segunda-feira, 19 de junho de 2017

O Pai Nosso é a oração dos pobres / Bênção das mãos

A asserção enunciada em epígrafe constitui a recordação de um axioma que o Papa Francisco faz à Igreja na mensagem que emitiu, em 13 de junho, memória litúrgica de Santo António de Lisboa (de “Pádua”, nas diversas versões, exceto na portuguesa) para o I Dia Mundial dos Pobres, no XXXIII domingo do Tempo Comum, que este ano ocorre a 19 de novembro.
Na verdade, a Mensagem gravita em torno da recomendação da 1.ª Carta de João “Não amemos com palavras, mas com obras”, com vista ao amor efetivo ao próximo. Todavia, o Santo Padre quer – e bem – que, “na base das múltiplas iniciativas concretas que se poderão realizar neste Dia, esteja sempre a oração”. E é aqui, no n.º 8 do texto papal, que vem o lembrete “Não esqueçamos que o Pai Nosso é a oração dos pobres”, vindo logo a seguir a justificação:
“O pedido do pão exprime o abandono a Deus nas necessidades primárias da nossa vida. Tudo o que Jesus nos ensinou com esta oração exprime e recolhe o grito de quem sofre pela precariedade da existência e a falta do necessário. Aos discípulos que Lhe pediam para os ensinar a rezar Jesus respondeu com as palavras dos pobres que se dirigem ao único Pai em quem todos se reconhecem como irmãos.”.
Mas a oração ensinada por Jesus é também a oração plural, da fraternidade em que os pobres se sentem muitos e irmãos. De facto, o pão que pedimos é o nosso pão de cada dia, o que “implica partilha, comparticipação e responsabilidade comum” e a aceitação da “exigência de superar qualquer forma de egoísmo, para termos acesso à alegria do acolhimento recíproco”.
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A relevância do mandamento de Jesus “Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18), transmitido pelo discípulo amado torna-se mais evidente hoje se contrapusermos “as palavras ocas” que nos saem dos lábios com “as obras concretas que medem efetivamente o que valemos. O amor é um imperativo de que o cristão não pode prescindir e que não admite álibis: se queremos amar como Jesus, devemos “assumir o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres”. E, segundo o apóstolo João, a forma de amar do Filho de Deus assenta em duas colunas mestras: a iniciativa do amor é de Deus (cf 1Jo 4,10.19); e o Seu amor é total, dando a própria vida (cf 1Jo 3,16). Este amor, “apesar de ser dado de maneira unilateral, isto é, sem pedir nada em troca”, quer ser correspondido pois, como diz o Papa, “ele abrasa de tal forma o coração que toda e qualquer pessoa se sente levada a retribuí-lo não obstante as suas limitações e pecados”. Tal correspondência torna-se possível, se acolhermos no coração a graça e caridade misericordiosa de Deus, a ponto de ela mover nossa vontade e afetos para o amor a Deus e ao próximo. Assim, a misericórdia, que brota “do coração da Trindade”, põe em movimento a nossa vida e gera compaixão e obras de misericórdia em “prol dos irmãos e irmãs” em necessidade.
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Atenta à certeza do salmista “Quando o pobre invoca o Senhor, Ele atende-o” (Sl 34/33,7), a Igreja compreende a importância desta invocação e acolhe o testemunho vertido no livro dos Atos dos Apóstolos, em que Pedro sugere a escolha de sete varões “cheios do Espírito e de sabedoria” (At 6,3) para o serviço de assistência aos pobres. É um sinal com que a comunidade se apresentou na ribalta do mundo: “o serviço aos mais pobres” – possível por ela ter compreendido que a vida dos discípulos se exprime na fraternidade e na solidariedade, em consonância com o ensino principal do Mestre ao proclamar bem-aventurados e herdeiros do Reino dos céus os pobres  (cf Mt 5,3). E a comunidade-modelo exprimia a solidez solidária na venda de terras e de outros bens com a consequente distribuição do dinheiro “por todos, de acordo com as necessidades de cada um” (cf At 2,45), mostrando claramente como estava viva nos primeiros cristãos a real preocupação com os pobres.  
Lucas, o hagiógrafo “que deu mais espaço à misericórdia” que os outros, pretende – disse o Papa –, com a sua narrativa, “falar aos fiéis de todas as gerações (e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu testemunho e incentivá-los à ação concreta a favor dos mais necessitados”. E, na sua esteira, vem a Carta de Tiago, com expressões fortes e incisivas:
“Ouvi, meus amados irmãos: Não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que O amam? Mas vós desonrais o pobre. Não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam aos tribunais? (…) De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,5-6.14-17).
Porém, Francisco evocou os momentos em que os cristãos não escutaram o apelo de Cristo e dos apóstolos, vergando-se à mentalidade mundana. Por sua vez, o Espírito Santo não se esqueceu dos pobres e, chamando os cristãos “a manterem o olhar fixo no essencial”, suscitou “homens e mulheres” que ofereceram a vida ao serviço dos pobres”. E, destacando a figura de Francisco de Assis, “seguido por tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos”, o Papa sublinha que “não se contentou com abraçar e dar esmola aos leprosos, mas decidiu ir a Gúbio para estar junto com eles”, experimentando “neste encontro a viragem da sua conversão”, pelo que veio a confessar, num testemunho que “mostra a força transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos”:
“Quando estava nos meus pecados, parecia-me deveras insuportável ver os leprosos. E o próprio Senhor levou-me para o meio deles e usei de misericórdia para com eles. E, ao afastar-me deles, aquilo que antes me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo” (Test 1-3: FF 110).
Todavia, o Pontífice, que entende que “os pobres não são um problema”, mas “um recurso” de que é mister “lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho”, no seu discurso profeticamente provocatório, apela:
“Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz”.
Apesar de “válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa” tais experiências têm de abrir para “um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida”. E Francisco acentua que é “na caridade que se torna partilha” que “a oração, o caminho do discipulado e a conversão encontram” a prova da “sua autenticidade evangélica”, pois, tocando “com as mãos a carne de Cristo”, teremos a “alegria e serenidade de espírito”. E, neste contexto, é de assumir por completo o ensinamento do Bispo de Roma:
Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis.
E, a propósito, cita São João Crisóstomo para reforçar a conexão entre o cuidado pelos pobres e a Eucaristia, convidando-nos a sair das nossas comodidades e pseudocertezas:
“Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez.” (Hom. in Matthaeum, 50, 3: PG 58).
Assim, fixar e abraçar os pobres faz-nos sentir “o valor que a pobreza encerra em si mesma”. E, à luz deste postulado, Francisco explicitou o sentido da pobreza evangélica. Com efeito, “para os discípulos de Cristo”, a pobreza é “uma vocação a seguir Jesus pobre” – um caminho com Ele que leva “à bem-aventurança do Reino dos céus” (cf Mt 5,3; Lc 6,20). Segundo o Pontífice, “pobreza significa um coração humilde”, que acolhe a condição de “criatura limitada e pecadora” e vence “a tentação de omnipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal”. É “uma atitude do coração que impede de conceber como objetivo de vida e condição para a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo”. E “é a pobreza que cria as condições para assumir livremente as responsabilidades pessoais e sociais”, apesar das limitações, “confiando na proximidade de Deus e vivendo apoiados pela sua graça”. A pobreza é o metro para avaliação do “uso correto dos bens materiais” e para vivência não egoísta nem possessiva dos laços e dos afetos.
Assim, o Papa apontou como “testemunha da pobreza genuína” São Francisco, cujo exemplo deve ser apreciado e seguido. Na verdade, “por ter os olhos fixos em Cristo, soube reconhecê-Lo e servi-Lo nos pobres”. Ora, para darmos “o nosso contributo eficaz para a mudança da história, gerando o verdadeiro desenvolvimento”, temos de “escutar o grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de marginalização”. Por outro lado, “os pobres que vivem nas nossas cidades e nas nossas comunidades”, não devem, segundo o Pontífice, perder “o sentido da pobreza evangélica que trazem impresso na sua vida”.
Apesar da grande dificuldade que há hoje de identificar claramente a pobreza, ela
Interpela-nos todos os dias com os seus inúmeros rostos marcados pelo sofrimento, pela marginalização, pela opressão, pela violência, pelas torturas e a prisão, pela guerra, pela privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e pelo analfabetismo, pela emergência sanitária e pela falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e pela escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada”.
Mais: como diz e exclama o Papa:
A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!”.
Entretanto, acentua o Pontífice, “sobressai cada vez mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes setores da sociedade no mundo inteiro”. É, porém, um cenário perante o qual “não se pode permanecer inerte” nem “resignado”. Ao invés, “é preciso responder com uma nova visão da vida e da sociedade” à pobreza que “inibe o espírito de iniciativa de tantos jovens, impedindo-os de encontrar um trabalho”; que “anestesia o sentido de responsabilidade, induzindo a preferir a abdicação e a busca de favoritismos; e que “envenena os poços da participação e restringe os espaços do profissionalismo, humilhando assim o mérito de quem trabalha e produz”. Como dizia o Beato Paulo VI, “todos estes pobres pertencem à Igreja por ‘direito evangélico’ e obrigam à opção fundamental por eles”.
Recordou o Santo Padre a razão por que decidiu oferecer à Igreja o Dia Mundial dos Pobres, no termo do Jubileu da Misericórdia: “que as comunidades cristãs se tornem, em todo o mundo, cada vez mais e melhor sinal concreto da caridade de Cristo pelos últimos e os mais carenciados”. Por isso, aos outros Dias Mundiais instituídos pelos predecessores e já enraizados na vida da comunidade acrescentou este, que completa o conjunto de tais Dias com o elemento “requintadamente evangélico” da “predileção de Jesus pelos pobres”. Assim, a “Igreja inteira e os homens e mulheres de boa vontade” são convidados “a fixar o olhar, neste dia, em todos aqueles que estendem as suas mãos invocando ajuda e pedindo a nossa solidariedade”, porque “são nossos irmãos e irmãs, criados e amados pelo único Pai celeste”.
Os objetivos deste Dia são: estimular os crentes a que “reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro”; e apelar a “todos, independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade”.
E a fundamentação escora-se no seguinte:
Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão”.
Em termos práticos, Francisco sugere:
- Que, na semana anterior ao Dia Mundial dos Pobres, as comunidades cristãs se empenhem na criação de momentos de encontro e amizade, de solidariedade e ajuda concreta;
- Que as comunidades cristãs convidem os pobres e os voluntários a participarem, juntos, na Eucaristia deste domingo, de modo que, no domingo seguinte, a da celebração da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo resulte ainda mais autêntica, pois “a realeza de Cristo aparece em todo o seu significado” no Gólgota, “quando o Inocente, pregado na cruz, pobre, nu e privado de tudo, encarna e revela a plenitude do amor de Deus”, exprimindo “o seu completo abandono ao Pai” a “sua pobreza total” e tornando evidente a força deste Amor, que O ressuscita para uma vida nova no dia de Páscoa”;
- Que, neste domingo, nos aproximemos dos pobres, que vivem no nosso bairro (vila ou aldeia) a buscar proteção e ajuda, como momento propício para encontrarmos “o Deus que buscamos”.
- Em suma, acolhamos, como hóspedes privilegiados à nossa mesa, os pobres, que poderão ser mestres que nos ajudem a viver a fé de maneira mais coerente. De facto, “com a sua confiança e disponibilidade para aceitar ajuda”, mostram-nos “como é decisivo vivermos do essencial e abandonarmo-nos à providência do Pai”.
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O pedido final de Francisco dirige-se àqueles que, “por vocação, têm a missão de apoiar os pobres – bispos, sacerdotes, diáconos – e “às pessoas consagradas, às associações, aos movimentos e ao mundo do voluntariado”, para que se comprometam com a instauração duma tradição em Dia Mundial dos Pobres que seja contribuição concreta para a evangelização no mundo contemporâneo”. Concomitantemente, deseja que o “novo Dia Mundial constitua “um forte apelo” à consciência crente no sentido de ficarmos “cada vez mais convictos” de que partilhar com os pobres leva a “compreender o Evangelho na sua verdade mais profunda”.
E termino retirando da Mensagem o que chamo de Bênção das mãos dos que se entregam ao serviço dos pobres – tal “como são belos, nas montanhas, os pés do mensageiro da paz (Is 52,7).
Bênção das mãos
Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança!
Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade!
Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem ‘se’ nem ‘mas’, nem ‘talvez’: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de Deus!

2017.06.19 – Louro de Carvalho

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