quinta-feira, 29 de junho de 2017

Celebrar Pedro e Paulo é professar a fé na apostolicidade da Igreja

Celebra-se, a 29 de junho, a solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo (no calendário romano geral de 1962 era festa de 1.ª classe), considerados como colunas fundacionais da estruturação e expansão da Igreja em virtude da sua relação com Cristo, o fundador, na intrepidez da profissão da fé, no amor afetivo e efetivo e no ardor apostólico – qualidades que os levaram ao martírio em Roma, sede do Império. E as notas basilares do dia são a (Mt 16,16), o amor ao Evangelho e o martírio (Jo 21,15-19). Por isso, a liturgia nos convida a refletir sobre estas duas figuras e a considerar o seu exemplo de fidelidade a Jesus Cristo e de testemunho do projeto libertador de Deus.
É neste dia do ano litúrgico que os recém-apontados arcebispos metropolitas recebem o símbolo primário do seu cargo, o pálio (feito da pele dos cordeiros benzidos no dia de Santa Inês), diretamente do Papa ou de seu legado, caso não possam comparecer em Roma.
Para ortodoxos e católicos orientais, a festa marca o fim do Jejum dos Apóstolos (iniciado na segunda-feira seguinte ao domingo de Todos os Santos, que é o 1.º domingo depois do Pentecostes, ou seja, a 2.ª segunda-feira após o Pentecostes). É considerado dia de comparecimento recomendado e no qual o fiel deve prestar uma “Vigília Completa” (costume oriental que agrega Vésperas, Meridianas e Laudes) ou, ao menos, as Vésperas no dia anterior, e a Divina Liturgia na manhã da festa (não há, porém, “Dias de Obrigação” na Igreja Ortodoxa). Para os que seguem o calendário juliano, a data de 29 de junho cai no dia 12 de julho do calendário gregoriano. Na tradição ortodoxa russa, é geralmente aceite que o Milagre do Alce, de Macário de Unza, ocorreu durante o Jejum dos Apóstolos e a festa dos Santos Pedro e Paulo que se segue a ele. Recentemente, esta festa e a de Santo André, têm sido importantes para o movimento ecuménico como ocasião em que Papa e Patriarca de Constantinopla têm comparecido a eventos especialmente preparados para aproximar as duas Igrejas em direção à comunhão completa. Era especialmente o caso durante o pontificado do Papa São João Paulo II, como ele mesmo declarou na encíclica Ut Unum Sint.
Já desde o distante século III a Igreja une na mesma solenidade Pedro e Paulo, embora o dia não seja o mesmo no Oriente e em Roma. O Martirológio Sírio de finais do século IV (um extrato e um catálogo grego de santos da Ásia Menor) indica as seguintes festas em conexão com o Natal (25 de dezembro): 26 de dezembro, Santo Estêvão; 27 de dezembro, São Tiago e São João; e 28 de dezembro, São Pedro e São Paulo. Mas a festa principal de São Pedro e São Paulo foi mantida em Roma em 29 de junho desde o século III. A lista de festas de mártires no Cronógrafo de Filócalo coloca esta nota na data – “III. Kal. Iul. Petri in Catacumbas et Pauli Ostiense Tusco et Basso Cose". (= o ano 258). O “Martyrologium Hieronyminanum” tem, no Berne MS., a seguinte nota para o dia 29 de junho:
“Romae via Aurelia natale sanctorum Apostolorum Petri et Pauli, Petri in Vaticano, Paulo in via Ostiensi utrumque in catacumbas, passi sub Nerone, Basso et Tusco consulibus" (ed. De Rossi – Duchesne, 84).
A data 258 revela que a partir desse ano se celebrava a memória dos dois Apóstolos em 29 de junho na Via Apia ad Catacumbas (perto de São Sebastião fuori le mura), por ter sido nessa data o traslado dos restos dos Apóstolos para o local descrito acima. Mais tarde, com a construção da Igreja sobre as tumbas no Vaticano e na Via Ostiensi, os restos foram restituídos ao seu anterior repouso: os de Pedro, na Basílica Vaticana; e os de Paulo, na Igreja na Via Ostiensi. No local Ad Catacumbas foi construída, no século IV, uma igreja em honra dos dois Apóstolos. Desde o ano 258 guardou-se a festa principal em 29 de junho, data em que se celebrava, desde tempos antigos, o Serviço Divino solene nas três igrejas acima mencionadas (cf Duchesne, Origenes du culte Chretien, 5.ª ed., Paris, 1909, 271s, 283s, Urbano, Ein Martyrologium der christl. Gemeinde zu Rom an Anfang des 5. Jahrh, Leipzig, 1901, 169s; Kellner, Heortologie, 3.ª ed., Freiburg, 1911, 210s.).
A lenda tentou explicar que os Apóstolos ocupassem temporariamente o sepulcro Ad Catacumbas com a suposição de que, a seguir à morte deles, os Cristãos do Oriente desejaram roubar os seus restos e levá-los para o Leste.
Uma 3.ª festividade dos Apóstolos tem lugar a 1 de agosto: a festa da prisão de São Pedro (São Pedro Ad Vincula), que era originariamente a da dedicação da igreja do Apóstolo, erigida na Colina Esquilina no século IV. Filipo, sacerdote titular desta igreja, foi delegado papal ao Concílio de Éfeso no ano 431. A igreja foi reconstruída por Sixto II (432) a expensas da família imperial Bizantina. A consagração solene pode ter sido a 1 de agosto, ou terá sido este o dia da dedicação da igreja anterior, ou, ainda terá o dia sido escolhido para cristianizar as festas pagãs que se realizavam a 1 de agosto. Nesta igreja, ainda de pé, provavelmente se preservaram desde o século IV as correntes de Pedro que eram muito veneradas, sendo considerados como relíquias apreciadas os pequenos pedaços do seu metal.
A memória de ambos os apóstolos, Pedro e Paulo, foi mais tarde relacionada com os lugares da antiga Roma: a Via Sacra, nas proximidades do Foro, onde se diz que fora atirado ao solo o mago Simão diante da oração de Pedro e o cárcere de Tuliano (ou Cárcere Mamertino), onde se supõe terem sido mantidos os dois Apóstolos até à sua execução. E em ambos lugares foram erigidos santuários em memória dos Apóstolos e o do cárcere Mamertino ainda permanece em quase seu estado original desde aquela longínqua época Romana. Estas comemorações locais estão baseadas em lendas e não há celebrações especiais nas duas igrejas. Entretanto, não é impossível que Pedro e Paulo tenham sido confinados à prisão principal de Roma na fonte do Capitólio, da qual fica como uma relíquia o atual Cárcere Mamertino.
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Esta solenidade é uma das mais antigas da Igreja, sendo anterior à própria comemoração do Natal. Depois da Mãe de Deus e de João Batista, Pedro e Paulo são os santos que têm mais datas comemorativas no ano litúrgico. Além do tradicional 29 de junho (celebração da fé, pastoreio, missão e martírio), há: 25 de janeiro, celebração da Conversão de Paulo; 22 de fevereiro, celebração da Cátedra de Pedro; e 18 de novembro, dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo.
Embora não haja certeza quanto ao ano dos martírios dos dois apóstolos, sabe-se que o martírio de ambos deve ter ocorrido em ocasiões diferentes: Pedro (o 1.º Papa, que pontificou 37 anos), crucificado de cabeça para baixo na Colina Vaticana, em 64; e Paulo (um dos principais escritores do Novo Testamento), decapitado na chamada Três Fontes, em 67.
Pedro e Paulo não fundaram Roma (nem esta Igreja), mas são considerados os “pais de Roma” e considerados os pilares que sustentam a Igreja tanto pela sua fé e pregação, como pelo seu ardor e zelo missionários. Pedro é o apóstolo que Jesus Cristo escolheu e investiu da dignidade de ser o primeiro Papa da Igreja. Jesus disse-lhe, depois de acolher o seu ato de fé (Tu é os Messias, o Filho de Deus vivo): “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (cf Mt 16,13-19). Paulo é o maior missionário de sempre, o advogado dos pagãos, o “Apóstolo dos gentios”.
Celebrar a Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo significa lembrar que a Igreja – de confessores e mártires – é radicalmente cristã, essencialmente una e tradicionalmente apostólica, pelo envio ao mundo e pela sucessão na linha dos apóstolos. Para nós, é uma realidade fácil de aceitar que a Igreja de hoje seja a mesma de há dois mil anos, a fundada por Jesus sobre a fé de Pedro constituída como rocha eficaz de acolhimento, proteção e solidez. Não se trata, pois, de uma plêiade de igrejas, com “i” minúsculo, quais instituições frágeis fundadas pelos homens.
Nós cremos que a Igreja – una, santa, católica e apostólica – embora, feita de seres humanos sujeitos ao pecado, é um mistério instituído pelo próprio Senhor; e cresceu ao longo dos séculos como uma planta, com todas as suas dificuldades e fragilidades, mas tendo sempre a mesma vida divina dentro de si, graças à ação do seu Divino Fundador, que se constituiu como sua cabeça. Por isso, é possível dizer que a Igreja é a continuidade do corpo de Cristo na história.
Para a entender como mistério de comunhão e instituição orgânica – que aparentemente mudou tanto ao longo dos séculos e pode permanecer sendo a mesma Igreja Católica, fundada por Jesus Cristo (cf Mt 16,18-19) – pode-se tomar como exemplo a caminhada das mães. Na sua juventude, as mulheres possuem geralmente uma aparência muito linda, um corpo jovial e uma pele lisa e macia. Com o tempo, porém, a sua beleza física pode ir-se esvaindo, o corpo pode ir decaindo e com a pele a começar a encher-se de manchas, rugas e estrias. Porém, ainda que o seu aspeto exterior mude, a mãe permanece a mesma, conserva a sua identidade e os filhos continuam a amá-la ternamente. Todavia, a Igreja, graças ao Espírito Santo que funciona como sua alma e ao alimento que recebe da Palavra e da Eucaristia, pode renovar-se continuamente. E a missão dos concílios e dos sínodos é exatamente, na atenção e na docilidade ao Espírito, trabalhar a renovação da Igreja e apresentá-la sem ruga, sem mancha e sem estria – presente profeticamente no mundo, modelando-o segundo o coração de Deus.
Quem perceber que, mesmo com a mudança das aparências, as pessoas não deixam de ser o que são, é capaz de compreender o conceito de substância. Com efeito, o termo refere-se a algo que não é captável pelos sentidos, mas apenas pela inteligência. O que a visão e os outros sentidos podem atingir são apenas os acidentes das coisas. A substância, porém, que lhes dá identidade, é invisível. Assim acontece com a Igreja. Hoje, quem vai ao Vaticano entra em vários templos sumptuosos, como a Basílica de São Pedro, e Francisco, mesmo na sua humildade, discrição e despojamento, não ousa dispensar os seguranças de perto de si (pois, sendo o chefe visível da Igreja de Cristo, é muito visado pelos inimigos da fé). Nos primeiros anos da Igreja, porém, quem era Pedro, senão um pescador pobre e analfabeto de Cafarnaum? Não é por acaso que ele foi escolhido como protetor dos pescadores e a Igreja é assumida metaforicamente como a Barca de Pedro.
Face a estas diferenças de aparência na Igreja, os críticos dizem que não se trata da mesma entidade e que a Igreja fundada por Cristo se perverteu no decurso dos séculos. O erro dos detratores está em se deterem apenas nos acidentes e realidades sensíveis da Igreja, ignorando a permanência da sua substância, identidade e essência.
Foi com Friedrich Hegel († 1831) que se começou a perder a noção de continuidade. Para o filósofo alemão, a história seria a “metamorfose ambulante”, com teses, antíteses e sínteses constantes e subsequentes, sem que a realidade se estribe na substância e na identidade.
Condicionadas por esse pensamento, as pessoas começaram a viver sem raiz, sem tradição e sem identidade – a ditadura do efémero – sempre a tentar “reinventar a roda” e a criar novamente o que só precisavam aceitar da “democracia dos mortos” e de seguir em frente, sempre à descoberta de mais e sua incorporação no património recebido.
Sobre a tradição e a democracia dos mortos, Chesterton escreve:
“A tradição pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição recusa-se a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí.” (Chesterton, Gilbert K. Ortodoxia (trad. Almiro Pisetta). São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 80).
Esta filosofia na Igreja tem efeitos piores do que nos assuntos meramente humanos. Quando se tenta subverter, além da verdade natural, a verdade revelada por Deus, muito maior será o caos e a confusão que se instalam nas mentes e nas atitudes. Mas quem entende que a mudança dos acidentes não altera a substância das coisas, faz questão em preservar a Igreja, os seus ensinamentos e tudo o mais que constitui a sua essência; e, quando promove alguma reforma, não é para destruí-la, senão para lhe propiciar mais e melhor vida. É, pois, inconcebível que se queira reformar a Igreja pela quebra da sua continuidade substancial. Se no tempo dos Apóstolos não havia concílios ecuménicos, catecismos ou Congregação para a Doutrina da Fé, nem por isso a fé dos primeiros cristãos deixa de ser a matriz da mesma fé que os católicos professam todos em todos os lugares da terra e em todos os tempos (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus). O símbolo da fé foi construído com base na pregação apostólica. E, se, no decorrer da história, a Igreja vai tomando maior consciência da sua identidade, da sua doutrina e da sua posição no mundo, nem assim nada muda o que ela foi, é e será.
Na 1.ª Carta aos Coríntios, o Apóstolo dos gentios, ao transmitir as doutrinas da Eucaristia e da Ressurreição de Cristo, diz: “Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti” (11,23); “de facto, eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo tinha recebido” (15,3). Apenas alguns anos após a ascensão de Cristo, já se dá a realidade da “tradição” (do latim tradere, que significa “entregar”, “transmitir): os discípulos transmitem a Palavra, os Sacramentos e a prática (orante e ativa), preocupando-se com a fidelidade ao que eles mesmos receberam. De facto, as expressões de Paulo não são em vão: todos nós, como apóstolos de Cristo, devemos ser fiéis à mensagem que recebemos dos nossos pais na fé – os apóstolos, os padres apostólicos e os doutores da Igreja. Afinal, sabemos – e cremos – que a palavra deles remonta ao próprio Senhor e, por isso, deve ser recebida “não como palavra humana, mas como o que ela de facto é: Palavra de Deus” (1Ts 2,13).
Por isso, ao celebrarmos Pedro e Paulo, as duas colunas da Igreja, exultaremos de alegria por pertencermos à “Igreja una, santa, católica e apostólica”; à única Igreja de Cristo, que, assim como seu Esposo, é a mesma ontem, hoje e sempre (cf Hb 13,8).
Por ela, estaremos sempre dispostos a dar a nossa vida como por uma tão amorosa mãe, que é efetivamente, alimentando-nos com a Palavra de Deus e com o próprio Senhor presente na Eucaristia?

2017.06.29 – Louro de Carvalho

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