Não se trata dum departamento qualquer do Estado, mas do
serviço público de educação que se deve pautar pelo figurino de educação que
promove em duas vertentes: a do conhecimento e desenvolvimento de capacidades;
e a dos valores, espelhados em atitudes e comportamentos norteados pela ética,
por mínima que seja.
***
Começando pela segunda vertente, é certo e sabido, pelas
redes sociais e pela comunicação social convencional, que houve uma fuga de
informação sobre o conteúdo da prova do exame de Português (639), na 1.ª fase, a que se sujeitou a maior parte dos alunos,
sendo poucos os que se submeteram à prova 239 (alunos com
deficiência auditiva de grau severo ou profundo) e à prova 94/839 (Prova
Final/Prova de Exame Final Nacional de Português Língua Não Materna).
Do meu ponto de vista, porque o universo de alunos que podem
ter beneficiado do conhecimento prévio dos conteúdos veiculados será muito
difícil de calcular, a prova 639 deveria ser anulada quanto antes, para evitar
incómodos maiores. É injusto, sem dúvida, mas situações excecionais merecem
postura excecional. Por motivos excecionais, tivemos excecionalmente as
fronteiras encerradas; no verão de 2016, a A1 esteve cortada ao trânsito nos
dois sentidos horas e horas e as pessoas (jovens
e donzelas, velhos e crianças) tiveram de aguentar a espera e o calor. Foi incómodo e
injusto, mas teve de ser. Porém, com agrado da CONFAP e de largos setores de
opinião, no dia 28, o Ministro da Educação garantiu que o exame de Português do
12.º ano, cuja eventual fuga de informação em investigação, não vai ser
anulado. Segundo Tiago Brandão Rodrigues, caso se venha a confirmar que houve fuga
de informação, “o Ministério agirá civil, disciplinar e criminalmente contra o
seu autor ou autores”.
O que espanta é que o Ministro fale em eventual fuga de
informação, quando os factos não se discutem. A fuga existiu e foi denunciada
ao ME (Ministério da Educação). O que tem de ser investigado é a autoria do facto e a
extensão dos possíveis beneficiários. Mas o governante declarou aos
jornalistas, à margem da sessão de entrega de prémios do concurso “Conta-nos uma história!”, que decorreu
na Maia, distrito do Porto, no dia 28:
“Se alguém saiu beneficiado por essa fuga de
informação, de forma comprovada, obviamente que sofrerá as consequências que
estão inscritas nos regulamentos”.
E disse mais:
“Não está em cima da mesa, nem esteve e nem
foi equacionada, a possível anulação da prova”.
Ora, perante uma fraude todas as hipóteses devem ser
equacionadas, bem como num processo de investigação. Todavia, para Brandão
Rodrigues, “face a uma denúncia que existiu, fez-se o que devia ser feito, o
que tinha que ser feito” e o ME não intervirá na investigação que decorre
relativamente a uma alegada fuga de informação sobre os conteúdos da prova,
porque “esta é uma questão que não pode nem deve merecer posições
facilitistas ou posições precipitadas”. E acrescentou que, neste momento, é importante
“transmitir aos alunos que têm de, com serenidade e tranquilidade, continuar a
sua época de exames”. E a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou, no dia 23, que a eventual fuga de informação do
exame nacional de Português “deu origem a um inquérito” e “o mesmo encontra-se
em investigação no DIAP (Departamento de
Investigação e Ação Penal) de Lisboa”. Com efeito, em resposta à Lusa, a PGR disse que se confirmava “a
receção da participação do IAVE [Instituto
de Avaliação Educativa], a qual deu origem a um inquérito” e que o mesmo se
encontrava em “investigação no DIAP de Lisboa”.
Entretanto, jornal Expresso teve
acesso ao áudio que circulou nas redes sociais alguns dias antes do exame
nacional e que revelava o que ia sair na prova. Segundo o dito áudio, a
fuga partiu da “presidente de um sindicato de professores”. Na gravação,
feita por uma aluna que não se identifica, pode ouvir-se a estudante a dizer:
“Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é
presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa
mesmo, mesmo, mesmo só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século
XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive”.
E ainda:
“Pediu para ela treinar também uma composição sobre a
importância da memória e outra sobre a importância dos vizinhos no combate à
solidão”.
Segundo o Expresso, a situação
foi denunciada ao ME por Miguel Bagorro, professor na Escola Secundária Luísa
de Gusmão, em Lisboa, que soube da gravação através dum aluno a quem dava
explicações de Português. E a divulgação daquele áudio levou o IAVE a
anunciar que iria remeter para a IGEC (Inspeção-Geral
de Educação) e para o Ministério Público informações sobre as alegadas
fugas de informação, que teriam acontecido antes da realização do exame
nacional do 12.º ano, que decorreu no dia 19.
Nos termos do regulamento dos exames nacionais, publicado em
“Diário da República”, “a suspeita de fraude que venha a verificar-se
posteriormente à realização de qualquer prova implica a suspensão da eventual
eficácia dos documentos entretanto emitidos”, nomeadamente das classificações
que vierem a ser atribuídas. Mais refere o documento que deve ser elaborado “um
relatório fundamentado em ordem à possível anulação da prova”.
Porém, o ME não conseguirá furtar-se à polémica. Como é que se vai
apurar que o aluno A ou B soube do conteúdo da fuga de informação? E como se
prova que beneficiou do conhecimento prévio daqueles conteúdos? Se o ME insiste
em embarcar na judicialização de escola e exame, terá imensas dificuldades em
singrar por aí. O advogado Vasco Marques Correia explicou ao Expresso que o ME se arrisca a enfrentar
milhares de queixas em tribunal por parte de alunos que venham a sentir-se
lesados. Por esse lado, o aluno pode alegar que não conheceu que se tratava do
poema XXXVI (de O
Guardador de Rebanhos) e que a composição sobre a memória não era a única hipótese
aventada. Mas, em 3 dias, não era possível ler todos os poemas de Alberto
Caeiro e fazer uma composição sobre memória ou sobre solidão? Eram 110 pontos (11 valores).
Ora, que houve atropelo à ética houve e cabe à escola promover
atitudes éticas e corrigir pedagogicamente as suas contrafações e desvios, o
que não se faz por via judicial, que leva tempo e exige provas iniludíveis, sujeitas
a todos os esquemas inerentes às batalhas jurídicas.
Assim, segundo Marques Correia ao Expresso Diário, o ME, ao decidir pela não anulação do exame e pela garantia de que “só os alunos que
comprovadamente tenham beneficiado com a alegada fuga de informação” serão
penalizados, enfrentará a chamada “prova diabólica” (‘diabolica probatio’), de que se fala em Direito. Com efeito,
identificar todos esses estudantes e demonstrar que tiraram vantagem daquela
informação é praticamente impossível.
É, de facto, muito difícil sustentar juridicamente a
anulação da prova a alguns alunos. Seria preciso provar que o aluno acedeu a
uma informação confidencial a que não tinha direito de aceder e que
objetivamente beneficiou com isso, colocando-se numa situação de vantagem em
relação aos colegas. Ou seja, não bastava mostrar que teve acesso à informação.
Era preciso que tivesse agido em conformidade, orientando o estudo para aquelas
matérias.
Além disso, como é que pensa o ME chegar aos autores
através da pesquisa em redes sociais, a não ser que, colocando todas as
hipóteses, se passem a pente fino serviços do IAVE, da editorial do ME e das
próprias forças de segurança. Será possível e viável? Tenho dúvidas.
No dia 29, deu-se conta de furto de granadas (Quantas?) e munições de 9mm (Quantas?). Mas o Ministro da Defesa Nacional não veio falar em
eventual furto, mas em caso grave e crime muito profissional. Há ministros e ministros… mas era
material de guerra e não exames de Português. Como é que eu não percebi logo!
***
Abordando agora a primeira das vertentes acima referenciadas,
está em causa já não só a ética dos valores, mas também a do conhecimento. E o
IAVE tem sido useiro e vezeiro nisso, como se pôde ver pelos exemplos que já
apresentei alhures. E, tratando-se duma entidade tornada independente – pensava
eu que da hierarquia do ME, mas pelos vistos também independente da ciência –, Sua
Excelência o Ministro não teria que responder pelo IAVE. Porém, veio considerar
que houve “uma diferença de opinião” entre o IAVE e a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática) quanto a
critérios de classificação do exame de Matemática do 9.º ano, já ultrapassada. Disse
Sua Excelência aos jornalistas:
“O Instituto de Avaliação Educativa, que organiza todo o
processo de exames e provas a nível nacional, já prestou um esclarecimento
sobre o assunto. É mesmo isso, uma diferença de opinião, mas isso está sanado e
os esclarecimentos já foram prestados”.
Está em causa o item 14 (no 2.º
caderno) da referida prova: Fatoriza
o polinómio x2 - 4. Qualquer antigo aluno de
Matemática deste nível sabe que se trata da diferença
de quadrados cuja fatorização se exprime num monómio constituído pela
multiplicação da diferença dos dois elementos (x e 4) pela soma dos mesmos: (x – 2)
(x + 2);
ou, atendendo à propriedade comutativa: (x
+ 2) (x – 2). Nunca será aceitável
uma valorização de peso (75% – 3 pontos em 4) para uma solução falsa, como o
é: x – 2 x x + 2. Quando muito, do meu ponto de
vista, mereceria um ponto por o aluno ter identificado o caso notável da
diferença de quadrados.
A SPM denunciou a existência dum erro na proposta de correção
do exame do 9.º ano à disciplina, realizado por quase 90 mil alunos finalistas
do ensino básico, lamentando “verificar que, nos critérios de correção
publicados pelo IAVE [Instituto de Avaliação Educativa], no item 14 sejam
atribuídos 75% da cotação a uma resposta integralmente errada”. E o IAVE
esclareceu que “nada existe de errado” nos critérios de classificação do exame
de Matemática, estando em conformidade com o previsto, ao contrário do que
afirma a SPM.
Em seu comunicado, o IAVE esclarece que “o objetivo do item
14 era verificar se os alunos identificavam um dos casos notáveis da
multiplicação de polinómios” e justificando ainda:
“A resposta referida pela SPM como ‘integralmente errada’
evidencia essa identificação, embora esteja escrita de modo formalmente
incorreto, por omissão dos parêntesis. Como tal, e de acordo com os critérios
gerais relativos a respostas restritas, onde se indica que a apresentação de
expressões incorretas do ponto de vista formal está sujeita à desvalorização de
um ponto, foi este o procedimento seguido.”.
Primeiro, não se trata só do objetivo de encontrar um caso notável.
Se o fosse, a questão deveria ser formulada de outro modo. Mas a frase
imperativa é “fatoriza”. Na resposta valorizada a 75% não há fatorização, mas
fica evidente a existência de polinómio com três membros. Segundo, não se trata
de expressão incorreta só do ponto de vista formal, mas sobretudo de uma
resposta falsa em termos de conteúdo.
Também a Prova Final
de Português (91)
do 9.º ano oferece uma joia curiosa.
O
GRUPO V tem o seguinte enunciado:
Seleciona
uma figura pública feminina, portuguesa ou estrangeira, que, do teu ponto de
vista, tenha um papel marcante no desporto, na música, na ciência ou na
literatura.
Escreve
um texto de opinião bem estruturado em que: apresentes a figura selecionada; fundamentes
a tua escolha em, pelo menos, três razões; dês um exemplo de uma iniciativa que
pudesse ser criada para homenagear essa figura pública.
Deves
escrever entre 160 e 240 palavras.
Não
se conhece posição pública do IAVE que desdiga dos critérios de correção e
classificação estabelecidos. Porém, como é sabido, a escolha de alguns recaiu
em Cristiano Ronaldo, que não corresponde aos termos basilares do estado da
questão “uma figura pública feminina”.
É fácil a perceção do escopo de quem organizou a prova: situá-la no debate da
igualdade de género.
Ora,
tanto quanto se sabe, em resposta a dúvidas dos professores classificadores, o
IAVE recomenda ou aceita que haja contemporização porque há outros aspetos a
considerar, os alunos podem ter apreendido o essencial, etc. etc.
***
Posto
isto, interrogo-me: para quê tanto rigor na organização e prestação das provas?
Que valores é que o IAVE defende? Que importância dá ao conhecimento? A sua
missão mais importante será homologar ou ratificar as imprecisões, as
distrações ou as confusões? Não constituirá um mau exemplo a seguir por alunos
e professores?
Não
me apraz ver o ME ou algum departamento ligado à educação e ensino numa fase
pós-científica, sobretudo se ela corporizar o nacional-porreirismo ou o “laissez fiare, laissez passer”. Preferia
o culto da democracia do conhecimento e dos valores em vez da sujeição à ditadura
de situação a redundar no relativismo científico e ético. Deus lhes perdoe, que é quem tudo pode.
2017.06.29 – Louro de Carvalho
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