quarta-feira, 14 de junho de 2017

O “Prémio Camões 2017” e o rigor da verdade

Como é do domínio público, o escritor Manuel Alegre venceu a 29.ª edição do Prémio Camões 2017, atribuído pela Fundação Biblioteca Nacional, segundo o que foi anunciado depois da reunião do respetivo júri na sede daquela instituição no Rio de Janeiro, a 9 de junho.
O aludido júri foi constituído por Paula Morão, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Maria João Reynaud, professora associada jubilada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, José Luís Jobim, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Lourenço do Rosário, reitor da Universidade Politécnica de Maputo e pelo poeta cabo-verdiano José Luís Tavares.
A escolha foi publicada no Diário Oficial da União do dia 13 de junho.
A este respeito, Manuel Silveira da Cunha publicou na página 4 do semanário “O Diabo”, do dia 13, um texto subordinado ao título “Salazar, Sobrinho Simões e o analfabetismo”, em que, misturando tudo, Manuel Alegre e o Prémio Camões figuram ali como a viola num enterro.
O colunista cita o seguinte segmento frásico do laureado a propósito da atribuição do galardão: “É natural que me atribuam este prémio. Até podia ter sido mais cedo”.
Se é certo que me parece prosápia o facto de alguém pensar natural que lhe atribuam um prémio e dar a entender que o podiam ou deveriam ter feito antes, não choro os cem mil euros que os governos de Portugal e do Brasil pagam a meias ao premiado, neste caso ao poeta de Águeda. E, se Alegre tem sido para mim uma figura controversa – admirei-o politicamente e estive no apoio público e explícito à sua primeira candidatura presidencial, mas distanciei-me dele quando se intrometeu na tentativa de alguns professores de pedirem a intercessão dos deputados professores junto do Governo de Sócrates, que o poeta classificou de atitude abusiva – nem por isso deixo de reconhecer o mérito da sua obra literária. E, se fez a sua ginástica de trabalho e reforma em termos pouco claros (Tantos o fizeram!), não nos é lícito misturar alhos com bugalhos.
Mas sobretudo tenho de desmentir o que “O Diabo” afirma quando diz que Alegre “é um poeta de rima fácil”, que “nunca escreveu nenhuma obra de vulto para além de Cão como nós” ou que “estará ao nível de outros premiados como Rachel de Queiroz, que recebeu o prémio em 1993, em detrimento de Jorge Amado, autor que nunca recebeu o prémio”.
Dizer que Alegre é um poeta de rima fácil mostra que o colunista ou não o leu ou o leu mal; reduzir a sua obra de vulto a Cão como nós (2011) é ignorar ou depreciar a obra do poeta político; e dizer que Jorge Amado não recebeu o prémio é desconhecer a lista dos premiados, pois o escritor brasileiro recebeu o Prémio Camões em 1994.
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Segundo a lista da revista “Visão”, foram estes os galardoados com o Prémio Camões: Miguel Torga, Portugal, em 1989; João Cabral de Melo Neto, Brasil, em 1990; José Craveirinha, Moçambique, em 1991; Vergílio Ferreira, Portugal, em 1992; Rachel Queiroz, Brasil, em 1993; Jorge Amado, Brasil, em 1994; José Saramago, Portugal, em 1995; Eduardo Lourenço, Portugal, em 1996; Pepetela, Angola, em 1997; António Cândido de Mello e Sousa, Brasil, em 1998; Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal, em 1999; Autran Dourado, Brasil, em 2000; Eugénio de Andrade, Portugal, em 2001; Maria Velho da Costa, Portugal, em 2002; Rubem Fonseca, Brasil, em 2003; Agustina Bessa-Luís, Portugal, em 2004; Lygia Fagundes Telles, Brasil, em 2005; José Luandino Vieira, Portugal/Angola, em 2006; António Lobo Antunes, Portugal, em 2007; João Ubaldo Ribeiro, Brasil, em 2008; Arménio Vieira, Cabo Verde, em 2009; Ferreira Gullar, Brasil, em 2010; Manuel António Pina, Portugal, em 2011; Dalton Trevisan, Brasil, em 2012; Mia Couto, Moçambique, em 2013; Alberto da Costa e Silva, Brasil, em 2014; Hélia Correia, Portugal, em 2015; Raduan Nassar, Brasil, em 2016; e Manuel Alegre, Portugal, em 2017.
A história do galardão conta apenas com uma recusa, a de Luandino Vieira, em 2006.
Portugal e Brasil lideram a lista de distinguidos com o Prémio Camões, com doze premiados cada um, respetivamente, seguindo-se Angola e Moçambique, com dois laureados cada – contando com o luso-angolano Luandino Vieira –, e Cabo Verde, com um.
O Prémio Camões, instituído pelos Governos de Portugal e do Brasil, em 1988, foi atribuído pela 1.ª vez em 1989, a Miguel Torga. Segundo o texto do protocolo constituinte, assinado em Brasília, a 22 de junho de 1988, e publicado em novembro do mesmo ano, o Prémio consagra anualmente “um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”.
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Manuel Alegre nasceu na cidade portuguesa de Águeda, em 1936. No campo da poesia, começou a ganhar destaque com as coletâneas Poemas Livres, datadas entre 1963 e 1965.
O seu reconhecimento foi ampliado com a publicação de dois volumes de poemas: Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967), apreendidos pelas autoridades antes do 25 de abril, mas com grande circulação nos meios intelectuais. Em 1989, Manuel Alegre estreou-se na ficção com o livro Jornada de África. O escritor assina diversas outras obras. No entanto, foram as aqui referidas que o júri de 2017 considerou para o condecorar com o principal prémio da língua portuguesa.
O escritor, de 81 anos, disse que recebeu a notícia de atribuição do Prémio Camões, com “serenidade e alegria”, considerando que o reconhecimento maior é o que vem de quem o lê.
Em declarações à agência Lusa, disse que lhe dá “particular satisfação” a atribuição do prémio, até porque Luís de Camões é um dos poetas que aprecia, e referiu ter reeditado recentemente o seu livro “Vinte Poemas para Camões” (2016) e confessou explicando:
“O meu reconhecimento maior é o que vem dos meus leitores através dos tempos, vencendo várias formas de censura. Naturalmente, uma distinção desta natureza tem o significado que tem.”.
O escritor lembrou igualmente ter recebido o Prémio Pessoa, o que lhe deu “grande satisfação”, por ter também “um grande significado cultural”.
Por seu turno, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, referindo-se ao caso como “homenagem justíssima”, acentuou: “Nos termos do próprio prémio, (Manuel Alegre) contribuiu e contribui para o enriquecimento literário e cultural, não apenas português, mas do mundo da lusofonia”.
Marcelo Rebelo de Sousa fez tal declaração antes dum jantar de gala dos 60 anos da Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e afins de Portugal (AIMMAP) no Porto de Leixões, em Matosinhos, no âmbito do programa das comemorações do 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. E diz que o Prémio é o reconhecimento da obra de Alegre, “longa, exaustiva e rica”.
Questionado sobre o facto de o anúncio do vencedor coincidir com o 10 de junho, disse:
“Tem outro significado falar no Prémio Camões e associá-lo ao Dia de Camões, ao Dia de Portugal e ao Dia das Comunidades Portuguesas espalhadas pelo mundo fora”.
E acrescentou:
Há aqui um valor simbólico essencial e indissociável daquilo que a nossa língua representa para a nossa pátria e para todas aquelas pátrias que têm em comum o português”.
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Além das obras referidas e das traduções e antologias que organizou ou onde está presente, Manuel Alegre publicou:
. No âmbito da poesiaUm Barco para Ítaca (1971); Coisa Amar (Coisas do Mar) (1976); Nova do Achamento (1979); Atlântico (1981); Babilónia (1983); Chegar Aqui (1984); Aicha Conticha (1984); A Rosa e o Compasso (1991); Com que Pena – Vinte Poemas para Camões (1992); Sonetos do Obscuro Quê (1993); Coimbra Nunca Vista (1995); As Naus de Verde Pinho (1996); Alentejo e Ninguém (1996); Che (1997); Pico (1998); Senhora das Tempestades (1998); E alegre se fez triste (1999); Livro do Português Errante (2001); Nambuangongo, Meu Amor (2008); Doze Naus (2007); Sete Partidas (2008); Nada está escrito (2012); Coimbra nunca vista (2013); País de abril (2014); e Bairro Ocidental (2016).
. No âmbito da ficção O Homem do País Azul (1989); Alma (1995); A Terceira Rosa (1998); Uma Carga de Cavalaria (1999); Rafael (2003); O miúdo que pregava pregos numa tábua (2010).
. No âmbito da literatura infantilBarbi-Ruivo, O meu primeiro Camões (2007); O Príncipe do Rio (2009); As Naus de Verde Pinho: Viagem de Bartolomeu Dias contada à minha filha Joana. Prémio de Literatura Infantil António Botto (2015).
. OutrosContra a Corrente (discursos e textos políticos), em 1997; Arte de Marear (ensaios), em 2002; O Futebol e a Vida, Do Euro 2004 ao Mundial 2006 (crónicas), em 2006; e Uma outra memória – A escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos, em 2016.
Além disso, muitos poemas seus foram musicados e cantados desde a publicação do seu primeiro livro. Antes do 25 de abril, foi musicado e/ou cantado pelos nomes mais representativos da canção de resistência e também por grandes guitarristas de Coimbra, como António Portugal e António Bernardino. Alain Oulman musicou poemas seus para a voz de Amália Rodrigues. E Alegre gravou poemas, acompanhado pela guitarra de Carlos Paredes. Agora, está representado em Portugal nas vozes de João Braga, Paulo de Carvalho, Vitorino, Janita Salomé e muitos mais. No Brasil, foi musicado e cantado por Maria Bethânia e, em Espanha, pelo grupo galego “Fuxan os ventos”. E, em 2004, foi editado (edição de autor) “Coração que nasceu livre”, coletânea de poemas seus cantados, musicados ou declamados por Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, Amália Rodrigues, Maria Bethânia, Paulo de Carvalho, Mário Viegas, António Bernardino, Manuel Freire, Janita Salomé, Carlos Mendes, Carlos do Carmo, Francisco Fanhais, Cristina Branco, Vitorino e o grupo Linha da Frente.
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Queiramos ou não, a obra de Manuel Alegre impõe-se pela quantidade, pela qualidade e pela maleabilidade – o que lhe garante grande aceitação. No entanto, diga-se que Alegre é grande sobretudo na poesia, onde escreve e diz com alma, profunda e larga ou leve como pena de ave – em consonância com o tipo de sentimento a acolher a e expressar e de acordo com intensidade que lhe é própria.
Obra “longa, exaustiva e rica” – disse o Marcelo. E mesmo que o não dissesse…

2017.06.13 – Louro de Carvalho

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