quarta-feira, 21 de junho de 2017

O poema que os alunos do 12.º ano tiveram de analisar em 2017

E há poetas que são artistas (poema XXXVI de “O Guardador de Rebanhos)

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem construi um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...

Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.

Fernando Pessoa, Poesia de Alberto Caeiro, ed. de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 72

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O exame
O poema acima transcrito, de Alberto Caeiro – o heterónimo de Fernando Pessoa, o poeta da natureza que aborrece o pensamento e que Álvaro de Campos considera o mestre – encima o primeiro grupo da Prova de Português (código 639) a que se submeteram os alunos do 12.º ano no passado dia 19 de junho.
A este respeito, a APP (Associação de Professores de Português), em parecer enviado às redações, concluiu que o exame nacional do Ensino Secundário se pautou “pelo equilíbrio e objetividade”. E, em relação a este poema de “O Guardador de Rebanhos”, para o qual eram solicitadas respostas a três questões de análise e interpretação, lembra que o texto selecionado é, geralmente, analisado em aula, pelo que os alunos já tinham conhecimento prévio do mesmo.
Quanto aos alunos, de um modo geral, consideram que, apesar de ter saído Pessoa, quando esperavam por Saramago (até porque o “Memorial do Convento” vai cessar durante dois anos e depois será estudado como alternativa a “O Ano da Morte de Ricardo Reis), o balanço no 1.º exame nacional do ano é positivo. Alguns estavam à espera que saísse Camões, mas venceram o transe da surpresa com relativa facilidade.
De autores de obras literárias, havia Fernando Pessoa e Vergílio Ferreira; e, como texto não literário para avaliar “conhecimentos e capacidades de Leitura e de Funcionamento da Língua”, foi escolhido um escrito de António Granado e José Vítor Malheiros (Cultura Científica em Portugal: Ferramentas para Perceber o Mundo e Aprender a Mudá-lo). Mas os alunos acharam o teste foi mais fácil do que o esperado, embora alguns reconheçam que se enredam um pouco nos poemas.
O Observador, ao referir-se a este exame, dizia que o IAVE, IP já tinha divulgado as respostas oficiais. Porém, a asserção não é exata. O que aquele IP divulgou foi os critérios de correção e classificação. Com efeito, apesar de serem indicados os itens de conteúdo na resposta a cada uma das 5 questões do Grupo I (que avaliam “conhecimentos e capacidades de Leitura e de Expressão Escrita através de itens de construção”), vem a seguinte advertência: “Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes”. No Grupo III – que avalia “conhecimentos e capacidades no domínio da Expressão Escrita, sendo o grupo constituído por apenas um item de resposta extensa – apenas se apresentam “orientações no que respeita à tipologia textual, ao tema e à extensão”. E, no Grupo II, porque as respostas ou são de escolha múltipla ou são curtas e diretas, não há lugar nem a opções nem à classificação de resposta oficial.
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A análise e interpretação do poema
A este respeito, os organizadores da prova formularam três questões nos termos seguintes:
“1. Nas três primeiras estrofes, são abordados dois processos de criação poética. Explicite esses dois processos, tendo em conta, por um lado, as comparações presentes nos versos 3 e 5 e, por outro lado, o sentido do verso 4 e o conteúdo da terceira estrofe.
2. Interprete o verso «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa» (v. 9), atendendo à especificidade da poesia de Alberto Caeiro.
3. Explique o modo como as sensações e a comunhão com a natureza são valorizadas na quarta estrofe do poema. Fundamente a sua resposta com elementos textuais pertinentes.”
Respondo seguindo criticamente a proposta do IAVE, contestando, suprimindo e acrescentando.
Quanto à questão 1, é discutível que o poeta “Guardador de rebanhos” se tenha dado ao cuidado de admitir pensar como funcionam os processos de criação poética. Isso dá muito trabalho… Com efeito, no seu poema I, ele explicita a sua maneira de ser poeta:
Ser poeta não é uma ambição minha /É a minha maneira de estar sozinho”. E acrescenta: “E se desejo às vezes / Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo / Para andar espalhado por toda a encosta / A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), / É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, / Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz /E corre um silêncio pela erva fora” // É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, / Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora.”.
Mais acima ele dava testemunho do seu aborrecimento por pensar:
“Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais”.
E, no poema II do mesmo livro, também de verso livre, lê-se:
O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... / […] / Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar...”.
Porém, concedendo o mérito da análise e interpretação subjetiva, dado o caráter polissémico e metafórico da produção e receção poéticas, as exigências de resposta evidenciadas e a hipótese de resposta proposta são legítimas. E acresce que o estudo do texto literário no ensino secundário é demasiado orientado, o que prejudica a liberdade de interpretação e mesmo o prazer da fruição do texto. Há pouca leitura e demasiados resumos e sínteses.
Não obstante, é possível vislumbrar, nas três primeiras estrofes (dois tercetos e um dístico), dois processos de criação poética: processo dos “poetas que são artistas” (v.1), um trabalho minucioso/rigoroso/artesanal, semelhante ao trabalho do carpinteiro e do pedreiro (já será excessivo dizer que se trata de “poesia pensada/consciente); e processo de criação poética dos poetas que sabem “florir” (v.4), ato involuntário/espontâneo, em harmonia com a própria natureza, “única casa artística” e, por conseguinte, o único modelo de arte. No contexto do 1.º processo, as comparações com o carpinteiro (v.3) e com o pedreiro – “como quem construi um muro” (v.5) – enfatizam o trabalho meticuloso (discordo do adjetivo “formal” utilizado pelo comentário do IAVE) e, por conseguinte, quase consciente do poeta. O outro processo – que o sujeito poético parece assumir – é o que se deduz do verso 4, em que o “eu” se lamenta da sua tristeza e estranheza por haver poetas que não são capazes de “florir” (Apesar de todo o poema ser um ato expressivo, tente-se na relevância especial do ato ilocutório expressivo plasmado no verso!), ou seja, tornar a criação poética ato involuntário, espontâneo e tão natural como o ato de “florir” que a plantinha nos propicia. Assim, o processo duma poesia pensada opõe-se à conceção de poesia espontânea e simples, que está em contradição com a natureza que, na sua diversidade e harmonia e também na sua unidade e totalidade, constitui o modelo da verdadeira arte.
Falta a referência explícita à criação poética comparável à ação do pedreiro – pôr verso sobre verso como quem põe pedra sobre pedra para construir um muro e tira se não fica bem. Embora esta dinâmica de criação se enquadre no predito primeiro processo de produção poética, não se pode concluir que se trate de ato de pensar ou de consciência reflexiva. O artesão da pedra (não digo o engenheiro ou o arquiteto) vê e sente muito mais do que pensa. O próprio cinzelar da pedra ou o cantarem à pedra para a fazerem subir no engenho e a colocarem no sítio não são atos de pensamento, mas sensações e brados que acompanham e animam o ritmo duro do trabalho.
No atinente à questão 2, a resposta deve acentuar a existência da contradição entre o que o emissor lírico afirma (“não como quem pensa, mas como quem não pensa”) e o que ele faz (“Penso nisto”); e a recusa do pensamento puro com a valorização das sensações. Com efeito, no verso “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa” (v.9), o sujeito poético acolhe e exprime a sensação de que o pensamento é algo que surge como natural e espontâneo, sem ser construído ou conquistado, recusando, assim o pensamento puro, metafísico, porque e na medida em que se distancia das sensações. Ao pensar, incorre, pois, na intelectualização, fenómeno que combate e que abjura. Assim, é notória a contradição entre o que o “eu” poético afirma (pensar como se não pensasse) e o que faz às vezes, mas sem querer (pensar).
Em relação à questão 3, que exige uma explicação do que é abordado, mas com a devida fundamentação em elementos textuais a mobilizar para a resposta, devem ter-se em conta: a valorização das sensações, privilegiando a realidade captada pelos sentidos (vv. 10 e 17), bem como a negação/recusa do pensamento (vv. 11-12); e a valorização da comunhão com a natureza, sendo  o “eu” poético um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas a “comum divindade” (v.14) – a confissão inconsciente do panteísmo – e sendo a “Terra” é a mãe natureza, acolhedora e protetora (vv. 15-17) – a mátria. Na verdade, a 4.ª estrofe faz sobressair a valorização das sensações com o facto de o poeta “antimetafísico” privilegiar a realidade que os sentidos captam, como o comprovam em concreto para a visão e a audição os versos “E olho para as flores e sorrio...” (v.10) e “E deixar que o vento cante para adormecermos” (v.17). Nega-se, pois, a necessidade de compreender algo mais para lá daquilo a que as sensações nos permitem aceder – atitude evidenciada em “Não sei se elas me compreendem / Nem se eu as compreendo a elas” (vv. 11-12). Depois, a comunhão com a natureza decorre, por um lado, do facto de o emissor lírico se considerar um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas uma “comum divindade” (v. 14) – panteísmo sentido e não professado – que permite o acesso à “verdade” (v.13) e, por outro lado, do facto de “a Terra” ser caraterizada como a mãe natureza, acolhedora e protetora. Por este motivo, o homem entrega-se à natureza, numa atitude de desprendimento e de aceitação e numa postura contemplativa (olha e sorri), mas sem qualquer mediação reflexiva (vv. 15-17), não sabendo se há compreensão recíproca ou bilateral.
Diferente é o franciscanismo da comunhão com a natureza sem ela ser Deus, mas sua expressão e éden para o homem.

2017.06.20 – Louro de Carvalho

3 comentários:

  1. A forma atual é "constrói". No entanto, dantes usava-se "construi" como "instrui", "diminui", etc.
    A 2.ª e 3.ª pess. do sing., bem como a 3.ª pess. do pl. do Presente do Indicativo do verbo construir, têm essa dupla terminação: tu construis ou tu constróis; ele construi ou ele constrói; e eles construem ou constroem. Como construir, conjugam-se os verbos destruir, instruir, obstruir.

    No "Dicionário de Questões Vernáculas" (Livraria Ciência e Tecnologia Editora, São Paulo, Brasil), Napoleão Mendes de Almeida dá a seguinte explicação:

    «Regulares seriam as formas construo, construis, construímos, construís, construem, resultantes da junção do radical constru às terminações pessoais da terceira conjugação; dessa maneira, a conjugação de construir seria idêntica à de influir (influo, influis, influi…), retribuir (retribuo, retribuis, retribui…).

    Acontece, porém, que o uso alterou foneticamente a terminação da segunda e da terceira pessoa do singular e da terceira do plural para constróis, constrói, constroem.

    Essa alteração é de tal maneira universalmente seguida, aqui [no Brasil] como em Portugal, que erro constituiria, hoje, o emprego das formas regulares.» Vd Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

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