A liberdade
de pensamento e de expressão, bem como uma das suas concretizações públicas, a
liberdade de imprensa, é um bem inestimável que as sociedades modernas
conquistaram face ao poder político absoluto, típico das ditaduras e que emerge
de vez em quando em situações ditatoriais mesmo em regimes democráticos. E,
porque se trata de um bem inscrito no quadro das liberdades, direitos e
garantias, é protegido constitucionalmente e nos documentos de referência
universais.
Face ao
consenso que se estabeleceu em relação à liberdade de imprensa, enquanto os
poderes e as diversas entidades religiosas vinham a terreiro condenar
veementemente os ataques terroristas ao semanário humorístico “Charlie Hebdo”, desferidos em nome duma
religião, muitos cidadãos clamavam o clichê “Eu sou Charlie”.
O predito
semanário humorístico mais não fez do que ridicularizar uma religião e o seu
profeta por diversão, por acinte ou pelo quer que seja.
Em tempos,
um humorista com lugar de destaque num semanário português, querendo
ridicularizar a figura de João Paulo II pela sua postura doutrinária
contracetiva, deu à estampa um cartoon
com o busto papal de nariz envolvido por um preservativo. Era um caso de
sacrilégio a ridicularização acintosa da figura de uma pessoa consagrada, sendo
que hoje seria blasfémia por atentar contra a honorabilidade de um santo, São
João Paulo II. Só que os jornalistas sabem um pouco de tudo, mas nesse tipo de
ciência não entram as noções de pecado – muito menos de blasfémia (ofensa à
honra de Deus, de Maria e dos outros santos e santas) ou de sacrilégio (ação desrespeitosa contra as
pessoas, os objetos, os lugares e os tempos sagrados) – a não ser os pecados dos outros, reais ou
supostos. Obviamente que não se trata de fazer juízos sobre o facto de haver ou
não haver pecado, visto que para haver pecado grave têm de reunir-se
cumulativamente três condições: gravidade da matéria, pleno conhecimento e
advertência (ou seja, saber-se que é pecado e ter-se plena consciência disso no momento) e pleno consentimento. Sendo assim, não andaremos a
rotular de pecado os outros a torto e a direito. A este respeito, recordo que o
famoso Padre Bernard Häring, autor das célebres obras “A Lei de Cristo” e “Livres e fiéis
em Cristo” (uma e outra em 3 volumes), que refrescaram a Teologia Moral, escandalizou muita gente em Portugal quando
afirmou não saber se alguma vez tinha ouvido, em confissão, alguém que tivesse
cometido um pecado mortal. E tinha muita experiência de confessionário. As hostes
que o ouviam sabiam que a confissão fora instituída a modo de juízo, mas esqueciam-se
de que o confessor é apenas juiz das disposições do penitente – se ele mostra
ou não arrependimento e propósito firme de mudança – e não da gravidade ou
sequer da existência do pecado em concreto. Isso não quer dizer que a tendência
para o pecado não seja um facto, pelo que as pessoas devem precaver-se e tentar
não cair em tentação, ou que não haja estruturas sociais de pecado, que devem
merecer combate urgente e afincado. Todavia, não podemos ser fáceis na
rotulação de pecado nos outros.
Em relação
ao caso do suso aludido semanário, ninguém disse que era “João Paulo II”,
“Vaticano” ou “Igreja”, como ninguém disse “Eu sou Expresso”. Com efeito, a tolerância cristã e a compreensão humana
assim o determinam, até pelo exemplo de Cristo, que do alto da cruz exclamou: “Pai, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem”
(Lc 23,34).
Também a propósito da aprovação parlamentar da lei que
permite a adoção por casais do mesmo sexo, o BE (Bloco
de Esquerda) lançou, em 2016, um cartaz com a imagem de Jesus Cristo
encimada pela frase “Jesus também tinha 2 pais”. E as vozes públicas (fui uma dessas vozes) foram moderadas desvalorizando o possível acinte e achando
lamentável a utilização da figura de Jesus Cristo para fins de natureza
eminentemente política. Não sei é se, em compensação e por imperativos
evangélicos, as catequeses redobraram o esforço de formação cristã das crianças
e adolescentes, jovens e adultos. É que sabe-se muito pouco de cristianismo. E,
a par dos muitos que persistem, muitíssimos e muitíssimas fazem a 1.ª Comunhão,
a Profissão de Fé e recebem Sacramento do Crisma, de lenço branco, ou seja, vão
pela família, pela festa, pela refeição, pela farda, pela fotografia. E preparam-se
para o “adeus” à fé, até que novos ventos soprem!
A este propósito, mais do que a sistemática tomada de posição
frontal contra determinadas medidas políticas, por vezes necessária, ou a
condenação primária de posturas, atitudes e
comportamentos, deveria valer a formação das consciências, a sanidade dos
relacionamentos e o trabalho denodado pela valorização das pessoas, mormente as
pobres, as doentes e aquelas que, na dança de interesses, a sociedade explora,
coisifica e descarta quando deixa de lhes reconhecer utilidade.
***
Entretanto,
o caso que agora está na ribalta é o do jornal britânico The Guardian,
que, no passado dia 1 de junho, publicou uma ilustração com a imagem, em
silhueta, do Cristo Redentor, do Corcovado, no Rio de Janeiro, empunhando uma
arma com uma das mãos e segurando um saco de dinheiro na outra – o que está a
enfurecer a Igreja católica Brasil, nomeadamente a arquidiocese do Rio de
Janeiro, que vem a considerar a ilustração como uma “ofensa para o povo”. Com efeito,
a estátua de Jesus Cristo no topo daquele monte é um dos pontos turísticos mais
conhecidos do Rio de Janeiro e do Brasil e um símbolo da fé e do próprio povo
do Brasil. Por isso, o prelado da arquidiocese afirma, em entrevista à TV Globo, que o The Guardian,
“ao representar o redentor desta forma”, com esta ilustração ofensiva e
desrespeitosa, “ofende o povo brasileiro”. A este respeito, o Cardeal João
Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro, declarou:
“O Cristo Redentor é símbolo de uma nação e também
símbolo de uma fé. Ao representar o Redentor desta forma, o The Guardian ofende o povo brasileiro,
porque isso é uma ofensa para o povo.”.
E
acrescentou:
“Quem não sabe respeitar o povo brasileiro, nem tão pouco os cristãos, é
lamentável. Nós lamentamos muito isso e pedimos que seja respeitada a imagem de
Cristo.”.
A imagem é a
ilustração principal duma grande reportagem do The Guardian sobre a corrupção no Brasil com o título interrogativo
“Operação Lava-jato: Será este o maior
escândalo de corrupção na história?”.
Ora nem o
Cristo Redentor tem culpa do Lava-jato ou de outros fenómenos de corrupção no Brasil
ou em qualquer canto do mundo, nem o Brasil pode ser genérica e totalmente tido
como corrupto. Por isso, o Padre Omar Raposo, reitor do santuário do Cristo
Redentor, citado
pelo portal “G1”, lamentou a
escolha de uma imagem é desrespeitosa e agressiva por parte do jornal, dizendo:
“O povo brasileiro não pode ser caraterizado por ser um povo violento e um
povo que traz a corrupção na sua origem”.
E continuou
no seu esclarecimento de caraterização sumária daquele povo, pelo trabalho,
resiliência e afeição aos símbolos:
“Nós somos um povo trabalhador e nós merecemos o nosso respeito, e o
respeito que passa também pelo reconhecimento internacional. Estamos procurando
uma fase de resiliência e não podemos admitir, de forma alguma, que fiquemos
caraterizados mundialmente. Um desrespeito à imagem do Cristo Redentor é um
desrespeito ao povo brasileiro.”.
Nas redes
sociais, as opiniões dividem-se entre aqueles que condenam o jornal britânico e
os que desvalorizam o caso, dizendo que as autoridades brasileiras são as
verdadeiras culpadas, com se vê pelos exemplos seguintes, em que se reconhecem dualmente
os que distinguem as coisas e os que as baralham, exatamente como parece pretender
o jornal.
Um utilizador
escreveu: “Acho um completo desrespeito
ao nosso Cristo. O Papa poderia se manifestar sobre o assunto. Horrível e de
mau gosto!”.
Outro
esclareceu: “Mas o Cristo Redentor não é
o ladrão. É um símbolo cristão e do Brasil.”.
E outro comentou:
“Horrível! Eles não sabem o que fazem!”.
De facto,
podem não saber o que fazem em termos do pecado, mas superficialmente utilizam
um símbolo religioso para baralhar e vender papel e fazem Deus à imagem do homem.
Assim,
outros utilizadores reconhecem erros dos políticos e das autoridades
religiosas:
“Infelizmente isso não é nada perante o que
nossos governantes, autoridades até mesmo alguns religiosos fazem com o povo
brasileiro!” – disse um utilizador. E outro afirmou: “Essa imagem foi a mais sensata possível da situação política”.
A operação
Lava-jato tornou-se num escândalo de política e corrupção no Brasil de
dimensões inéditas. Vários políticos – incluindo pessoas próximas do atual
presidente e dos anteriores – e empresários de sucesso têm sido detidos ao
longo desta investigação durante os últimos anos.
E Sérgio
Moro, o juiz federal brasileiro que está a julgar os casos da Lava-jato,
afirmou, no âmbito da sua comunicação na edição de 2017 das Conferências do Estoril,
que a corrupção sistémica no Brasil é “vergonhosa”, mas o país está a está a
dar “passos sérios e firmes” no combate deste crime.
***
Monumento
mais famoso do Brasil, o Cristo Redentor é usado com frequência pela imprensa
estrangeira em matérias sobre a situação do país.
Por
exemplo, segundo a ANSA (Agenzia Nazionale Stampa Associata – Sociedade Cooperativa), a revista britânica “The Economist” já estampou a imagem da
estátua três vezes nos últimos anos. Em 2009, uma capa da publicação mostrava o
Cristo “decolando” (brasileirismo
para significar “levantar voo”), numa metáfora da expansão da economia brasileira. Quatro anos depois,
usou a mesma foto, mas retratando o monumento a cair após a sua “decolagem”.
Em
2016, a revista voltou a utilizar a estátua, desta vez mostrando-a com uma
faixa a pedir socorro por causa da crise política e económica no Brasil.
***
É a utilização
brejeira dos símbolos religiosos, alguns bem significativos e queridos do povo,
para fins de sátira política, económica e social – o que, para consciências bem
formadas, raia efetivamente a blasfémia. Se Deus não fosse misericórdia – e os cristãos têm de ser testemunhas operativas dessa misericórdia-Deus –, valeria o
dito popular: “A Deus muitas graças, mas
com Deus poucas graças”. E não vale a pena passar a vida na condenação
primária, mas também não se pode ficar de braços cruzados. A solução passa pelo
esclarecimento, formação e respeito pela autonomia das realidades terrestres e
das realidades simbólico-religiosas, dando rosto humano à religião, à política
e à economia. Por isso, a todos se pede respeito!
2017.06.03 – Louro de Carvalho
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