a imposição do limite de 12 horas de
trabalho em serviço de urgência e a diminuição do número de utentes por médico
de família. E pretendiam ainda a reposição do pagamento de 100% das horas
extra, que recebem desde 2012 com um corte de 50%, bem como a reversão do
pagamento dos 50% com retroatividade a janeiro deste ano.
A própria antiga Ministra das Finanças e ex-líder do PSD, Manuela Ferreira
Leite, manifestou-se solidária com os médicos, em comentário na TVI 24, lembrando
que o setor da saúde fora o mais afetado pelas políticas seguidas durante o
período da troika, explicitando:
“Se há um setor que foi muito abalado pela troika, foi
o da saúde. Foram tomadas medidas de forma mais ou menos cega e de tal forma
violentas que levaram a um abandono maciço de médicos e enfermeiros do sector
público. […]. O setor da saúde foi aquele que mais sofreu com a política que
foi seguida com a troika tendo sido afetado, não só pelos cortes nos salários
mas sobretudo pelo desinvestimento em equipamentos e infraestruturas.”.
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Os juízes enquanto
titulares de órgãos de soberania
Todavia, o caso dos juízes merece
especial atenção. Choca a opinião pública e o cidadão comum que os magistrados
judiciais venham, num dia, abonar a sua autoridade e o seu prestígio por serem
titulares de órgãos de soberania, cujas decisões prevalecem sobre as de
quaisquer outras autoridades (vd n.º 2 do art.º 205.º da CRP) e, no dia seguinte, se armem em
funcionários do Estado e ainda por cima em situações alegadamente piores que as
de outros funcionários.
Ora, sabe-se que os magistrados
têm regalias de que mais nenhum funcionário do Estado goza, pelo que é natural
que o seu Estatuto preveja também algumas obrigações específicas.
Algo
semelhante se poderá dizer dos magistrados do Ministério Público, os quais,
embora não gozem da independência estatutária dos juízes, têm um estatuto que
lhes garante autonomia em relação ao Estado que lhes incumbe representar. No
entanto, os juízes é que são titulares de órgão de soberania.
A este
respeito, o constitucionalista Jorge Miranda é taxativo, ao sustentar que as
exigências dos juízes perdem legitimidade quando o único argumento é a greve, a
que não têm direito porque “são o Estado a agir”. Por isso, em artigo de
opinião, que o Público deu à estampa na
sua edição de 9 de junho, assegurou que “os juízes não são trabalhadores
subordinados”. Como o Presidente da República, os deputados e os ministros,
“são o Estado a agir. Investidos na titularidade de órgãos de soberania,
encontram-se face ao Estado numa relação de identificação. Não são empregados
do Estado. “Eles são – como o Presidente
da República, os deputados e os ministros – o Estado a agir”.
E, por isso, “não têm direito à greve”.
Apreciando a
ameaça de greve dos juízes para o mês de agosto, no quadro das reivindicações à
volta do estatuto dos juízes e de atualizações salariais, tendo os juízes mesmo
estabelecido um prazo limite para obter uma resposta do Governo, Jorge Miranda
reforça que tais exigências perdem legitimidade quando a ameaça de paralisação
é o argumento de negociação.
Para o
conceituado constitucionalista, “ainda que os juízes pudessem ser configurados
também como trabalhadores do Estado, nem daí fluiria, como corolário forçoso,
que pudessem pretender ter o direito à greve”. Com efeito, “nem se
compreenderia que os agentes das forças de segurança, que executam as decisões
dos juízes, não gozassem de direito à greve e dele gozassem os juízes”. E
remata o seu douto artigo com um alerta:
“Uma greve dos juízes traria o
risco de deslegitimar a tarefa essencial do Estado de administração da justiça
e, desde logo, de deslegitimar os juízes perante a comunidade”.
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A essencialidade do direito à greve e suas limitações
O direito de greve é um direito fundamental, consagrado no art.º
57.º da Constituição (CRP). E a lei não pode limitar o âmbito
dos interesses a defender pela greve, mas deve definir as condições de
prestação, durante ela, quer dos serviços necessários à segurança e manutenção
de equipamentos e instalações, quer dos serviços mínimos indispensáveis para
ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.
Ora, tratando-se dum direito fundamental, só pode ser restringido
ou limitado nos termos do artigo 18.º da CRP, isto é, na medida do necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
e tendo em conta o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e
proporcionalidade. É que, apesar de ser um direito fundamental, o direito de greve não
é um direito absoluto, pode ser regulamentado por lei e esta regulamentação
pode constituir objetivamente uma restrição ao seu exercício, mas apenas quando
se destine a promover a segurança e manutenção de equipamentos e instalações e
a ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis e se limite ao
necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente
protegidos.
O Código do Trabalho regulamenta o direito de greve, nos artigos
530.º a 543.º (bem como
a LGTFP, artigos 394.º a 405.ª), assumindo particular importância para a questão os artigos 537.º
(Obrigação de prestação de
serviços durante a greve)
e 538.º (Definição de serviços a
assegurar durante a greve).
Neste quadro, os conceitos de “necessidades sociais impreteríveis”
e “serviços mínimos” ganham grande relevo, pois da sua definição e dos termos
em que for feita depende a maior ou menor restrição do direito de greve, nos termos
admitidos pela CRP e pela lei. Assim, se o conceito de serviços mínimos for
muito amplo e/ou o de necessidades sociais impreteríveis for demasiado
abrangente, encontra-se a forma de comprimir o direito de greve, anulando grande
parte do efeito com o exercício do direito.
Assim, nos últimos anos, a jurisprudência tem-se inclinado no
sentido de interpretar muito latamente quer o conceito de necessidades sociais
impreteríveis que devem ser satisfeitas durante o período de greve, quer o
conceito dos serviços mínimos a prestar durante a greve, de tal modo que, em
muitas situações, é praticamente atingido o limite em que o próprio conteúdo
essencial do direito de greve é esvaziado. É o caso paradigmático do sentido maioritário
das decisões do TA (Tribunal Arbitral) relativamente à definição dos serviços mínimos a prestar em
tempo de greve pelos trabalhadores das empresas públicas de transporte coletivo
de passageiros, em que os serviços são fixados em percentagem do serviço
normalmente prestado pelas empresas, sem qualquer justificação das necessidades
sociais impreteríveis a que se pretende satisfazer com esses serviços.
Ora, o direito à greve enquanto direito fundamental só pode ser
restringido nos termos admitidos na Constituição e tal restrição nunca pode
diminuir o alcance e extensão do conteúdo essencial do direito. Assim, as necessidades sociais
impreteríveis a que se refere o n.º 3 do artigo 57.º da CRP são apenas as
necessidades cuja não satisfação se traduza na violação dos direitos e
interesses constitucionalmente protegidos e não meros inconvenientes ou
transtornos resultantes da privação ocasional de determinado bem ou serviço.
Por isso, para definição destas necessidades, há que ponderar as circunstâncias
específicas de cada greve em concreto a fim de determinar se estamos ou não
perante situações que requeiram a satisfação de necessidades de alcance social
tão premente que não possam ser satisfeitas de outro modo e não suportem
qualquer adiamento. Na mesma linha, a definição de
serviços mínimos destina-se a evitar prejuízos extremos e injustificados, não
devendo traduzir-se na anulação do direito de greve, que não pode, pela via da
obrigação dos serviços mínimos, perder eficácia própria e deixar de produzir os
seus efeitos normais, tornando-se numa aparência de greve. Porém, a jurisprudência do RTL (Tribunal da Relação de Lisboa), embora dividida, tem
decidido quase sempre a favor das decisões do TA que fixa serviços mínimos
muito amplos, apesar de retomar a pureza dos princípios, com base em meras
percentagens do serviço normal, e sem ponderar as necessidades sociais
impreteríveis a satisfazer durante o período de greve.
Assim, a de 24 de fevereiro
de 2010,
referia:
“(…) A restrição do direito de greve
tem de destinar-se a ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis
e respeitar os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O acórdão arbitral que fixa serviços mínimos a assegurar durante o
período de greve tem que definir quais as necessidades sociais impreteríveis
que, com respeito por aqueles princípios, justificam a restrição do direito à
greve.”.
Em 7 de dezembro de 2010, estabelecia:
“No
que respeita aos trabalhadores a ela aderentes, a greve suspende o contrato de
trabalho, designadamente o direito à retribuição e os deveres de subordinação
e assiduidade. Todavia, a lei investe os trabalhadores em greve em
certos deveres que podem implicar a necessidade de prestação de serviços
durante a greve. (…) Os serviços mínimos que a
decisão do tribunal arbitral fixou para prestação nos dias de greve não
traduzem nenhuma violação dos invocados princípios da necessidade, adequação e
proporcionalidade, sendo que a única alternativa seria a de não fixar quaisquer serviços
mínimos, o que não se mostra compatível com as regras que regulam o direito à
greve”.
Em 16 de março de 2011, julgava assim:
“(…) A alternativa de não fixar
quaisquer serviços mínimos não é compatível com as normas que regulam o direito
à greve, pois está em causa uma empresa do setor dos transportes que a própria
lei considera como empresa que se destina à satisfação de necessidades sociais
impreteríveis. Se é certo que a inegável
imprescindibilidade da empresa em causa, que assegura um direito fundamental de
deslocação, não pode ser fator de limitação do direito à greve dos seus
trabalhadores, a Constituição impõe que, nessas circunstâncias, sejam
assegurados os serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades sociais
impreteríveis que são objeto da atividade da empresa.”
Em 4 de maio de 2011, considerava:
“(…) A fixação de serviços mínimos não se
destina a anular o direito de greve ou a reduzir substancialmente a sua
eficácia, mas a evitar prejuízos extremos e injustificados, comprimindo-o por
via do recurso à figura do conflito de direitos.
A qualificação de um serviço como essencial
não implica que a respetiva paralisação imponha automaticamente a obrigação de
serviços mínimos, tudo dependendo da natureza dos direitos envolvidos e das
caraterísticas do conflito.
Na definição dos serviços mínimos devem ser respeitados
os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.”
E, em 25 de maio de 2011, esclarecia:
“Embora seja discutível a
aceitação da fixação de percentagens ou proporções da normal prestação de um
serviço público como critério definidor de serviços mínimos, a verdade é que há
que ter alguma base de ponderação para, em conjunto com os demais
circunstancialismos do caso, se poder aquilatar da referida definição”.
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Em jeito de conclusão
Muito
haveria a dizer sobre greve, mas fico-me por algumas nótulas.
Será um serviço de exames na
escola mais inadiável que uma cirurgia? Será o exame o essencial da missão da
escola? E não estará mesmo a vida das pessoas acima das necessidades da
educação formal?
Será legítimo um Tribunal Arbitral decretar a efetivação
de serviços porque apenas restaria a alternativa de não fixar quaisquer serviços
mínimos? Não seria
preferível pensar nesses serviços somente se fossem imprescindíveis? Ou prefere-se
esvaziar o conteúdo da ação da greve, a qual – entenda-se – deveria constituir
a arma extrema da reivindicação laboral e não cair na banalização em que incorre
algumas vezes?
E, se atender a umas reivindicações dos médicos e
enfermeiros implicará maior eficiência no serviço aos doentes, é de expectativa
duvidosa que a satisfação das reivindicações dos juízes – algumas bem excessivas
no quadro do país que temos – redundem em maior eficácia, celeridade e equidade
na administração da justiça. Pelo menos, a considerar as declarações que têm
vindo a público, que o debate hoje ouvido na Rádio Renascença constitui uma
pequena amostra!
2017.06.24 –
Louro de Carvalho
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