A asserção
enunciada em epígrafe constitui a recordação de um axioma que o Papa Francisco
faz à Igreja na mensagem que emitiu, em 13 de junho, memória litúrgica de Santo
António de Lisboa (de
“Pádua”, nas diversas versões, exceto na portuguesa) para o I Dia Mundial dos Pobres, no XXXIII domingo do Tempo Comum, que este
ano ocorre a 19 de novembro.
Na verdade, a
Mensagem gravita em torno da recomendação da 1.ª Carta de João “Não amemos com palavras, mas com obras”, com vista ao
amor efetivo ao próximo. Todavia, o Santo Padre quer – e bem – que, “na
base das múltiplas iniciativas concretas que se poderão realizar neste Dia, esteja sempre a oração”. E é aqui, no n.º 8 do texto papal, que vem o lembrete “Não
esqueçamos que o Pai Nosso é a oração dos pobres”, vindo logo
a seguir a justificação:
“O pedido do pão exprime o abandono a
Deus nas necessidades primárias da nossa vida. Tudo o que Jesus nos ensinou com
esta oração exprime e recolhe o grito de quem sofre pela precariedade da
existência e a falta do necessário. Aos discípulos que Lhe pediam para os
ensinar a rezar Jesus respondeu com as palavras dos pobres que se dirigem ao
único Pai em quem todos se reconhecem como irmãos.”.
Mas a oração
ensinada por Jesus é também a oração plural, da fraternidade em que os pobres
se sentem muitos e irmãos. De facto, o pão que pedimos é o nosso pão de cada
dia, o que “implica partilha, comparticipação e responsabilidade comum” e a
aceitação da “exigência de superar qualquer forma de egoísmo, para termos
acesso à alegria do acolhimento recíproco”.
***
A relevância
do mandamento de Jesus “Não amemos com
palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18), transmitido pelo discípulo amado torna-se mais evidente hoje se contrapusermos “as
palavras ocas” que nos saem dos lábios com “as obras concretas que medem
efetivamente o que valemos. O amor é um imperativo de que o cristão não pode
prescindir e que não admite álibis: se queremos amar como Jesus, devemos “assumir
o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres”. E, segundo o
apóstolo João, a forma de amar do Filho de Deus assenta em duas colunas
mestras: a iniciativa do amor é de Deus (cf 1Jo 4,10.19); e o Seu amor é total, dando a
própria vida (cf 1Jo 3,16). Este amor, “apesar de ser dado de maneira
unilateral, isto é, sem pedir nada em troca”, quer ser correspondido pois, como
diz o Papa, “ele abrasa de tal forma o
coração que toda e qualquer pessoa se sente levada a retribuí-lo não obstante
as suas limitações e pecados”. Tal correspondência torna-se possível, se acolhermos
no coração a graça e caridade misericordiosa de Deus, a ponto de ela mover nossa
vontade e afetos para o amor a Deus e ao próximo. Assim, a misericórdia, que
brota “do coração da Trindade”, põe em movimento a nossa vida e gera compaixão
e obras de misericórdia em “prol dos irmãos e irmãs” em necessidade.
***
Atenta à
certeza do salmista “Quando o pobre invoca
o Senhor, Ele atende-o” (Sl 34/33,7), a Igreja compreende a importância
desta invocação e acolhe o testemunho vertido no livro dos Atos dos Apóstolos,
em que Pedro sugere a escolha de sete varões “cheios do Espírito e de
sabedoria” (At 6,3) para o serviço de assistência aos
pobres. É um sinal com que a comunidade se apresentou na ribalta do mundo: “o serviço aos mais pobres” – possível
por ela ter compreendido que a vida dos discípulos se exprime na fraternidade e
na solidariedade, em consonância com o ensino principal do Mestre ao proclamar bem-aventurados e herdeiros do Reino dos céus os pobres (cf Mt 5,3). E a comunidade-modelo exprimia a
solidez solidária na venda de terras e de outros bens com a consequente
distribuição do dinheiro “por todos, de acordo com as necessidades de cada um”
(cf At 2,45), mostrando claramente como estava
viva nos primeiros cristãos a real preocupação com os pobres.
Lucas, o
hagiógrafo “que deu mais espaço à misericórdia” que os outros, pretende – disse
o Papa –, com a sua narrativa, “falar aos fiéis de todas as gerações (e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu
testemunho e incentivá-los à ação concreta a favor dos mais necessitados”. E, na
sua esteira, vem a Carta de Tiago, com expressões fortes e incisivas:
“Ouvi, meus amados irmãos: Não
escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do
Reino que prometeu aos que O amam? Mas vós desonrais o pobre. Não são os ricos
que vos oprimem e vos arrastam aos tribunais? (…) De que aproveita, irmãos, que
alguém diga que tem fé se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano e um
de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e matar a fome’, mas não
lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a
fé: se ela não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,5-6.14-17).
Porém,
Francisco evocou os momentos em que os cristãos não escutaram o apelo de Cristo
e dos apóstolos, vergando-se à mentalidade mundana. Por sua vez, o Espírito
Santo não se esqueceu dos pobres e, chamando os cristãos “a manterem o olhar
fixo no essencial”, suscitou “homens e mulheres” que ofereceram a vida ao
serviço dos pobres”. E, destacando a figura de Francisco de Assis, “seguido por
tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos”, o Papa sublinha
que “não se contentou com abraçar e dar esmola aos leprosos, mas decidiu ir a
Gúbio para estar junto com eles”, experimentando “neste
encontro a viragem da sua conversão”, pelo que veio a confessar, num testemunho
que “mostra a força transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos”:
“Quando estava nos meus pecados,
parecia-me deveras insuportável ver os leprosos. E o próprio Senhor levou-me
para o meio deles e usei de misericórdia para com eles. E, ao afastar-me deles,
aquilo que antes me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do
corpo” (Test 1-3: FF 110).
Todavia, o
Pontífice, que entende que “os pobres não são um problema”, mas “um recurso” de
que é mister “lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho”, no seu
discurso profeticamente provocatório, apela:
“Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de
voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos
improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz”.
Apesar de “válidas
e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as
injustiças que frequentemente são a sua causa” tais experiências têm de abrir para
“um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida”. E
Francisco acentua que é “na caridade que se torna partilha” que “a oração, o
caminho do discipulado e a conversão encontram” a prova da “sua autenticidade
evangélica”, pois, tocando “com as mãos a carne
de Cristo”, teremos a “alegria
e serenidade de espírito”. E, neste contexto, é de assumir por completo o
ensinamento do Bispo de Roma:
“Se
realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no
corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na
Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar
pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis.”
E, a propósito, cita São João Crisóstomo para reforçar a conexão
entre o cuidado pelos pobres e a Eucaristia, convidando-nos a sair das nossas
comodidades e pseudocertezas:
“Queres honrar o corpo de Cristo? Não
permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm
que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O
abandonas ao frio e à nudez.” (Hom. in Matthaeum, 50, 3: PG 58).
Assim, fixar
e abraçar os pobres faz-nos sentir “o valor que a pobreza encerra em si mesma”.
E, à luz deste postulado, Francisco explicitou o sentido da pobreza evangélica.
Com efeito, “para os discípulos de Cristo”, a pobreza é “uma vocação a seguir Jesus pobre” – um caminho com Ele que leva “à
bem-aventurança do Reino dos céus” (cf Mt 5,3; Lc 6,20). Segundo o Pontífice, “pobreza significa um coração
humilde”, que acolhe a condição de “criatura limitada e pecadora” e vence “a
tentação de omnipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal”. É “uma
atitude do coração que impede de conceber como objetivo de vida e condição para
a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo”. E “é a pobreza que cria as
condições para assumir livremente as responsabilidades pessoais e sociais”,
apesar das limitações, “confiando na proximidade de Deus e vivendo apoiados
pela sua graça”. A pobreza é o metro para avaliação do “uso correto dos bens
materiais” e para vivência não egoísta nem possessiva dos laços e dos afetos.
Assim, o Papa
apontou como “testemunha da pobreza genuína” São Francisco, cujo exemplo deve
ser apreciado e seguido. Na verdade, “por ter os olhos fixos em Cristo, soube
reconhecê-Lo e servi-Lo nos pobres”. Ora, para darmos “o nosso contributo
eficaz para a mudança da história, gerando o verdadeiro desenvolvimento”, temos
de “escutar o grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de
marginalização”. Por outro lado, “os pobres que vivem nas nossas cidades e nas
nossas comunidades”, não devem, segundo o Pontífice, perder “o sentido da
pobreza evangélica que trazem impresso na sua vida”.
Apesar da
grande dificuldade que há hoje de identificar claramente a pobreza, ela
“Interpela-nos
todos os dias com os seus inúmeros rostos marcados pelo sofrimento, pela
marginalização, pela opressão, pela violência, pelas torturas e a prisão, pela
guerra, pela privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e pelo
analfabetismo, pela emergência sanitária e pela falta de trabalho, pelo tráfico
de pessoas e pela escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada”.
Mais: como
diz e exclama o Papa:
“A
pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis
interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é
impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da
pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da
indiferença generalizada!”.
Entretanto,
acentua o Pontífice, “sobressai cada vez
mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados,
frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da
dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes setores da
sociedade no mundo inteiro”. É, porém, um cenário perante o qual “não se
pode permanecer inerte” nem “resignado”. Ao invés, “é preciso responder com uma
nova visão da vida e da sociedade” à pobreza que “inibe o espírito de
iniciativa de tantos jovens, impedindo-os de encontrar um trabalho”; que “anestesia
o sentido de responsabilidade, induzindo a preferir a abdicação e a busca de
favoritismos; e que “envenena os poços da participação e restringe os espaços
do profissionalismo, humilhando assim o mérito de quem trabalha e produz”. Como
dizia o Beato Paulo VI, “todos estes pobres pertencem à Igreja por ‘direito
evangélico’ e obrigam à opção fundamental por eles”.
Recordou o
Santo Padre a razão por que decidiu oferecer à Igreja o Dia Mundial dos Pobres, no termo do Jubileu da
Misericórdia: “que as comunidades cristãs se tornem, em todo o mundo, cada vez
mais e melhor sinal concreto da caridade de Cristo pelos últimos e os mais
carenciados”. Por isso, aos outros Dias
Mundiais instituídos pelos predecessores e já enraizados na vida da
comunidade acrescentou este, que completa o conjunto de tais Dias com o elemento “requintadamente
evangélico” da “predileção de Jesus pelos pobres”. Assim, a “Igreja inteira e
os homens e mulheres de boa vontade” são convidados “a fixar o olhar, neste
dia, em todos aqueles que estendem as suas mãos invocando ajuda e pedindo a
nossa solidariedade”, porque “são nossos irmãos e irmãs, criados e amados pelo
único Pai celeste”.
Os objetivos deste Dia são: estimular os
crentes a que “reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a
cultura do encontro”; e apelar a “todos, independentemente da sua pertença
religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de
solidariedade, como sinal concreto de fraternidade”.
E a fundamentação escora-se no seguinte:
“Deus criou o céu e a terra para
todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e
recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão”.
Em termos
práticos, Francisco sugere:
- Que, na
semana anterior ao Dia Mundial
dos Pobres, as comunidades cristãs se empenhem na
criação de momentos de encontro e amizade, de solidariedade e ajuda concreta;
- Que as
comunidades cristãs convidem os pobres e os voluntários a participarem, juntos,
na Eucaristia deste domingo, de modo que, no domingo seguinte, a da celebração
da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo resulte ainda mais
autêntica, pois “a realeza de Cristo aparece em todo o seu significado” no Gólgota, “quando o Inocente, pregado na
cruz, pobre, nu e privado de tudo, encarna e revela a plenitude do amor de Deus”,
exprimindo “o seu completo abandono ao Pai” a “sua pobreza total” e tornando
evidente a força deste Amor, que O ressuscita para uma vida nova no dia de
Páscoa”;
- Que, neste
domingo, nos aproximemos dos pobres, que vivem no nosso bairro (vila ou aldeia) a buscar proteção e ajuda, como
momento propício para encontrarmos “o Deus que buscamos”.
- Em suma,
acolhamos, como hóspedes privilegiados à nossa mesa, os pobres, que poderão ser
mestres que nos ajudem a viver a fé de maneira mais coerente. De facto, “com a
sua confiança e disponibilidade para aceitar ajuda”, mostram-nos “como é
decisivo vivermos do essencial e abandonarmo-nos à providência do Pai”.
***
O pedido
final de Francisco dirige-se àqueles que, “por vocação, têm a missão de apoiar
os pobres – bispos, sacerdotes, diáconos – e “às pessoas consagradas, às
associações, aos movimentos e ao mundo do voluntariado”, para que se
comprometam com a instauração duma tradição em Dia Mundial dos Pobres “que seja contribuição
concreta para a evangelização no mundo contemporâneo”. Concomitantemente,
deseja que o “novo Dia Mundial”
constitua “um forte apelo” à consciência crente no sentido de ficarmos “cada
vez mais convictos” de que partilhar com os pobres leva a “compreender o
Evangelho na sua verdade mais profunda”.
E termino
retirando da Mensagem o que chamo de Bênção
das mãos dos que se entregam ao serviço dos pobres – tal “como são belos,
nas montanhas, os pés do mensageiro da paz (Is 52,7).
Bênção das mãos
“Benditas
as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam
esperança!
Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e
nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade!
Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem ‘se’ nem
‘mas’, nem ‘talvez’: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de
Deus!”
2017.06.19 – Louro de Carvalho
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