domingo, 4 de junho de 2017

A fé cristã ou se alimenta e comunica ou estiola

A frase plasmada em epígrafe decorre, do meu ponto de vista, da afirmação papal, “Este dia convida-nos a refletir novamente sobre a missão no coração da fé cristã”, inserida na mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2017 que Sua Santidade subscreveu hoje, Solenidade de Pentecostes.
Na verdade, Francisco elegeu como tema deste Dia Mundial das Missões “A missão no coração da fé cristã”, firmado no princípio axiomático de que “a Igreja é, por sua natureza, missionária” e que, se assim não fosse, deixaria de ser “a Igreja de Cristo” que, “não passando duma associação entre muitas outras”, veria rapidamente “exaurir-se a sua finalidade e desapareceria”.
É Jesus, que este Papa, na esteira do Beato Paulo VI, designa como “o primeiro e maior evangelizador” (Evangelii nuntiandi, 7), que “nos envia a anunciar o Evangelho do amor de Deus Pai, com a força do Espírito Santo”. Com base neste mandato, devemos sentir-nos convidados à autointerrogação sobre algumas das questões que tocam a própria identidade cristã e as responsabilidades de crentes “num mundo baralhado com tantas quimeras, ferido por grandes frustrações e dilacerado por numerosas guerras fratricidas”, a abater-se injustamente sobretudo sobre “os inocentes”. E Francisco pretende dar resposta a três questões:
Qual é o fundamento da missão?
Qual é o coração da missão?
Quais são as atitudes vitais da missão?
***

Num primeiro momento, apresenta-se o poder transformador do Evangelho como fundamento da missão, pelo que a missão da Igreja, por força deste poder revolucionário, se destina a todos os homens que estejam abertos ao transcendente e despidos da síndrome da autossuficiência, ou seja as pessoas “de boa vontade”, expressão utilizada pelo Papa São João XXIII.
O Cristo Redentor, enquanto “Caminho, Verdade e Vida” (cf Jo 14,6), tornou-se “uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante, porque contém e oferece uma vida nova”. É “a vida de Cristo ressuscitado”. É Caminho que havemos de seguir “com confiança e coragem” para fazermos a “experiência da sua Verdade e recebermos “a sua Vida”. E esta vida é a “plena comunhão com Deus Pai na força do Espírito Santo”, que nos livra de todo o egoísmo se se torna “fonte de criatividade no amor”. É o Pai quem deseja esta transformação existencial dos filhos e filhas, “transformação que se expressa como culto em espírito e verdade” (cf Jo 4,23-24), isto é, vida animada pelo Espírito à imitação do Filho para glória do Pai, uma vez que “a glória de Deus é o homem vivo”. Assim, o Evangelho transformador “torna-se palavra viva e eficaz” a realizar o que proclama, ou seja, Cristo, que “Se faz carne em cada situação humana” (cf Jo 1,14).
***
Num segundo momento, o Pontífice glosa o tema “a missão e o kairós de Cristo”. Na verdade, a missão da Igreja não se confina à “propagação duma ideologia religiosa” ou à “proposta duma ética sublime”. Para isso, não faltam neste mundo “movimentos capazes de apresentar ideais elevados ou expressões éticas notáveis”. Porém, pela missão da Igreja “é Jesus Cristo que continua a evangelizar e agir”. É por isso, que a missão “representa o kairós, o tempo propício da salvação na história”. Pela proclamação do Evangelho, Cristo fica “nosso contemporâneo, consentindo à pessoa que O acolhe com fé e amor experimentar a força transformadora do seu Espírito de Ressuscitado, que fecunda o ser humano e a criação”, como a chuva faz à terra, ou como refere a Evangelii gaudium (EG), no seu n.º 276:
“A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual.”.
Já Bento XVI referia na encíclica Deus caritas est, n.º1:
“Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Na verdade, insiste o Papa Francisco, “o Evangelho é uma Pessoa, que continuamente Se oferece e, a quem A acolhe com fé humilde e operosa, continuamente convida a partilhar a sua vida através duma participação efetiva no seu mistério pascal de morte e ressurreição”. E é pelo Batismo que o Evangelho se torna “fonte de vida nova, liberta do domínio do pecado, iluminada e transformada pelo Espírito Santo”; é pela Confirmação que se torna “unção fortalecedora” que, graças ao Espírito, “indica caminhos e estratégias novas de testemunho e proximidade”; e é pela Eucaristia que se torna “alimento do homem novo” ou, no dizer de Inácio de Antioquia, “remédio de imortalidade”.
Num mundo que “tem uma necessidade essencial do Evangelho”, Jesus continua, através da Igreja, “a sua missão de Bom Samaritano, curando as feridas sanguinolentas da humanidade, e a sua missão de Bom Pastor, buscando sem descanso quem se extraviou por veredas enviesadas e sem saída”. E, entre as muitas e significativas experiências que testemunham visivelmente “a força transformadora do Evangelho”, Francisco refere o gesto dum estudante “dinka” que, “à custa da própria vida”, protegeu “um estudante da tribo ‘nuer’ que ia ser assassinado”. E recorda uma “Celebração Eucarística em Kitgum, no norte do Uganda – então ensanguentado pelas atrocidades dum grupo de rebeldes –, quando um missionário levou as pessoas a repetirem as palavras de Jesus na cruz: ‘Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?’ (Mc 15,34)”. E diz o Papa que podemos pensar em tantos testemunhos “de como o Evangelho ajuda a superar os fechamentos, os conflitos, o racismo, o tribalismo, promovendo por todo o lado a reconciliação, a fraternidade e a partilha entre todos”.
***
Num terceiro momento, cataloga as atividades fundamentais da missão numa espiritualidade de êxodo, peregrinação e exílio contínuos. É a igreja em saída de que fala recorrentemente o Papa. Tem ela de sair da sua comodidade com a coragem de atingir as periferias necessitadas da luz do Evangelho (cf EG, 20). Esperam-na os “desertos da vida”, as “experiências de fome e sede de verdade e justiça” (É a Igreja das Bem-aventuranças!) – sítios por onde a Igreja através dos seus membros tem de viver numa postura de peregrinação contínua, sentindo-se numa situação de exílio contínuo de modo que “o homem sedento de infinito” sinta “a sua condição de exilado a caminho da pátria definitiva, pendente entre o ‘já’ e o ‘ainda não’ do Reino dos Céus”. É o sentido de missão que diz à Igreja que ela “não é fim em si mesma, mas instrumento e mediação do Reino”. Por isso, se se armar em “Igreja autorreferencial”, comprazendo-se nos “sucessos terrenos”, deixa a sua condição de “Igreja de Cristo, seu corpo crucificado e glorioso”.
Por isso, Francisco adverte-nos da preferência por “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, 49). É a Igreja movida pela fé e não pela sede da riqueza, do poder ou do prestígio; e que não se deslumbra consigo mesma, mas apenas com o rosto do seu Senhor.
Sendo os jovens “a esperança da missão” e continuando a “pessoa de Jesus e a Boa Nova proclamada por Ele” a fascinar “muitos jovens”, o Pastor argentino aproveita o ensejo para apontar o próximo Sínodo dos Bispos em torno do tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional” como “uma ocasião providencial para envolver os jovens na responsabilidade missionária comum, que precisa da sua rica imaginação e criatividade”.
Será com jovens que “buscam percursos onde possam concretizar a coragem e os ímpetos do coração ao serviço da humanidade” que  Jesus Cristo irá “a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra”. E são já “muitos os jovens” – felizes “caminheiros da fé” – a solidarizarem-se “contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e voluntariado”. 
E o Papa releva o papel das OPM (Obras Missionárias Pontifícias) como “instrumento precioso para suscitar em cada comunidade cristã o desejo de sair das próprias fronteiras e seguranças, fazendo-se ao largo a fim de anunciar o Evangelho a todos”. Cabe-lhes promover, “através duma espiritualidade missionária profunda vivida dia a dia e dum esforço constante de formação e animação missionária”, envolver “adolescentes, jovens, adultos, famílias, sacerdotes, religiosos e religiosas, bispos para que, em cada um, cresça um coração missionário”. O Dia Mundial das Missões, iniciativa da Obra da Propagação da Fé, será “a ocasião propícia para o coração missionário das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da evangelização”.
Por fim, vem o apelo a que “façamos missão inspirando-nos em Maria, Mãe da evangelização”, pois Ela, pelo sim inefável da sua disponibilidade, acolheu, “movida pelo Espírito”, a força do “Verbo da vida na profundidade da sua fé humilde”. Por isso, há de ajudar-nos a dizer “sim” à “urgência de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo”, obtendo-nos “um novo ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a morte” e há de interceder para que tenhamos a “santa ousadia” da busca de novas vias de chegada do dom da salvação a todos.
***
Sirva esta breve, mas estupenda mensagem pontifícia para estimular o esforço de ultrapassagem da falha de reflexão da Igreja portuguesa em torno da problemática da juventude em vésperas do Sínodo dos Bispos e consequente mobilização da juventude que o Presidente da Comissão Episcopal Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais muito oportunamente denunciou na 13.ª edição da Jornada Nacional da Pastoral da Cultura a 3 de junho pp. E que seja mais um meio de apreciação positiva da preocupação do Papa Francisco para com toda a Igreja na sua atitude de Igreja em saída, na pluralidade de vocações missionárias ante a multiplicidade das situações de miséria, exploração, descarte e coisificação das pessoas e contra as estruturas sociais e económicas de pecado, destruição e morte.
Renuncie-se de vez à fé que se encasule e não tenha efeitos na sociedade dos homens e das mulheres; diga-se não ao angelismo despregado do mundo; ultrapasse-se a preguiça e o comodismo tanto como o trabalho denodado sem espírito e o ativismo sem fé e sem caridade.
Se a missão é o coração da Igreja, a fé sem comunicação e sem obras estiola e morre.

2017.06.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário