sexta-feira, 30 de junho de 2017

Ministério da Educação embarca na ditadura do relativismo de situação

Não se trata dum departamento qualquer do Estado, mas do serviço público de educação que se deve pautar pelo figurino de educação que promove em duas vertentes: a do conhecimento e desenvolvimento de capacidades; e a dos valores, espelhados em atitudes e comportamentos norteados pela ética, por mínima que seja.
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Começando pela segunda vertente, é certo e sabido, pelas redes sociais e pela comunicação social convencional, que houve uma fuga de informação sobre o conteúdo da prova do exame de Português (639), na 1.ª fase, a que se sujeitou a maior parte dos alunos, sendo poucos os que se submeteram à prova 239 (alunos com deficiência auditiva de grau severo ou profundo) e à prova 94/839 (Prova Final/Prova de Exame Final Nacional de Português Língua Não Materna).
Do meu ponto de vista, porque o universo de alunos que podem ter beneficiado do conhecimento prévio dos conteúdos veiculados será muito difícil de calcular, a prova 639 deveria ser anulada quanto antes, para evitar incómodos maiores. É injusto, sem dúvida, mas situações excecionais merecem postura excecional. Por motivos excecionais, tivemos excecionalmente as fronteiras encerradas; no verão de 2016, a A1 esteve cortada ao trânsito nos dois sentidos horas e horas e as pessoas (jovens e donzelas, velhos e crianças) tiveram de aguentar a espera e o calor. Foi incómodo e injusto, mas teve de ser. Porém, com agrado da CONFAP e de largos setores de opinião, no dia 28, o Ministro da Educação garantiu que o exame de Português do 12.º ano, cuja eventual fuga de informação em investigação, não vai ser anulado. Segundo Tiago Brandão Rodrigues, caso se venha a confirmar que houve fuga de informação, “o Ministério agirá civil, disciplinar e criminalmente contra o seu autor ou autores”. 
O que espanta é que o Ministro fale em eventual fuga de informação, quando os factos não se discutem. A fuga existiu e foi denunciada ao ME (Ministério da Educação). O que tem de ser investigado é a autoria do facto e a extensão dos possíveis beneficiários. Mas o governante declarou aos jornalistas, à margem da sessão de entrega de prémios do concurso “Conta-nos uma história!”, que decorreu na Maia, distrito do Porto, no dia 28:
Se alguém saiu beneficiado por essa fuga de informação, de forma comprovada, obviamente que sofrerá as consequências que estão inscritas nos regulamentos”.
E disse mais:
Não está em cima da mesa, nem esteve e nem foi equacionada, a possível anulação da prova”.
Ora, perante uma fraude todas as hipóteses devem ser equacionadas, bem como num processo de investigação. Todavia, para Brandão Rodrigues, “face a uma denúncia que existiu, fez-se o que devia ser feito, o que tinha que ser feito” e o ME não intervirá na investigação que decorre relativamente a uma alegada fuga de informação sobre os conteúdos da prova, porque “esta é uma questão que não pode nem deve merecer posições facilitistas ou posições precipitadas”. E acrescentou que, neste momento, é importante “transmitir aos alunos que têm de, com serenidade e tranquilidade, continuar a sua época de exames”. E a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou, no dia 23, que a eventual fuga de informação do exame nacional de Português “deu origem a um inquérito” e “o mesmo encontra-se em investigação no DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa”. Com efeito, em resposta à Lusa, a PGR disse que se confirmava “a receção da participação do IAVE [Instituto de Avaliação Educativa], a qual deu origem a um inquérito” e que o mesmo se encontrava em “investigação no DIAP de Lisboa”. 
Entretanto, jornal Expresso teve acesso ao áudio que circulou nas redes sociais alguns dias antes do exame nacional e que revelava o que ia sair na prova. Segundo o dito áudio, a fuga partiu da “presidente de um sindicato de professores”. Na gravação, feita por uma aluna que não se identifica, pode ouvir-se a estudante a dizer:
“Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive”. 
E ainda:
“Pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória e outra sobre a importância dos vizinhos no combate à solidão”.
Segundo o Expresso, a situação foi denunciada ao ME por Miguel Bagorro, professor na Escola Secundária Luísa de Gusmão, em Lisboa, que soube da gravação através dum aluno a quem dava explicações de Português. E a divulgação daquele áudio levou o IAVE a anunciar que iria remeter para a IGEC (Inspeção-Geral de Educação) e para o Ministério Público informações sobre as alegadas fugas de informação, que teriam acontecido antes da realização do exame nacional do 12.º ano, que decorreu no dia 19.
Nos termos do regulamento dos exames nacionais, publicado em “Diário da República”, “a suspeita de fraude que venha a verificar-se posteriormente à realização de qualquer prova implica a suspensão da eventual eficácia dos documentos entretanto emitidos”, nomeadamente das classificações que vierem a ser atribuídas. Mais refere o documento que deve ser elaborado “um relatório fundamentado em ordem à possível anulação da prova”.
Porém, o ME não conseguirá furtar-se à polémica. Como é que se vai apurar que o aluno A ou B soube do conteúdo da fuga de informação? E como se prova que beneficiou do conhecimento prévio daqueles conteúdos? Se o ME insiste em embarcar na judicialização de escola e exame, terá imensas dificuldades em singrar por aí. O advogado Vasco Marques Correia explicou ao Expresso que o ME se arrisca a enfrentar milhares de queixas em tribunal por parte de alunos que venham a sentir-se lesados. Por esse lado, o aluno pode alegar que não conheceu que se tratava do poema XXXVI (de O Guardador de Rebanhos) e que a composição sobre a memória não era a única hipótese aventada. Mas, em 3 dias, não era possível ler todos os poemas de Alberto Caeiro e fazer uma composição sobre memória ou sobre solidão? Eram 110 pontos (11 valores).
Ora, que houve atropelo à ética houve e cabe à escola promover atitudes éticas e corrigir pedagogicamente as suas contrafações e desvios, o que não se faz por via judicial, que leva tempo e exige provas iniludíveis, sujeitas a todos os esquemas inerentes às batalhas jurídicas.
Assim, segundo Marques Correia ao Expresso Diário, o ME, ao decidir pela não anulação do exame e pela garantia de que “só os alunos que comprovadamente tenham beneficiado com a alegada fuga de informação” serão penalizados, enfrentará a chamada “prova diabólica” (‘diabolica probatio’), de que se fala em Direito. Com efeito, identificar todos esses estudantes e demonstrar que tiraram vantagem daquela informação é praticamente impossível.
É, de facto, muito difícil sustentar juridicamente a anulação da prova a alguns alunos. Seria preciso provar que o aluno acedeu a uma informação confidencial a que não tinha direito de aceder e que objetivamente beneficiou com isso, colocando-se numa situação de vantagem em relação aos colegas. Ou seja, não bastava mostrar que teve acesso à informação. Era preciso que tivesse agido em conformidade, orientando o estudo para aquelas matérias.
Além disso, como é que pensa o ME chegar aos autores através da pesquisa em redes sociais, a não ser que, colocando todas as hipóteses, se passem a pente fino serviços do IAVE, da editorial do ME e das próprias forças de segurança. Será possível e viável? Tenho dúvidas.
No dia 29, deu-se conta de furto de granadas (Quantas?) e munições de 9mm (Quantas?). Mas o Ministro da Defesa Nacional não veio falar em eventual furto, mas em caso grave e crime muito profissional. Há ministros e ministros… mas era material de guerra e não exames de Português. Como é que eu não percebi logo!
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Abordando agora a primeira das vertentes acima referenciadas, está em causa já não só a ética dos valores, mas também a do conhecimento. E o IAVE tem sido useiro e vezeiro nisso, como se pôde ver pelos exemplos que já apresentei alhures. E, tratando-se duma entidade tornada independente – pensava eu que da hierarquia do ME, mas pelos vistos também independente da ciência –, Sua Excelência o Ministro não teria que responder pelo IAVE. Porém, veio considerar que houve “uma diferença de opinião” entre o IAVE e a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática) quanto a critérios de classificação do exame de Matemática do 9.º ano, já ultrapassada. Disse Sua Excelência aos jornalistas:
“O Instituto de Avaliação Educativa, que organiza todo o processo de exames e provas a nível nacional, já prestou um esclarecimento sobre o assunto. É mesmo isso, uma diferença de opinião, mas isso está sanado e os esclarecimentos já foram prestados”.
Está em causa o item 14 (no 2.º caderno) da referida prova: Fatoriza o polinómio x2 - 4. Qualquer antigo aluno de Matemática deste nível sabe que se trata da diferença de quadrados cuja fatorização se exprime num monómio constituído pela multiplicação da diferença dos dois elementos (x e 4) pela soma dos mesmos: (x2) (x + 2); ou, atendendo à propriedade comutativa: (x + 2) (x2). Nunca será aceitável uma valorização de peso (75% – 3 pontos em 4) para uma solução falsa, como o é: x2 x x + 2. Quando muito, do meu ponto de vista, mereceria um ponto por o aluno ter identificado o caso notável da diferença de quadrados.
A SPM denunciou a existência dum erro na proposta de correção do exame do 9.º ano à disciplina, realizado por quase 90 mil alunos finalistas do ensino básico, lamentando “verificar que, nos critérios de correção publicados pelo IAVE [Instituto de Avaliação Educativa], no item 14 sejam atribuídos 75% da cotação a uma resposta integralmente errada”. E o IAVE esclareceu que “nada existe de errado” nos critérios de classificação do exame de Matemática, estando em conformidade com o previsto, ao contrário do que afirma a SPM. 
Em seu comunicado, o IAVE esclarece que “o objetivo do item 14 era verificar se os alunos identificavam um dos casos notáveis da multiplicação de polinómios” e justificando ainda:
“A resposta referida pela SPM como ‘integralmente errada’ evidencia essa identificação, embora esteja escrita de modo formalmente incorreto, por omissão dos parêntesis. Como tal, e de acordo com os critérios gerais relativos a respostas restritas, onde se indica que a apresentação de expressões incorretas do ponto de vista formal está sujeita à desvalorização de um ponto, foi este o procedimento seguido.”.
Primeiro, não se trata só do objetivo de encontrar um caso notável. Se o fosse, a questão deveria ser formulada de outro modo. Mas a frase imperativa é “fatoriza”. Na resposta valorizada a 75% não há fatorização, mas fica evidente a existência de polinómio com três membros. Segundo, não se trata de expressão incorreta só do ponto de vista formal, mas sobretudo de uma resposta falsa em termos de conteúdo.
Também a Prova Final de Português (91) do 9.º ano oferece uma joia curiosa.
O GRUPO V tem o seguinte enunciado:
Seleciona uma figura pública feminina, portuguesa ou estrangeira, que, do teu ponto de vista, tenha um papel marcante no desporto, na música, na ciência ou na literatura.
Escreve um texto de opinião bem estruturado em que: apresentes a figura selecionada; fundamentes a tua escolha em, pelo menos, três razões; dês um exemplo de uma iniciativa que pudesse ser criada para homenagear essa figura pública.
Deves escrever entre 160 e 240 palavras.
Não se conhece posição pública do IAVE que desdiga dos critérios de correção e classificação estabelecidos. Porém, como é sabido, a escolha de alguns recaiu em Cristiano Ronaldo, que não corresponde aos termos basilares do estado da questão “uma figura pública feminina”. É fácil a perceção do escopo de quem organizou a prova: situá-la no debate da igualdade de género.
Ora, tanto quanto se sabe, em resposta a dúvidas dos professores classificadores, o IAVE recomenda ou aceita que haja contemporização porque há outros aspetos a considerar, os alunos podem ter apreendido o essencial, etc. etc.
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Posto isto, interrogo-me: para quê tanto rigor na organização e prestação das provas? Que valores é que o IAVE defende? Que importância dá ao conhecimento? A sua missão mais importante será homologar ou ratificar as imprecisões, as distrações ou as confusões? Não constituirá um mau exemplo a seguir por alunos e professores?
Não me apraz ver o ME ou algum departamento ligado à educação e ensino numa fase pós-científica, sobretudo se ela corporizar o nacional-porreirismo ou o “laissez fiare, laissez passer”. Preferia o culto da democracia do conhecimento e dos valores em vez da sujeição à ditadura de situação a redundar no relativismo científico e ético. Deus lhes perdoe, que é quem tudo pode.

2017.06.29 – Louro de Carvalho

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