quinta-feira, 15 de junho de 2017

Impressões da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo /2017

Fui hoje, dia 15 de junho, da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo/2017, entre nós conhecida como a Festa do Corpo de Deus, dia santo e feriado nacional, à igreja dos Padres Passionistas, de Santa Maria da Feira, para a missa da Solenidade.
Como liturgicamente se trata do Ano A, num ciclo de três anos consecutivos (designados pelas letras A, B e C), foram tomadas, para proclamação e meditação, as seguintes leituras: Dt 8,2-3.14b-16a (1.ª leitura); 1Cor 10,16-17 (2.ª leitura); e Jo 6,51-58 (Evangelho, 3.ª leitura). Como salmo responsorial, de resposta à 1.ª leitura e meditação foi entoado o salmo 147 B (147), com o refrão “Jerusalém, louva o teu Senhor”; e, como versículo de aclamação ao Evangelho, foi escolhido o segmento de Jo 6,51: “Eu sou o pão vivo descido do Céu, diz o Senhor. / Quem comer deste pão viverá eternamente”.
Presidiu o Padre César Costa, boa presença, que incensou o altar e a cruz, o evangeliário, as oblatas, o Santíssimo Sacramento e promoveu a incensação da assembleia litúrgica e a elevação da Hóstia do Cálice; cantou e fez cantar a assembleia; e proferiu uma homilia notável. No início da adoração ao Santíssimo Sacramento, que ali ficou exposto até à hora da procissão eucarística que iria percorrer as principais ruas da cidade até à escadaria da Igreja Matriz, o Padre César, depois do cântico inicial, três vezes repetindo a invocação ensinada pelo Anjo de Portugal aos pastorinhos de Fátima, e das invocações rezadas que o povo foi repetindo, provocou um interessante momento de silêncio profundo.
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No entanto, o melhor do celebrante-presidente foi a homilia proferida numa linguagem muito simples e acessível a todas as inteligências, que passo a reescrever de forma pessoal e livre.
Começou por advertir que a Eucaristia não é um prémio para os bons, mas o remédio para os fracos, débeis e pecadores; o conforto da alma, a alimentação espírito e o revigoramento das energias para a salvação; e a força para a vida do quotidiano e das grandes batalhas. Se fôssemos a pensar bem nenhum dos humanos em si mesmo seria digno de tomar o corpo e o sangue do Senhor. Assim é que, antes da Comunhão rezamos como o centurião: “Senhor eu não sou digno…”.
Depois, apresentou a Eucaristia – prefigurada no Antigo Testamento pelo maná dado por Deus no deserto e pela água que brotou da rocha, proclamada por São Paulo como “o cálice de bênção” e “o pão que partimos” e definida por Cristo como sendo Ele próprio “o Pão vivo descido do céu”, que é a sua própria “carne” que Ele dá “pela vida do mundo” – apresentou a Eucaristia como o antídoto para três doenças em que os cristãos caem com muita facilidade.
A primeira doença que o homiliante apontou foi o Alzheimer espiritual, ou seja, o esquecimento das maravilhas que Deus faz pelo seu Povo e dos caminhos que Ele nos levou a segui-lo.
Por isso, o livro do Deuteronómio cita Moisés, que lembra ao povo aquilo de que ele se tinha já esquecido de forma crónica, dizendo: “Recorda-te de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto, para te atribular e pôr à prova, a fim de conhecer o íntimo do teu coração e verificar se guardarias ou não os seus mandamentos”. E, se o fez passar tribulação e pela fome, também lhe deu a comer “o maná” para que o Povo compreendesse que “o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor”. Não pode o Povo esquecer quem é o seu libertador que o tirou “da casa de escravidão” e o conduziu pelo deserto imenso, “entre serpentes venenosas e escorpiões, terreno árido e sem águas” e fez brotar da rocha dura a água que o saciou.
A segunda doença apontada pelo sacerdote celebrante foi o autismo dos crentes. Nada do que se passa à sua volta lhes diz respeito. Pelo contrário, tudo tem de girar em torno de si mesmos, ficando sempre insatisfeitos ou a viver narcisicamente das suas fantasias. Por outro lado, contentam-se com a sua fé sem a alimentarem e sem a ligarem à fé da comunidade ou sem tirarem da fé professada e vivida as necessárias consequência para a vida comunitária, social e política, em prol dos irmãos, sobretudo dos que mais precisam. Falam diretamente com Deus e desprezam as mediações e os recursos oferecidos pela solidariedade humana e cristã.
Assim é que Paulo, na sua 1.ª carta aos Coríntios, nos chama a atenção para a dimensão comunitária da fé e da celebração eucarística. E, começando por nos interpelar, questiona: “Não é o cálice de bênção que abençoamos a comunhão com o Sangue de Cristo? Não é o pão que partimos a comunhão com o Corpo de Cristo?”. Depois, contra o ensimesmamento e contra a tentação de quebra da unidade, ensina: “Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do único pão”. É o pão da unidade
O crente tem, pois, de estar aberto a Deus e aos outros, devendo a cada passo, mesmo quando está sozinho em casa, no templo ou em qualquer lugar, confrontar o conteúdo da sua fé com o Evangelho, com a fé professada pela comunidade segundo a regra comum da fé – um credo – e segundo o sensus Ecclesiae. É óbvio que deve rezar pelos outros e com os outros e pedir e aceitar que por si também os outros rezem, os vivos ou os santos do céu. Por outro lado, deve preferir participar na celebração comunitária e suscitar e aceitar a partilha de bens, mesmo materiais e culturais, com os outros, mormente com quem mais precisa. É nesta fé vivida com empenho pessoal, não individualista, mas na interação com a comunidade nas diversas vertentes que se realiza a chamada comunhão ou comunicação dos santos (entre os cristãos vivos e defuntos).
A terceira doença referenciada pelo Padre César Costa é a anemia espiritual. Descurando a formação catequética, perdendo o hábito da oração/reflexão, furtando-se aos sacramentos, mergulhando na rotina e apartando-se da comunidade, a fé estiola, fica sem efeitos práticos e o crente fica à deriva, sujeito ao mais pequeno vendaval. É a magreza espiritual que de anemia espiritual pode redundar em leucemia corrosiva da fé e da espiritualidade.
Por isso, torna-se cada vez mais oportuna a meditação da perícopa do Evangelho de São João tomada como 3.ª leitura da solenidade de hoje, que faz memorizar e assumir as palavras de Jesus aplicáveis à Eucaristia: “Eu sou o pão vivo descido do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha Carne pela vida do mundo”.
É de notar que Jesus não esclarece a dúvida dos judeus “Como pode Ele dar-nos a sua Carne a comer?”. Faz, antes, uma extensão discursiva desafiante sob juramento (através da fórmula “em verdade, em verdade vos digo):
Se não comerdes a Carne do Filho do homem e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia. A minha Carne é verdadeira comida e o meu Sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em Mim, e Eu nele. Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por Mim. Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram; quem comer deste pão viverá eternamente.”.
Participar no mistério em que se come “a Carne do Filho do homem” e se bebe “o seu Sangue” é condição sine qua non de vida eterna e de ressurreição no último dia. Mais: verdadeiramente a sua Carne é comida e o Seu Sangue é bebida. E esta comunhão de bênção é fator e sinal de união com Cristo e de vida em Cristo e de todos em Cristo, porque, sendo muitos, formamos um só corpo com Ele. Ou, como refere outra passagem do Evangelho de João, Ele é a cepa e nós somos os ramos (vd Jo 15,5: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permaneceu em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.”).
É claro, confrontando com outras passagens do Evangelho, que a Carne e o Sangue de Jesus no são dados sob as espécies de pão e de vinho:
“Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: ‘Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em minha memória’. Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós’.” (Lc 22,19-20; cf Mt 26,26-28; Mc 14,22-24).
É grande o mistério da fé. E de facto, este Pão Vivo descido do céu é muito melhor que o maná, pois “quem comer deste pão viverá eternamente”.
Por isso, o sacerdote passionista pedia que vivêssemos esta Eucaristia como sendo efetivamente a última ceia de Cristo antes de morrer, mas com o interesse como se fosse a nossa primeira celebração eucarística e o mesmo empenho que teríamos se soubéssemos que seria a nossa última celebração neste mundo.
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De facto, a Eucaristia tem várias dimensões e todas importantes. É a celebração por excelência da fé, o banquete dos filhos de Deus, o sacrifício da Cruz, o memorial da Morte e Ressurreição do Senhor e o penhor da vida eterna – como reza a antífona: “Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a sua paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória”.
Mas a Eucaristia, sacramento da unidade e do fervor, precisa da nossa adoração pessoal e coletiva, nos momentos simples do quotidiano e nos grandes dias de festa – de pé ou de joelhos, o que importa é que a nossa boca esteja juntinha a Deus. E adorar é crer mais, esperar mais, amar mais, rezar mais – por si e pelos outros – e tirar mais consequências para a vida em todas as suas dimensões. Precisamos de “adoradores em espírito e verdade”, porque “Deus é espírito” (cf Jo 4,23.24), mas também precisamos de adoradores de corpo inteiro, porque, em Jesus, por Jesus e com Jesus, Deus ganhou corpo, o Deus invisível tornou-se visível. Quem vê Cristo “corpo” vê o Pai “espírito” (cf Jo 14,9).
E a Eucaristia postula a proclamação do mistério de Cristo e da Igreja por parte de todos nós e do nosso testemunho de vida. A proclamação intrépida e pública fez-se nas procissões de rua com o Santíssimo Sacramento na cidade, na vila e na aldeia. O testemunho, que hoje tomou novo vigor, segue amanhã.
Por tudo,
Glorifica, Jerusalém, o Senhor, louva, Sião, o teu Deus. Ele abençoou os teus filhos. Estabeleceu a paz nas tuas fronteiras e saciou-te com a flor da farinha. Envia à terra a sua palavra, corre veloz a sua mensagem.”

2017.06.15 – Louro de Carvalho

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