sexta-feira, 30 de junho de 2017

Obviamente é a escola que declara a transição ou a aprovação do aluno

No blogue “Com Regras”, aparece um texto com a seguinte questão: “Quem deve chumbar o aluno? A escola ou o conselho de turma?”. Advertindo que “provavelmente não cairá bem na maioria dos professores” o que escreve, o autor pede que se veja o seu raciocínio até ao fim.
A meu ver, a questão está mal colocada, porquanto não se trata de chumbar alunos, mas de proceder à sua avaliação sumativa, de que resulta um juízo valorativo e, por conseguinte, a decisão de considerar que o aluno transitou para o ano imediato ou que fica retido no mesmo ano (não transitou), sendo que, em avaliação sumativa de fim de ciclo, o aluno é declarado aprovado ou não aprovado, conforme tenha ou não concluído com êxito o repetido ciclo.
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Entre parêntesis, diga-se ao articulista que o verbo transitar não é verbo transitivo direto, pelo que, não postulando complemento direto, não é legítimo dizer, por exemplo, “procurava-se todo e qualquer motivo para transitar o aluno”. Deveria dizer-se “procurava-se todo e qualquer motivo o aluno para transitar” ou “para que o aluno transitasse”. A este respeito, é de mencionar o que nos dizem Helena Ventura e Carla Diana, do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:
“Com o sentido de ‘passar ou mudar de um lugar para outro’, devemos utilizar a preposição para. Assim, ‘... transita para...’ Se for com o sentido de ‘andar, percorrer’, emprega-se a preposição em. Ex.: ‘Hoje não se pode transitar em Lisboa’.”.
E, segundo os dicionários gerais de língua, o verbo transitar é usado com os significados e nos contextos que se seguem (pesquisa de Carla Viana):
a) «Andar, percorrer, viajar ou passar através de um determinado espaço, percorrendo-o». Ex.: Transitar na rotunda.
b) «Passar ou mudar de um lugar para outro». Ex.: A sede da empresa transitou de Lisboa para Coimbra.
c) «Estar de passagem por determinado lugar». Ex.: Eles transitaram pelo território ocupado. No voo de Istambul para Lisboa transitámos em Madrid.
d) «Passar ou mudar de uma situação de um estado ou condição para outro». Ex.: Ele  transitou de tesoureiro para chefe de secção.
e) «Ser dado por concluído um processo judicial». Ex.: O processo já transitou em julgado.
f) «Passar um aluno para o ano seguinte, transitar de ano letivo». Ex.: Todos transitaram para o ano seguinte. O João transitou do quinto para o sexto ano de escolaridade.
No contexto em referência, ou seja, «transitar de ano letivo», o verbo transitar rege a preposição para, conforme os exemplos da alínea f), que é uma extensão semântica da alínea b).
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Entretanto, o articulista em referência tem tido pouca sorte, a ser verdade o que diz:
“Há 15 anos que participo em reuniões de avaliação, onde em determinado momento se analisa a retenção ou transição do aluno. Se existem casos onde as negativas são tantas como os dedos das mãos, outros fazem-nos ponderar se devemos transitar ou não o aluno”.
E tem razão quando diz que “a dúvida é legítima e é de difícil resolução” tendo ele próprio já mudado “de opinião muitas vezes nestes 15 anos” e também já se tendo arrependido “de algumas decisões”. Porém, é ilegítimo generalizar dizendo:
“A realidade é que os conselhos de turma decidem normalmente o futuro da criança/jovem, baseando-se nas suas crenças pessoais ou, se preferirem, níveis de compaixão ou de intolerância para com os alunos”.
Confesso que, apesar das fortes críticas que tenho lançado sobre o sistema, não me revejo no mundo do subscritor do texto, quando diz:
“Não me lembro de debates centrados nas dificuldades concretas do aluno, nas estratégias necessárias para mudar o que está mal, questionando métodos de ensino, métodos de avaliação, ou mesmo lembrando os porquês da atitude do aluno perante a escola. A atitude é uma mera manifestação de uma série de fatores que até podem advir da própria sala de aula, onde até mesmo a empatia que existe entre professor e aluno pode decidir o sucesso ou insucesso. Muitos outros fatores existem e seguramente que o fator casa é um dos principais, se não mesmo o principal fator que enraíza o insucesso e o distanciamento.”.
A minha experiência reza o contrário: em situação dúbia, atentamos nas dificuldades e progressos concretos do aluno, no contexto familiar e, quanto a estratégias de mudança de métodos de ensino e de avaliação, têm-se feito muitas sugestões e recorrentes apelos ao real e eficaz envolvimento do encarregado de educação no processo de ensino/aprendizagem. Se os professores, às vezes, desanimam perante as condições de trabalho, também é certo que dão o seu melhor pelo sucesso dos alunos. Não querem é ser objeto de pressão excessiva ou ilegítima de diretores, inspetores ou dos encarregados de educação. E a empatia entre aluno e professor é um bom fautor do sucesso escolar. E, quando ela não acontece, exige.se respeito mútuo.
É injusto considerar os professores enquadrados no “painel de jurados” que “é responsável por tocar a harpa celestial ou o som estridente do chicote”. Lamento que lhe tenha acontecido “entrar em conselhos de turma, onde a ‘arena’ estava montada e era escusado dizer um mas”; ou que, noutros se procurasse “todo e qualquer motivo para transitar (sic) o aluno, mesmo que o absentismo, o insucesso e a indisciplina fossem o dia sim, dia sim…”. Só me pergunto: onde estava o poder da palavra e de denúncia que assiste a todo e a qualquer professor?
Diz o rico que “falta muitas vezes critério aos conselhos de turma e a sorte está traçada muitas vezes no início do ano, quando são distribuídos os professores pelas turmas”. É óbvio que é ao diretor (como dantes ao conselho executivo ou ao conselho diretivo) que incumbe a distribuição do serviço docente, mas ao professor continua a assistir o direito e a obrigação de cidadania de fazer sugestões a que de direito ou a denúncia de situações graves. Obviamente que a escola tem projeto educativo e se pauta por uma sólida política educativa. Não está mesmo à mercê das “vontades/caraterísticas” dos conselhos de turma nem sujeita “a vontades, impulsos, pequenos atos de vingança ou paternidade exacerbada”. E quaisquer casos em contrário, a existirem, devem ser oportunamente denunciados e combatidos. E, a talho de foice, considero que o palavrão não será em si motivo de suspensão, mas a escola deve educar para valores de ética e cidadania, que passam pela razoabilidade das linguagens. Mas tem razão quando assegura:
“A escola não é apenas ‘matéria’, a escola é sentimento, sentimento esse que orienta as nossas decisões. O fator humano nunca poderá desaparecer de uma escola, mas este não deve fazer esquecer o rumo, o projeto, o objetivo da escola.”.
É de apreciar o estudo que o Agrupamento de Escolas de Mangualde fez sobre o impacto que o a retenção ou não aprovação de alunos teve no sucesso educativo dos seus alunos. Constatou que “no 1.º ciclo, a retenção no 2.º e 3.º ano escolar até pode ser benéfica”, justificável até “pela fraca maturidade dos alunos”. Porém, no 2.º e 3.º ciclo, verificou que “o chumbo nos anos intermédios pouco ou nada melhorava o rendimento escolar em anos futuros”.
O Agrupamento de Escolas de Mangualde estudou a sua população escolar e adaptou a sua estratégia às caraterísticas dos seus alunos. Com efeito, não é justo sentido tratar por igual o que é claramente diferente, nem ignorar os factos por crenças ou ideologias pessoais.
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A avaliação dos alunos e, por consequência, a declaração de transição/aprovação é competência da escola. Porém, a escola não funciona em abstrato, mas através dos seus órgãos. Quem representa, no topo, a escola é o diretor ou quem fizer as suas vezes. Porém, não é a este órgão que incumbe a declaração escrita individualmente considerada da não transição ou não aprovação de cada aluno, bem como a transição ou aprovação. Não é o conselho geral, a quem incumbe a direção estratégica e não a tomada de decisões individualizadas. O conselho de departamento curricular ou de grupo disciplinar não abrange a totalidade dos saberes que são confiados ao aluno ou que ele deve adquirir e desenvolver. Obviamente que, em nome da escola, o conselho de turma ou o conselho de docentes, responsável pelo plano de atividades da turma e pela avaliação das aprendizagens toma as decisões que levam à transição e aprovação dos alunos.
O subscritor do aludido texto diz que os conselhos de turma não têm critérios. A contrario, recordo que os normativos da avaliação e a certificação das aprendizagens estabelecem:
“Até ao início do ano letivo, o conselho pedagógico da escola, enquanto órgão regulador do processo de avaliação das aprendizagens, define, sob proposta dos departamentos curriculares, os critérios de avaliação, de acordo com as orientações constantes dos documentos curriculares e outras orientações gerais do Ministério da Educação. Nos critérios de avaliação deve ser enunciada a descrição de um perfil de aprendizagens específicas para cada ano e ou ciclo de escolaridade.
Os critérios de avaliação constituem referenciais comuns na escola, sendo operacionalizados pelo ou pelos professores da turma. O diretor deve garantir a divulgação dos critérios de avaliação junto dos diversos intervenientes.” (cf despacho normativo n.º 1-F/2016, de 5 de abril, art.º 7.º).
É certo que, às vezes, os critérios definidos são um tanto enviesados, ao limitarem-se a definir o peso percentual de cada modalidade de avaliação, o que deve passar por respeitar mais a índole de cada disciplina ou área curricular, limitando-se o conselho pedagógico a coordenar a definição dos critérios gerais e específicos de avaliação. Também se perde muito tempo, no conselho de turma, a justificar classificações negativas, que falam por si, quando se devia gastar mais tempo em ponderar a não transição ou não aprovação. E o conselho devia ter mais em conta o juízo de cada professor e não uma atitude às vezes bem inquisitorial. Mas daí a falar em estados de alma ou atitudes de vingança ou de paternalismo exacerbado vai enorme distância.
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Naturalmente, não quero que volte a escola em que o aluno que tivesse 4 (na escala de 0 a 20) era expulso, não podendo voltar nesse ano. Também não é linear o que se fazia quando nos conselhos de turma os professores “inequivocamente atribuíam as classificações e à 3.ª negativa, se não fosse Português ou Matemática, o aluno chumbava. Tem de haver sempre a devida ponderação considerando a situação global do aluno.
Como dantes, a sociedade é dura e fortemente competitiva. Mas a escola fraca, que diz preparar os alunos para a democracia sem cuidar da dificuldade, é espelho da fraca autoridade do Estado. Por outro lado, a escola pretende responder a tudo e isso é humanamente impossível. E os encarregados de educação, em vez de informarem os professores/diretores de turma do que é importante para a relação aluno/professor e de acompanharem assiduamente o processo de ensino/aprendizagem, querem ter os alunos guardados fora de casa o mais tempo possível e contestam a autoridade do professor. E vemos professores amedrontados, cheios de problemas de consciência, cheios de meninos com n problemas do foro psicológico e com a ideia de que o sentimento salva e limpa o espírito. Depois, avoluma-se a ideia de que os problemas dramáticos dos pais são mais importantes que a exigência, a aplicação e obrigação do aluno em responder às dificuldades diárias e aos desafios lançados pelos professores, programas e regulamentos. É este complexo de fatores que transporta para a escola o sentimentalismo oco, inútil e antipedagógico, que, qual peste em pandemia, vai corroendo o ensino e o papel da escola.
A escola de hoje é a escola de todos, mas deve deixar de ser o espaço onde muitos mal sabem ler escrever ou contar; e deve contribuir para que os problemas sociais sejam resolvidos, e não sucessivamente adiados, para facilitar o sucesso escolar e educativo. Não podem jamais em tempo algum operacionalizar-se tratamentos de cosmética infrutíferos levando a escola a fazer um serviço tipo padaria com farinha de 3.ª categoria, onde cada fornada é o espelho do padeiro que, por melhor que seja, dificilmente apresentará pão de boa qualidade. Há que criar condições sociais para a promoção de melhores aprendizagens e consequentes resultados. Pactuar com a degradação da escola é impróprio da profissão docente. Para produzir bom pão tem de haver bom solo. Estado que insista na produção de cereal em terreno pedregoso, jamais boa colheita e boa fornada. Depois, é preciso enaltecer as pessoas que aprendem que na vida é necessário batalhar para alcançar objetivos, convencidas de que se alcança tudo com esforço. Não podemos resignar-nos a criar um país de ignorantes diplomados, mais fáceis de governar/dominar por falta de espírito crítico, de opinião.
Vamos ao sempre tão eloquente exemplo da Finlândia e já sabemos como se faz lá. Mas, para isso, é preciso dinheiro para mais professores que façam o acompanhamento dos alunos, dispensar os docentes do excesso de tarefas administrativas e flexibilizar currículo e organização. Sem o que resta o facilitismo, a falsa compaixão e o demagógico discurso do pedagogismo.
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Alguém deu conta dum alerta para a situação de existência de alunos de cursos vocacionais que, apesar de terem mais de 70% dos módulos concluídos, não atingem os 100%. E 100% é o patamar percentual necessário para que os alunos possam matricular-se no ensino secundário profissional, para os restantes, a saída era um ensino secundário vocacional, que foi extinto.
O ano passado, quem estava no último ano do curso vocacional do ensino básico, podia integrar a turma que vinha a seguir, o que agora é impossível, pois não foram abertas novas turmas. Surge assim o vazio. Se os alunos não obtiverem 100% de sucesso não podem transitar para o ensino secundário, apesar de terem o número de módulos suficientes para o efeito e que lhes foi prometido pela tutela.
O alerta aponta o dedo ao ME e diretores, que pressionam os professores a darem 100% de sucesso aos alunos, já que a alternativa não existe. Estes alunos ficariam na terra de ninguém, pois para o ensino regular têm de fazer exames de acesso, o que, em geral, não conseguem; e, como já têm o 9.º ano, não podem frequentar mais o 3.º ciclo.
Dirão alguns que a pressão é legítima, que os alunos não têm culpa. Todavia, o princípio de equidade deve ser respeitado. Já não basta o facilitismo inerente a estes cursos, que obrigava todos os alunos a transitarem para o 2.º ano, mesmo que não fizessem um único módulo. Agora o que importa é acabar com isto rapidamente. Este fim de cena dos cursos vocacionais é como o jogo em que uma equipa está a ser goleada, faltando pouco para acabar. É penoso, mas quem atribui notas tem de ser profissional.
Até existe, pelos vistos, um documento, não assinado, que apela de forma camuflada ao sucesso a todo o custo, estribado no princípio de que “a escola tem autonomia e tem de resolver a questão”. Será que os diretores baixarão a cabeça ordenando o desentupimento do sistema?
Assim, a tónica deveria ser colocada no erro da extinção dos Cursos Vocacionais Secundários. Com uma escolaridade obrigatória de 12 anos, é imprescindível a existência de um percurso secundário aligeirado para alunos que rejeitam um currículo predominantemente académico.

Tandem, quo vadis, schola?

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