A frase plasmada em epígrafe decorre, do meu
ponto de vista, da afirmação papal, “Este dia convida-nos a refletir novamente sobre a missão no coração da fé cristã”, inserida
na mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2017 que Sua Santidade subscreveu
hoje, Solenidade de Pentecostes.
Na verdade,
Francisco elegeu como tema deste Dia
Mundial das Missões “A missão no coração da fé cristã”, firmado no
princípio axiomático de que “a Igreja é, por sua natureza, missionária”
e que, se assim não fosse, deixaria de ser “a Igreja de Cristo” que, “não
passando duma associação entre muitas outras”, veria rapidamente “exaurir-se a
sua finalidade e desapareceria”.
É Jesus, que este Papa, na esteira do Beato Paulo VI, designa
como “o primeiro e maior evangelizador” (Evangelii nuntiandi, 7),
que “nos envia a anunciar o Evangelho do amor de Deus Pai, com a força do
Espírito Santo”. Com base neste mandato, devemos sentir-nos convidados à autointerrogação sobre algumas das questões
que tocam a própria identidade cristã e as responsabilidades de crentes “num
mundo baralhado com tantas quimeras, ferido por grandes frustrações e
dilacerado por numerosas guerras fratricidas”, a abater-se injustamente sobretudo
sobre “os inocentes”. E Francisco pretende dar resposta a três questões:
Qual é o fundamento da missão?
Qual é o coração da missão?
Quais são as atitudes
vitais da missão?
***
Num primeiro momento, apresenta-se o poder transformador do Evangelho como fundamento da missão, pelo que a missão da Igreja, por força deste poder
revolucionário, se destina a todos os homens que estejam abertos ao
transcendente e despidos da síndrome da autossuficiência, ou seja as pessoas “de
boa vontade”, expressão utilizada pelo Papa São João XXIII.
O Cristo Redentor, enquanto “Caminho, Verdade e Vida” (cf Jo 14,6), tornou-se “uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante,
porque contém e oferece uma vida nova”. É “a vida de Cristo ressuscitado”. É Caminho que havemos de seguir “com
confiança e coragem” para fazermos a “experiência da sua Verdade” e recebermos “a
sua Vida”. E esta vida é a “plena comunhão
com Deus Pai na força do Espírito Santo”, que nos livra de todo o egoísmo se se
torna “fonte de criatividade no amor”. É o Pai quem deseja esta transformação
existencial dos filhos e filhas, “transformação que se expressa como culto em
espírito e verdade” (cf Jo 4,23-24), isto é, vida animada pelo Espírito
à imitação do Filho para glória do Pai, uma vez que “a glória de Deus é o homem
vivo”. Assim, o Evangelho transformador “torna-se palavra viva e eficaz” a
realizar o que proclama, ou seja, Cristo, que “Se faz carne em cada situação humana”
(cf Jo 1,14).
***
Num segundo momento, o Pontífice glosa o tema “a missão e o kairós de
Cristo”. Na verdade, a missão da Igreja não se confina à “propagação duma ideologia religiosa”
ou à “proposta duma ética sublime”. Para isso, não faltam neste mundo “movimentos
capazes de apresentar ideais elevados ou expressões éticas notáveis”. Porém,
pela missão da Igreja “é Jesus Cristo que continua a evangelizar e agir”. É por
isso, que a missão “representa o kairós,
o tempo propício da salvação na história”. Pela proclamação do Evangelho, Cristo
fica “nosso contemporâneo, consentindo à pessoa que O acolhe com fé e amor
experimentar a força transformadora do seu Espírito de Ressuscitado, que
fecunda o ser humano e a criação”, como a chuva faz à terra, ou como refere a Evangelii
gaudium (EG), no seu n.º 276:
“A sua ressurreição não é algo do
passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo
morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força
sem igual.”.
Já Bento XVI
referia na encíclica Deus caritas est, n.º1:
“Ao início do ser cristão, não há uma
decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma
Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Na verdade, insiste
o Papa Francisco, “o Evangelho é uma Pessoa, que continuamente Se oferece e, a
quem A acolhe com fé humilde e operosa, continuamente convida a partilhar a sua
vida através duma participação efetiva no seu mistério pascal de morte e
ressurreição”. E é pelo Batismo
que o Evangelho se torna “fonte de vida nova, liberta do domínio do pecado,
iluminada e transformada pelo Espírito Santo”; é pela Confirmação que se torna “unção
fortalecedora” que, graças ao Espírito, “indica caminhos e estratégias novas de
testemunho e proximidade”; e é pela Eucaristia que se torna “alimento
do homem novo” ou, no dizer de Inácio de Antioquia, “remédio de imortalidade”.
Num mundo que “tem uma necessidade essencial do Evangelho”,
Jesus continua, através da Igreja, “a sua missão de Bom Samaritano, curando as
feridas sanguinolentas da humanidade, e a sua missão de Bom Pastor, buscando sem
descanso quem se extraviou por veredas enviesadas e sem saída”. E, entre as
muitas e significativas experiências que testemunham visivelmente “a força
transformadora do Evangelho”, Francisco refere o gesto dum estudante “dinka” que, “à custa da própria vida”,
protegeu “um estudante da tribo ‘nuer’ que ia ser assassinado”. E recorda uma “Celebração
Eucarística em Kitgum, no norte do Uganda – então ensanguentado pelas
atrocidades dum grupo de rebeldes –, quando um missionário levou as pessoas a
repetirem as palavras de Jesus na cruz: ‘Meu
Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?’ (Mc 15,34)”. E diz o Papa que podemos pensar em tantos
testemunhos “de como o Evangelho ajuda a superar os fechamentos, os conflitos,
o racismo, o tribalismo, promovendo por todo o lado a reconciliação, a fraternidade
e a partilha entre todos”.
***
Num terceiro momento,
cataloga as atividades fundamentais da missão numa espiritualidade de êxodo, peregrinação e exílio contínuos. É a igreja em saída de que fala recorrentemente
o Papa. Tem ela de sair da sua comodidade com a coragem de atingir as
periferias necessitadas da luz do Evangelho (cf EG, 20). Esperam-na
os “desertos da vida”, as “experiências de fome e sede de verdade e justiça” (É a Igreja
das Bem-aventuranças!) – sítios por onde a Igreja através dos seus membros
tem de viver numa postura de peregrinação
contínua, sentindo-se numa situação de exílio
contínuo de modo que “o homem sedento de infinito” sinta “a sua condição de exilado a caminho
da pátria definitiva, pendente entre o ‘já’ e o ‘ainda não’ do Reino dos Céus”.
É o sentido de missão que diz à Igreja que ela “não é fim em si mesma, mas
instrumento e mediação do Reino”. Por isso, se se armar em “Igreja
autorreferencial”, comprazendo-se nos “sucessos terrenos”, deixa a sua condição
de “Igreja de Cristo, seu corpo crucificado e glorioso”.
Por isso,
Francisco adverte-nos da preferência por “uma Igreja acidentada, ferida e
enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e
a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, 49). É a Igreja movida pela fé e não pela sede da riqueza,
do poder ou do prestígio; e que não se deslumbra consigo mesma, mas apenas com
o rosto do seu Senhor.
Sendo os
jovens “a esperança da missão” e continuando a “pessoa de Jesus e a Boa Nova
proclamada por Ele” a fascinar “muitos jovens”, o Pastor argentino aproveita o
ensejo para apontar o próximo Sínodo dos Bispos em torno do tema “Os jovens,
a fé e o discernimento vocacional” como “uma ocasião providencial para
envolver os jovens na responsabilidade missionária comum, que precisa da sua
rica imaginação e criatividade”.
Será com
jovens que “buscam percursos onde possam concretizar a coragem e os ímpetos do
coração ao serviço da humanidade” que Jesus Cristo irá “a
cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra”. E são já “muitos os jovens”
– felizes “caminheiros da fé” – a solidarizarem-se “contra os males do mundo,
aderindo a várias formas de militância e voluntariado”.
E o Papa
releva o papel das OPM (Obras
Missionárias Pontifícias)
como “instrumento precioso para suscitar em cada comunidade cristã o desejo de
sair das próprias fronteiras e seguranças, fazendo-se ao largo a fim de
anunciar o Evangelho a todos”. Cabe-lhes promover, “através duma
espiritualidade missionária profunda vivida dia a dia e dum esforço constante
de formação e animação missionária”, envolver “adolescentes, jovens, adultos,
famílias, sacerdotes, religiosos e religiosas, bispos para que, em cada um,
cresça um coração missionário”. O Dia
Mundial das Missões, iniciativa da Obra
da Propagação da Fé, será “a ocasião propícia para o coração missionário
das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e
com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da
evangelização”.
Por fim, vem o apelo a que “façamos missão inspirando-nos em
Maria, Mãe da evangelização”, pois Ela, pelo sim inefável da sua
disponibilidade, acolheu, “movida pelo Espírito”, a força do “Verbo da vida na
profundidade da sua fé humilde”. Por isso, há de ajudar-nos a dizer “sim” à “urgência
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo”, obtendo-nos “um novo
ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a
morte” e há de interceder para que tenhamos a “santa ousadia” da busca de novas
vias de chegada do dom da salvação a todos.
***
Sirva esta
breve, mas estupenda mensagem pontifícia para estimular o esforço de ultrapassagem
da falha de reflexão da Igreja portuguesa em torno da problemática da juventude
em vésperas do Sínodo dos Bispos e consequente mobilização da juventude que o Presidente da Comissão Episcopal Cultura, Bens
Culturais e Comunicações Sociais muito oportunamente denunciou na 13.ª
edição da Jornada Nacional da Pastoral da Cultura a 3 de junho pp. E que seja
mais um meio de apreciação positiva da preocupação do Papa Francisco para com
toda a Igreja na sua atitude de Igreja em saída, na pluralidade de vocações
missionárias ante a multiplicidade das situações de miséria, exploração,
descarte e coisificação das pessoas e contra as estruturas sociais e económicas
de pecado, destruição e morte.
Renuncie-se de vez à fé que se encasule e não tenha efeitos na sociedade
dos homens e das mulheres; diga-se não ao angelismo despregado do mundo; ultrapasse-se
a preguiça e o comodismo tanto como o trabalho denodado sem espírito e o
ativismo sem fé e sem caridade.
Se a missão é o coração da Igreja, a fé sem comunicação e sem obras
estiola e morre.
2017.06.04 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário