No blogue “Com Regras”, aparece um texto com a seguinte questão: “Quem deve chumbar o aluno?
A escola ou o conselho de turma?”. Advertindo que “provavelmente não
cairá bem na maioria dos professores” o que escreve, o autor pede que se veja o
seu raciocínio até ao fim.
A meu ver, a
questão está mal colocada, porquanto não se trata de chumbar alunos, mas de proceder
à sua avaliação sumativa, de que resulta um juízo valorativo e, por conseguinte,
a decisão de considerar que o aluno transitou para o ano imediato ou que fica
retido no mesmo ano (não
transitou), sendo que,
em avaliação sumativa de fim de ciclo, o aluno é declarado aprovado ou não aprovado,
conforme tenha ou não concluído com êxito o repetido ciclo.
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Entre
parêntesis, diga-se ao articulista que o verbo transitar não é verbo transitivo direto, pelo que, não postulando
complemento direto, não é legítimo dizer, por exemplo, “procurava-se todo e
qualquer motivo para transitar o aluno”. Deveria dizer-se “procurava-se todo e
qualquer motivo o aluno para transitar” ou “para que o aluno transitasse”. A
este respeito, é de mencionar o que nos dizem Helena Ventura e Carla Diana, do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:
“Com o sentido de ‘passar
ou mudar de um lugar para outro’, devemos utilizar a preposição para.
Assim, ‘... transita para...’ Se for com o sentido de ‘andar, percorrer’,
emprega-se a preposição em. Ex.: ‘Hoje não se pode transitar em
Lisboa’.”.
E, segundo os dicionários gerais de língua, o verbo transitar é
usado com os significados e nos contextos que se seguem (pesquisa de Carla
Viana):
a) «Andar, percorrer, viajar ou passar através de um determinado espaço,
percorrendo-o». Ex.: Transitar na rotunda.
b) «Passar ou mudar de um lugar para outro». Ex.: A sede da empresa
transitou de Lisboa para Coimbra.
c) «Estar de passagem por determinado lugar». Ex.: Eles transitaram pelo território
ocupado. No voo de Istambul para Lisboa transitámos em Madrid.
d) «Passar ou mudar de uma situação de um estado ou condição para outro». Ex.:
Ele transitou de tesoureiro para chefe
de secção.
e) «Ser dado por concluído um processo judicial». Ex.: O processo já
transitou em julgado.
f) «Passar um aluno para o ano seguinte, transitar de ano letivo». Ex.:
Todos transitaram para o ano seguinte. O João transitou do quinto para o
sexto ano de escolaridade.
No contexto em referência, ou seja, «transitar de ano letivo», o
verbo transitar rege a preposição para, conforme
os exemplos da alínea f), que é uma extensão semântica da alínea b).
***
Entretanto, o
articulista em referência tem tido pouca sorte, a ser verdade o que diz:
“Há 15 anos que participo em reuniões
de avaliação, onde em determinado momento se analisa a retenção ou transição do
aluno. Se existem casos onde as negativas são tantas como os dedos das mãos,
outros fazem-nos ponderar se devemos transitar ou não o aluno”.
E tem razão
quando diz que “a dúvida é legítima e é de difícil resolução” tendo ele próprio
já mudado “de opinião muitas vezes nestes 15 anos” e também já se tendo
arrependido “de algumas decisões”. Porém, é ilegítimo generalizar dizendo:
“A realidade é que os conselhos de
turma decidem normalmente o futuro da criança/jovem, baseando-se nas suas
crenças pessoais ou, se preferirem, níveis de compaixão ou de intolerância para
com os alunos”.
Confesso que,
apesar das fortes críticas que tenho lançado sobre o sistema, não me revejo no
mundo do subscritor do texto, quando diz:
“Não me lembro de debates centrados
nas dificuldades concretas do aluno, nas estratégias necessárias para mudar o
que está mal, questionando métodos de ensino, métodos de avaliação, ou mesmo
lembrando os porquês da atitude do aluno perante a escola. A atitude é uma mera
manifestação de uma série de fatores que até podem advir da própria sala de
aula, onde até mesmo a empatia que existe entre professor e aluno pode decidir
o sucesso ou insucesso. Muitos outros fatores existem e seguramente que o fator
casa é um dos principais, se não mesmo o principal fator que enraíza o
insucesso e o distanciamento.”.
A minha
experiência reza o contrário: em situação dúbia, atentamos nas dificuldades e
progressos concretos do aluno, no contexto familiar e, quanto a estratégias de
mudança de métodos de ensino e de avaliação, têm-se feito muitas sugestões e
recorrentes apelos ao real e eficaz envolvimento do encarregado de educação no
processo de ensino/aprendizagem. Se os professores, às vezes, desanimam perante
as condições de trabalho, também é certo que dão o seu melhor pelo sucesso dos
alunos. Não querem é ser objeto de pressão excessiva ou ilegítima de diretores,
inspetores ou dos encarregados de educação. E a empatia entre aluno e professor
é um bom fautor do sucesso escolar. E, quando ela não acontece, exige.se
respeito mútuo.
É injusto
considerar os professores enquadrados no “painel de jurados” que “é responsável
por tocar a harpa celestial ou o som estridente do chicote”. Lamento que lhe
tenha acontecido “entrar em conselhos de turma, onde a ‘arena’ estava montada e
era escusado dizer um mas”; ou que,
noutros se procurasse “todo e qualquer motivo para transitar (sic) o aluno, mesmo que o absentismo, o insucesso e a
indisciplina fossem o dia sim, dia sim…”. Só me pergunto: onde estava o poder da palavra e de denúncia que assiste a todo e a
qualquer professor?
Diz o rico que “falta muitas
vezes critério aos conselhos de turma e a sorte está traçada muitas vezes
no início do ano, quando são distribuídos os professores pelas turmas”. É óbvio
que é ao diretor (como
dantes ao conselho executivo ou ao conselho diretivo) que incumbe a distribuição do
serviço docente, mas ao professor continua a assistir o direito e a obrigação
de cidadania de fazer sugestões a que de direito ou a denúncia de situações
graves. Obviamente
que a escola tem projeto educativo e se pauta por uma sólida política
educativa. Não está mesmo à mercê das “vontades/caraterísticas” dos conselhos
de turma nem sujeita “a vontades, impulsos, pequenos atos de vingança ou
paternidade exacerbada”. E quaisquer casos em contrário, a existirem, devem ser
oportunamente denunciados e combatidos. E, a talho de foice, considero que o
palavrão não será em si motivo de suspensão, mas a escola deve educar para
valores de ética e cidadania, que passam pela razoabilidade das linguagens.
Mas tem razão quando assegura:
“A escola não é apenas ‘matéria’, a
escola é sentimento, sentimento esse que orienta as nossas decisões. O fator
humano nunca poderá desaparecer de uma escola, mas este não deve fazer esquecer
o rumo, o projeto, o objetivo da escola.”.
É de apreciar
o estudo
que o Agrupamento
de Escolas de Mangualde fez sobre o impacto que o a retenção ou não
aprovação de alunos teve no sucesso educativo dos seus alunos. Constatou
que “no 1.º ciclo, a retenção no 2.º e 3.º ano escolar até pode ser benéfica”, justificável
até “pela fraca maturidade dos alunos”. Porém, no 2.º e 3.º ciclo, verificou
que “o chumbo nos anos intermédios pouco ou nada melhorava o rendimento escolar
em anos futuros”.
O Agrupamento
de Escolas de Mangualde estudou a sua população escolar e adaptou a sua
estratégia às caraterísticas dos seus alunos. Com efeito, não é justo sentido
tratar por igual o que é claramente diferente, nem ignorar os factos por
crenças ou ideologias pessoais.
***
A avaliação
dos alunos e, por consequência, a declaração de transição/aprovação é
competência da escola. Porém, a escola não funciona em abstrato, mas através
dos seus órgãos. Quem representa, no topo, a escola é o diretor ou quem fizer as
suas vezes. Porém, não é a este órgão que incumbe a declaração escrita
individualmente considerada da não transição ou não aprovação de cada aluno,
bem como a transição ou aprovação. Não é o conselho geral, a quem incumbe a
direção estratégica e não a tomada de decisões individualizadas. O conselho de
departamento curricular ou de grupo disciplinar não abrange a totalidade dos
saberes que são confiados ao aluno ou que ele deve adquirir e desenvolver.
Obviamente que, em nome da escola, o conselho de turma ou o conselho de
docentes, responsável pelo plano de atividades da turma e pela avaliação das
aprendizagens toma as decisões que levam à transição e aprovação dos alunos.
O subscritor
do aludido texto diz que os conselhos de turma não têm critérios. A contrario, recordo que os normativos da
avaliação e a certificação das aprendizagens estabelecem:
“Até ao início do ano letivo, o conselho pedagógico da escola, enquanto
órgão regulador do processo de avaliação das aprendizagens, define, sob
proposta dos departamentos curriculares, os critérios de avaliação, de acordo
com as orientações constantes dos documentos curriculares e outras orientações
gerais do Ministério da Educação. Nos critérios de avaliação deve ser enunciada
a descrição de um perfil de aprendizagens específicas para cada ano e ou ciclo
de escolaridade.
Os critérios de avaliação constituem referenciais comuns na escola, sendo
operacionalizados pelo ou pelos professores da turma. O diretor deve garantir a
divulgação dos critérios de avaliação junto dos diversos intervenientes.” (cf
despacho normativo n.º 1-F/2016, de 5 de abril, art.º 7.º).
É certo que,
às vezes, os critérios definidos são um tanto enviesados, ao limitarem-se a
definir o peso percentual de cada modalidade de avaliação, o que deve passar
por respeitar mais a índole de cada disciplina ou área curricular, limitando-se
o conselho pedagógico a coordenar a definição dos critérios gerais e
específicos de avaliação. Também se perde muito tempo, no conselho de turma, a
justificar classificações negativas, que falam por si, quando se devia gastar
mais tempo em ponderar a não transição ou não aprovação. E o conselho devia ter
mais em conta o juízo de cada professor e não uma atitude às vezes bem
inquisitorial. Mas daí a falar em estados de alma ou atitudes de vingança ou de
paternalismo exacerbado vai enorme distância.
***
Naturalmente,
não quero que volte a escola em que o aluno que tivesse 4 (na escala de 0 a 20) era expulso, não podendo voltar
nesse ano. Também não é linear o que se fazia quando nos conselhos de turma os
professores “inequivocamente atribuíam as
classificações e à 3.ª negativa, se não fosse Português ou Matemática, o aluno
chumbava. Tem de haver sempre a devida ponderação considerando a situação
global do aluno.
Como dantes, a sociedade é dura e fortemente competitiva. Mas a escola
fraca, que diz preparar os alunos para a democracia sem cuidar da dificuldade,
é espelho da fraca autoridade do Estado. Por outro lado, a escola pretende
responder a tudo e isso é humanamente impossível. E os encarregados de
educação, em vez de informarem os professores/diretores de turma do que é
importante para a relação aluno/professor e de acompanharem assiduamente o
processo de ensino/aprendizagem, querem ter os alunos guardados fora de casa o
mais tempo possível e contestam a autoridade do professor. E vemos professores
amedrontados, cheios de problemas de consciência, cheios de meninos com n
problemas do foro psicológico e com a ideia de que o sentimento salva e limpa o
espírito. Depois, avoluma-se a ideia de que os problemas dramáticos dos pais
são mais importantes que a exigência, a aplicação e obrigação do aluno em
responder às dificuldades diárias e aos desafios lançados pelos professores,
programas e regulamentos. É este complexo de fatores que transporta para a
escola o sentimentalismo oco, inútil e antipedagógico, que, qual peste em
pandemia, vai corroendo o ensino e o papel da escola.
A escola de hoje é a escola de todos, mas deve deixar de ser o espaço
onde muitos mal sabem ler escrever ou contar; e deve contribuir para que os
problemas sociais sejam resolvidos, e não sucessivamente adiados, para
facilitar o sucesso escolar e educativo. Não podem jamais em tempo algum
operacionalizar-se tratamentos de cosmética infrutíferos levando a escola a
fazer um serviço tipo padaria com farinha de 3.ª categoria, onde cada fornada é
o espelho do padeiro que, por melhor que seja, dificilmente apresentará pão de
boa qualidade. Há que criar condições sociais para a promoção de melhores
aprendizagens e consequentes resultados. Pactuar com a degradação da escola é
impróprio da profissão docente. Para produzir bom pão tem de haver bom solo.
Estado que insista na produção de cereal em terreno pedregoso, jamais boa
colheita e boa fornada. Depois, é preciso enaltecer as pessoas que aprendem que
na vida é necessário batalhar para alcançar objetivos, convencidas de que se
alcança tudo com esforço. Não podemos resignar-nos a criar um país de
ignorantes diplomados, mais fáceis de governar/dominar por falta de espírito
crítico, de opinião.
Vamos ao sempre tão eloquente exemplo da Finlândia e já sabemos como se
faz lá. Mas, para isso, é preciso dinheiro para mais professores que façam o
acompanhamento dos alunos, dispensar os docentes do excesso de tarefas
administrativas e flexibilizar currículo e organização. Sem o que resta o
facilitismo, a falsa compaixão e o demagógico discurso do pedagogismo.
***
Alguém deu
conta dum alerta para a situação de existência de alunos de cursos vocacionais
que, apesar de terem mais de 70% dos módulos concluídos, não atingem os 100%. E
100% é o patamar percentual necessário para que os alunos possam matricular-se
no ensino secundário profissional, para os restantes, a saída era um ensino
secundário vocacional, que foi extinto.
O ano
passado, quem estava no último ano do curso vocacional do ensino básico, podia integrar
a turma que vinha a seguir, o que agora é impossível, pois não foram abertas
novas turmas. Surge assim o vazio. Se os alunos não obtiverem 100% de sucesso
não podem transitar para o ensino secundário, apesar de terem o número de módulos suficientes para o efeito e que lhes
foi prometido pela tutela.
O alerta aponta o dedo ao ME e diretores, que pressionam os professores a
darem 100% de sucesso aos alunos, já que a
alternativa não existe. Estes alunos ficariam na terra de ninguém, pois para o
ensino regular têm de fazer exames de acesso, o que, em geral, não conseguem; e,
como já têm o 9.º ano, não podem frequentar mais o 3.º ciclo.
Dirão alguns
que a pressão é legítima, que os alunos não têm culpa. Todavia, o princípio de
equidade deve ser respeitado. Já não basta o facilitismo inerente a estes cursos,
que obrigava todos os alunos a transitarem para o 2.º ano, mesmo que não
fizessem um único módulo. Agora o que importa é acabar com isto rapidamente. Este
fim de cena dos cursos vocacionais é como o jogo em que uma equipa está a ser
goleada, faltando pouco para acabar. É penoso, mas quem atribui notas tem de
ser profissional.
Até existe,
pelos vistos, um documento, não assinado, que apela de forma camuflada ao
sucesso a todo o custo, estribado no princípio de que “a escola tem autonomia e tem de resolver a
questão”. Será que os diretores baixarão a cabeça ordenando o
desentupimento do sistema?
Assim, a
tónica deveria ser colocada no erro da extinção dos Cursos Vocacionais
Secundários. Com uma escolaridade obrigatória de 12 anos, é imprescindível a
existência de um percurso secundário aligeirado para alunos que rejeitam um
currículo predominantemente académico.
Tandem, quo vadis, schola?
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