Celebra-se,
a 29 de junho, a solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo (no calendário
romano geral de 1962 era festa de 1.ª classe), considerados como colunas fundacionais da estruturação
e expansão da Igreja em virtude da sua relação com Cristo, o fundador, na
intrepidez da profissão da fé, no amor afetivo e efetivo e no ardor apostólico
– qualidades que os levaram ao martírio em Roma, sede do Império. E as notas
basilares do dia são a fé (Mt 16,16), o amor ao Evangelho e o martírio
(Jo
21,15-19). Por isso,
a liturgia nos convida a refletir
sobre estas duas figuras e a considerar o seu exemplo de fidelidade a
Jesus Cristo e de testemunho do projeto libertador de Deus.
É neste dia
do ano litúrgico que os recém-apontados arcebispos metropolitas
recebem o símbolo primário do seu cargo, o pálio (feito da
pele dos cordeiros benzidos no dia de Santa Inês), diretamente do Papa ou de seu legado, caso não possam comparecer em
Roma.
Para ortodoxos e católicos
orientais, a festa marca o fim do Jejum
dos Apóstolos (iniciado na segunda-feira seguinte ao domingo de Todos os Santos, que é o 1.º domingo
depois do Pentecostes, ou seja, a 2.ª segunda-feira após o Pentecostes). É considerado dia de comparecimento recomendado e no
qual o fiel deve prestar uma “Vigília
Completa” (costume oriental que agrega Vésperas,
Meridianas e Laudes) ou, ao
menos, as Vésperas no dia anterior, e
a Divina Liturgia na manhã
da festa (não há, porém, “Dias de Obrigação”
na Igreja Ortodoxa). Para os
que seguem o calendário juliano, a data de 29 de junho cai no dia 12 de
julho do calendário gregoriano. Na tradição ortodoxa russa, é
geralmente aceite que o Milagre do
Alce, de Macário de Unza, ocorreu durante o Jejum dos Apóstolos e a festa dos Santos Pedro e Paulo que se segue
a ele. Recentemente, esta festa e a de Santo André, têm sido importantes para
o movimento ecuménico como ocasião em que Papa e Patriarca de
Constantinopla têm comparecido a eventos especialmente preparados para
aproximar as duas Igrejas em direção à comunhão completa. Era
especialmente o caso durante o pontificado do Papa São João Paulo II, como
ele mesmo declarou na encíclica Ut Unum
Sint.
Já desde o
distante século III a Igreja une na mesma solenidade Pedro e Paulo, embora o
dia não seja o mesmo no Oriente e em Roma. O Martirológio Sírio de finais do
século IV (um extrato e
um catálogo grego de santos da Ásia Menor) indica as seguintes festas em conexão com o Natal (25 de dezembro): 26 de dezembro, Santo Estêvão; 27
de dezembro, São Tiago e São João; e 28 de dezembro, São Pedro e São Paulo. Mas
a festa principal de São Pedro e São Paulo foi mantida em Roma em 29 de junho
desde o século III. A lista de festas de mártires no Cronógrafo de Filócalo coloca esta nota na data – “III. Kal. Iul.
Petri in Catacumbas et Pauli Ostiense Tusco et Basso Cose". (= o ano 258). O “Martyrologium Hieronyminanum”
tem, no Berne MS., a seguinte nota para o dia 29 de junho:
“Romae via Aurelia natale sanctorum
Apostolorum Petri et Pauli, Petri in Vaticano, Paulo in via Ostiensi utrumque
in catacumbas, passi sub Nerone, Basso et Tusco consulibus" (ed. De Rossi –
Duchesne, 84).
A data 258
revela que a partir desse ano se celebrava a memória dos dois Apóstolos em 29
de junho na Via Apia ad Catacumbas (perto de São Sebastião fuori le mura), por ter sido nessa data o traslado
dos restos dos Apóstolos para o local descrito acima. Mais tarde, com a
construção da Igreja sobre as tumbas no Vaticano e na Via Ostiensi, os restos
foram restituídos ao seu anterior repouso: os de Pedro, na Basílica Vaticana; e
os de Paulo, na Igreja na Via Ostiensi. No local Ad Catacumbas foi construída, no século IV, uma igreja em honra dos
dois Apóstolos. Desde o ano 258 guardou-se a festa principal em 29 de junho,
data em que se celebrava, desde tempos antigos, o Serviço Divino solene nas
três igrejas acima mencionadas (cf Duchesne, Origenes du culte Chretien, 5.ª ed., Paris,
1909, 271s, 283s, Urbano, Ein
Martyrologium der christl. Gemeinde zu Rom an Anfang des 5. Jahrh, Leipzig,
1901, 169s; Kellner, Heortologie, 3.ª
ed., Freiburg, 1911, 210s.).
A lenda
tentou explicar que os Apóstolos ocupassem temporariamente o sepulcro Ad Catacumbas com a suposição de que, a
seguir à morte deles, os Cristãos do Oriente desejaram roubar os seus restos e
levá-los para o Leste.
Uma 3.ª
festividade dos Apóstolos tem lugar a 1 de agosto: a festa da prisão de São
Pedro (São Pedro Ad Vincula), que era originariamente a da
dedicação da igreja do Apóstolo, erigida na Colina Esquilina no século IV. Filipo,
sacerdote titular desta igreja, foi delegado papal ao Concílio de Éfeso no ano
431. A igreja foi reconstruída por Sixto II (432) a expensas da família imperial Bizantina. A consagração solene pode ter
sido a 1 de agosto, ou terá sido este o dia da dedicação da igreja anterior,
ou, ainda terá o dia sido escolhido para cristianizar as festas pagãs que se
realizavam a 1 de agosto. Nesta igreja, ainda de pé, provavelmente se preservaram
desde o século IV as correntes de Pedro que eram muito veneradas, sendo
considerados como relíquias apreciadas os pequenos pedaços do seu metal.
A memória de
ambos os apóstolos, Pedro e Paulo, foi mais tarde relacionada com os lugares da
antiga Roma: a Via Sacra, nas proximidades
do Foro, onde se diz que fora atirado ao solo o mago Simão diante da oração de
Pedro e o cárcere de Tuliano (ou Cárcere Mamertino), onde se supõe terem sido mantidos os
dois Apóstolos até à sua execução. E em ambos lugares foram erigidos santuários
em memória dos Apóstolos e o do cárcere Mamertino ainda permanece em quase seu
estado original desde aquela longínqua época Romana. Estas comemorações locais
estão baseadas em lendas e não há celebrações especiais nas duas igrejas.
Entretanto, não é impossível que Pedro e Paulo tenham sido confinados à prisão
principal de Roma na fonte do Capitólio, da qual fica como uma relíquia o atual
Cárcere Mamertino.
***
Esta
solenidade é uma das mais antigas da Igreja, sendo anterior à própria comemoração
do Natal. Depois da Mãe de Deus e de João Batista, Pedro e Paulo são os santos
que têm mais datas comemorativas no ano litúrgico. Além do tradicional 29 de
junho (celebração da fé,
pastoreio, missão e martírio), há: 25 de janeiro, celebração da Conversão de Paulo; 22 de fevereiro,
celebração da Cátedra de Pedro; e 18 de novembro, dedicação das Basílicas de
São Pedro e São Paulo.
Embora não
haja certeza quanto ao ano dos martírios dos dois apóstolos, sabe-se que o
martírio de ambos deve ter ocorrido em ocasiões diferentes: Pedro (o 1.º Papa, que pontificou 37 anos), crucificado de cabeça para baixo
na Colina Vaticana, em 64; e Paulo (um dos principais escritores do Novo Testamento), decapitado na chamada Três Fontes, em 67.
Pedro e Paulo
não fundaram Roma (nem
esta Igreja), mas são
considerados os “pais de Roma” e considerados os pilares que sustentam a Igreja
tanto pela sua fé e pregação, como pelo seu ardor e zelo missionários. Pedro é
o apóstolo que Jesus Cristo escolheu e investiu da dignidade de ser o primeiro
Papa da Igreja. Jesus disse-lhe, depois de acolher o seu ato de fé (Tu é os Messias, o Filho de Deus vivo): “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (cf Mt 16,13-19). Paulo é o maior missionário de
sempre, o advogado dos pagãos, o “Apóstolo dos gentios”.
Celebrar a
Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo significa lembrar que a Igreja – de
confessores e mártires – é radicalmente cristã, essencialmente una e
tradicionalmente apostólica, pelo envio ao mundo e pela sucessão na linha dos
apóstolos. Para nós, é uma realidade fácil de aceitar que a Igreja de hoje seja
a mesma de há dois mil anos, a fundada por Jesus sobre a fé de Pedro
constituída como rocha eficaz de acolhimento, proteção e solidez. Não se trata,
pois, de uma plêiade de igrejas, com “i” minúsculo, quais instituições frágeis
fundadas pelos homens.
Nós cremos
que a Igreja – una, santa, católica e apostólica – embora, feita de seres
humanos sujeitos ao pecado, é um mistério instituído pelo próprio Senhor; e cresceu
ao longo dos séculos como uma planta, com todas as suas dificuldades e
fragilidades, mas tendo sempre a mesma vida divina dentro de si, graças à ação
do seu Divino Fundador, que se constituiu como sua cabeça. Por isso, é possível
dizer que a Igreja é a continuidade do corpo de Cristo na história.
Para a entender
como mistério de comunhão e instituição orgânica – que aparentemente mudou
tanto ao longo dos séculos e pode permanecer sendo a mesma Igreja Católica,
fundada por Jesus Cristo (cf Mt 16,18-19) – pode-se tomar como exemplo a caminhada
das mães. Na sua juventude, as mulheres possuem geralmente uma aparência muito
linda, um corpo jovial e uma pele lisa e macia. Com o tempo, porém, a sua
beleza física pode ir-se esvaindo, o corpo pode ir decaindo e com a pele a começar
a encher-se de manchas, rugas e estrias. Porém, ainda que o seu aspeto exterior
mude, a mãe permanece a mesma, conserva a sua identidade e os filhos continuam
a amá-la ternamente. Todavia, a Igreja, graças ao Espírito Santo que funciona
como sua alma e ao alimento que recebe da Palavra e da Eucaristia, pode
renovar-se continuamente. E a missão dos concílios e dos sínodos é exatamente,
na atenção e na docilidade ao Espírito, trabalhar a renovação da Igreja e
apresentá-la sem ruga, sem mancha e sem estria – presente profeticamente no
mundo, modelando-o segundo o coração de Deus.
Quem perceber
que, mesmo com a mudança das aparências, as pessoas não deixam de ser o que
são, é capaz de compreender o conceito de substância. Com
efeito, o termo refere-se a algo que não é captável pelos sentidos, mas apenas pela
inteligência. O que a visão e os outros sentidos podem atingir são apenas
os acidentes das coisas. A substância, porém, que
lhes dá identidade, é invisível. Assim acontece com a Igreja. Hoje, quem vai ao
Vaticano entra em vários templos sumptuosos, como a Basílica de São Pedro, e
Francisco, mesmo na sua humildade, discrição e despojamento, não ousa dispensar
os seguranças de perto de si (pois, sendo o chefe visível da Igreja de Cristo, é muito visado pelos
inimigos da fé). Nos
primeiros anos da Igreja, porém, quem era Pedro, senão um pescador pobre e
analfabeto de Cafarnaum? Não é por acaso que ele foi escolhido como protetor
dos pescadores e a Igreja é assumida metaforicamente como a Barca de Pedro.
Face a estas
diferenças de aparência na Igreja, os críticos dizem que não se trata da mesma
entidade e que a Igreja fundada por Cristo se perverteu no decurso dos séculos.
O erro dos detratores está em se deterem apenas nos acidentes e realidades sensíveis
da Igreja, ignorando a permanência da sua substância, identidade e essência.
Foi com
Friedrich Hegel († 1831) que se começou a perder a noção de
continuidade. Para o filósofo alemão, a história seria a “metamorfose
ambulante”, com teses, antíteses e sínteses constantes e subsequentes, sem que
a realidade se estribe na substância e na identidade.
Condicionadas
por esse pensamento, as pessoas começaram a viver sem raiz, sem tradição e sem identidade
– a ditadura do efémero – sempre a tentar “reinventar a roda” e a criar
novamente o que só precisavam aceitar da “democracia dos mortos” e de seguir em
frente, sempre à descoberta de mais e sua incorporação no património recebido.
Sobre a
tradição e a democracia dos mortos, Chesterton escreve:
“A tradição pode ser definida como uma
extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de
todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição
recusa-se a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente
por acaso estão andando por aí.” (Chesterton, Gilbert K. Ortodoxia (trad. Almiro Pisetta). São
Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 80).
Esta filosofia
na Igreja tem efeitos piores do que nos assuntos meramente humanos. Quando se
tenta subverter, além da verdade natural, a verdade revelada por Deus, muito
maior será o caos e a confusão que se instalam nas mentes e nas atitudes. Mas
quem entende que a mudança dos acidentes não altera a substância das coisas, faz
questão em preservar a Igreja, os seus ensinamentos e tudo o mais que constitui
a sua essência; e, quando promove alguma reforma, não é para destruí-la, senão
para lhe propiciar mais e melhor vida. É, pois, inconcebível que se queira
reformar a Igreja pela quebra da sua continuidade substancial. Se no tempo dos
Apóstolos não havia concílios ecuménicos, catecismos ou Congregação para a Doutrina
da Fé, nem por isso a fé dos primeiros cristãos deixa de ser a matriz da mesma fé
que os católicos professam todos em todos os lugares da terra e em todos os
tempos (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus). O símbolo da
fé foi construído com base na pregação apostólica. E, se, no decorrer da
história, a Igreja vai tomando maior consciência da sua identidade, da sua
doutrina e da sua posição no mundo, nem assim nada muda o que ela foi, é e será.
Na 1.ª Carta
aos Coríntios, o Apóstolo dos gentios, ao transmitir as doutrinas da Eucaristia e da Ressurreição de Cristo,
diz: “Eu recebi do Senhor o que também
vos transmiti” (11,23); “de facto, eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo tinha
recebido” (15,3). Apenas alguns anos após a ascensão
de Cristo, já se dá a realidade da “tradição” (do latim tradere, que significa
“entregar”, “transmitir):
os discípulos transmitem a Palavra, os Sacramentos e a prática (orante e ativa), preocupando-se com a fidelidade ao
que eles mesmos receberam. De facto, as expressões de Paulo não são em vão:
todos nós, como apóstolos de Cristo, devemos ser fiéis à mensagem que recebemos
dos nossos pais na fé – os apóstolos, os padres apostólicos e os doutores da
Igreja. Afinal, sabemos – e cremos – que a palavra deles remonta ao próprio
Senhor e, por isso, deve ser recebida “não como palavra humana, mas como o que
ela de facto é: Palavra de Deus” (1Ts 2,13).
Por isso, ao
celebrarmos Pedro e Paulo, as duas colunas da Igreja, exultaremos de alegria
por pertencermos à “Igreja una, santa, católica e apostólica”; à única Igreja
de Cristo, que, assim como seu Esposo, é a mesma ontem, hoje e sempre (cf Hb 13,8).
Por ela,
estaremos sempre dispostos a dar a nossa vida como por uma tão amorosa mãe, que
é efetivamente, alimentando-nos com a Palavra de Deus e com o próprio Senhor
presente na Eucaristia?
2017.06.29 – Louro de Carvalho
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