No dia 24 de
junho, participei numa conversa informal em que se falava dos adereços que
emblematizam as festas de São João.
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Os dados
bíblicos
Trata-se
obviamente de João Batista, filho de Zacarias e Isabel, primos de Maria, Mãe de
Jesus. João é o precursor do Messias. Dele foi profetizado pelo anjo do Senhor
a Zacarias:
“Será para ti motivo de regozijo e de júbilo e
muitos se alegrarão com o seu nascimento, pois
será grande diante do Senhor e não beberá vinho nem bebida alcoólica; será
cheio do Espírito Santo já desde o ventre da sua mãe e reconduzirá muitos dos filhos de Israel
ao Senhor, seu Deus; irá à frente,
diante do Senhor, com o espírito e o poder de Elias, para fazer voltar os
corações dos pais a seus filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de proporcionar ao Senhor um
povo com boas disposições.” (Lc 1,14-17).
Dele disse
Jesus:
“É aquele de quem está escrito: Eis que envio
o meu mensageiro diante de ti, para te preparar o caminho. Em verdade vos
digo: Entre os nascidos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João
Baptista; e, no entanto, o mais pequeno no Reino do Céu é maior do que ele.”
(Mt 11,10-11).
Não é sem razão que João é o único do catálogo dos santos cuja solenidade,
com direito a vigília, celebra não o dia da morte (Dies Natalis Deo), mas o dia do nascimento físico, pois, além de ter sido santificado pela
presença de Cristo, estando ainda cada um em seu ventre materno, a sua missão
reveste de relevante papel na economia da salvação. Mas atenção: todos podemos
ultrapassar a relevância de João pela humildade do serviço ao Reino!
De si mesmo, que se vestia de pelos de camelo, trazia uma correia de
couro à cintura e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre, disse o próprio João:
“Depois de mim vai chegar outro que é mais forte do
que eu, diante do qual não sou digno de me inclinar para lhe desatar as
correias das sandálias. Eu batizei-vos em água, mas Ele há de batizar-vos no
Espírito Santo.” (Mc 1,7-8).
E ainda:
“Eu sou a voz de quem grita no deserto: ‘Retificai o caminho do Senhor’,
como disse o profeta Isaías” (Jo 1,23).
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É estranho que um santo, que pagou com a vida a coragem da profecia e da
frontalidade perante a extorsão, o roubo, a corrupção e a imoralidade da casa
real e cuja vida foi pautada pela sobriedade austera expressa no vestir no
comer e sem consumir qualquer tipo de bebida alcoólica, sirva de pretexto para
folias, comezainas e bebidas à grande e à francesa (carnes, sardinhadas…), fogueiras e diversões (nem sempre as mais comedidas e sãs).
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A origem dos
festejos
Para melhor
entendermos o que se passa, convirá ver como surgiram os festejos. Ninguém sabe
dizer em que dia exato nasceu João nem Jesus. No entanto, crê-se que, pela
conjunção dos astros, o Natal do Senhor ter-se-á situado depois do solstício o
inverno. Jesus é considerado o Sol Nascente cuja vinda ao mundo significa a
visita de Deus a seu povo. Celebrava-se a festa do Sol, no seu solstício de
inverno no paganismo, depois da festa da luz nos idos de dezembro. Ora, Cristo
Sol está em 24/25 de dezembro mais pertinho da Terra.
Aquando do
anúncio da encarnação de Jesus (Lc 1,26-38), o anjo
Gabriel disse a Maria:
“Também a tua parente Isabel concebeu um filho na
sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada
é impossível a Deus” (Lc 1,36-37).
Assim, se concluiu que, em termos normais, João
teria nascido seis meses antes de Jesus. E João seria entendido como o Sol que
está a “pino”, mas mais longe da Terra, a anunciar a proximidade da visita de
Deus para muito em breve. Ou seja, as festividades cristãs são mais
“teológicas” do que “históricas” no sentido comum do termo. E São João Batista
tem um sem número de capelas e igrejas erigidas em sua honra, paróquias e mesmo
dioceses, não esquecendo que a arquibasílica papal, a sede da diocese de Roma,
é titulada pelo Santíssimo Salvador (Jesus Cristo), São João Batista e São João Evangelista; e o
nome por que é mais conhecida é simplesmente de “São João de Latrão”.
Famoso é São João do Porto, festa popular que se realiza de 23 para 24 de
junho na segunda cidade do país. É uma festividade católica em que se
celebra o nascimento de João Batista, que se centra na missa e procissão no
dia 24 de junho. Porém, os festejos do S. João no Porto, como em muitos
outros lugares, tendo origem na festa do Sol, no solstício de verão, eram
inicialmente uma festa pagã em que se festejava em grande a fertilidade,
associada à alegria das colheitas e da abundância. Mais tarde, à semelhança do
que sucedeu com o Entrudo/Carnaval, a Igreja cristianizou esta festa pagã
atribuindo-lhe a titularidade de São João (Batista) pelo motivo referido. São uns festejos
repletos de tradições, de que se destacam os alhos-porros, usados para
bater nas cabeças das pessoas que passam, os ramos de cidreira (e de limonete), usados pelas mulheres para pôr na cara dos homens que passam, e o
lançamento de balões de ar quente. O alho-porro era um símbolo fálico da
fertilidade masculina e a erva-cidreira dos pelos púbicos femininos. É, pois,
natural que a fertilidade esteja associada a manifestações de alegre
sensualidade de que ninguém leva a mal, a não ser que haja prévias e estranhas
histórias de vida a gerar constrições, tal como no Carnaval, ou um preconceito
imbatível.
A partir dos anos 70, generalizou-se a utilização dos martelos de plástico,
que desempenham o mesmo papel do alho-porro, tendo também um aspecto fálico. E,
nos anos 70, nas Fontainhas, ainda se vendia, na noite joanina, pão com a forma
de um falo com dois testículos, atestando as conotações da festa com as antigas
festas da fertilidade e erotismo. Ainda são de considerar os tradicionais
saltos sobre as fogueiras espalhadas pela cidade, sobretudo nos
bairros mais tradicionais; e os vasos de manjericos com versos
populares são presença constante nesta grande festa, bem como o fogo de
artifício, acompanhado por música num espetáculo multimédia à meia-noite,
sobre o Rio Douro junto à ponte Dom Luís I, em barcos preparados
para o efeito.
Além disso, há os vários arraiais populares até às tantas da madrugada por
toda a cidade (especialmente nos bairros das Fontainhas, Miragaia,
Massarelos, entre outros) com concertos em que entram cantores populares acompanhados por comida (em especial, as sardinhas, o cabrito assado e mais recentemente grelhados
de carnes). Os mais resistentes
percorrem toda a marginal desde a Ribeira até à Foz do Douro,
terminando a noite na praia, aguardando o nascer do sol.
Não se conhece quando teve início a festa do S. João do Porto. Sabe-se, pelos registos do Séc. XIV, que já se
fazia ao tempo. Mas é possível que a festa seja mais antiga, pois uma cantiga
da época dizia: “até os moiros da moirama festejam o S. João. Era
nesse dia que a Câmara se reunia em Assembleia Magna (semelhante à atual Assembleia Municipal) no Claustro do Mosteiro de S. Domingos (pelo seu grande espaço), para a eleição dos vereadores e tomada das decisões mais
importantes para a cidade.
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O martelo
O martelo de
S. João foi inventado, em 1963, por Manuel António Boaventura, industrial de Plásticos
do Porto, que tirou a ideia num saleiro/pimenteiro que viu numa das viagens ao
estrangeiro. O conjunto de sal e pimenta tinha o aspeto de fole ao qual
adicionou um apito e um cabo vindo a incorporar tudo no mesmo conjunto e
dando-lhe a forma de martelo. O objetivo inicial era criar mais um brinquedo a
adicionar à gama de que dispunha.
Nesse ano,
os estudantes abordaram o Sr. Boaventura com o intuito de lhes ser fornecido
para a queima das fitas um “brinquedo ruidoso”, ao que o artista acedeu com a
oferta do que de mais ruidoso tinha, os martelinhos. A queima foi um sucesso
com os estudantes a dar “marteladas” o dia todo uns nos outros e os
comerciantes do Porto quiseram martelinhos para a festa de S. João.
Naquele ano,
o stock era diminuto, mas, no
seguinte, os martelos foram vendidos em força para a festa e Boaventura também
ofereceu martelinhos às crianças do Porto, ficando o martelo adotado
incondicionalmente nas festas joaninas portuenses.
A venda
fez-se normalmente durante 5 ou 6 anos até que o Vereador da cultura da Câmara
do Porto, Dr. Paulo Pombo, e o Presidente da Câmara do Porto, Engenheiro
Valadas, chegaram à conclusão de que o brinquedo ia contra a tradição e fizeram
queixa ao Governador Civil, Engenheiro Vasconcelos Porto, queixa de que
resultou a notificação, da parte do Governador Civil, ao Sr. Boaventura de que
estava proibido de vender martelos para a festa de S. João e o aviso de que
quem fosse apanhado com martelos na noite de S. João seria multado em 70$00 (na época
ganhava-se cerca de 30$00), bem como
a retirada dos martelos das lojas comerciais onde estavam à venda. Porém, o
povo não acatou a decisão e continuou a usar o martelo nos festejos.
Boaventura,
lesado e injustiçado por esta decisão do Governo Civil, levou a questão a
tribunal, perdendo em 1.ª e 2.ª instância (era o tempo de Américo Tomás e
Marcelo Caetano e, consequentemente, da PIDE/DGS). No entanto, em 1973 recorreu para o Supremo e ganhou a questão, continuando
assim a fazer os martelinhos que se tornaram tradição popular não só no S. João
do Porto, como no S. João de Braga, Vila do Conde, Carnaval de Torres Vedras, passagens
de ano, campanhas de partidos políticos, etc. Os martelos sofreram alterações
ao longo dos anos, mas a tradição ficou e a história perde-se com o tempo (cf http://martelodesjoao.blogspot.pt/).
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O alho-porro e demais plantas
O alho-porro é popular na noite sanjoanina e mais antigo
que o martelo. De mão em mão, faz festas na cara e compete em popularidade com
o martelo. No centro do Porto, no bairro das Fontainhas, ninguém o dispensa e
até há quem diga que guardar um alho de ano para ano dá sorte. Se for oferecido,
melhor ainda.
Germano Silva desvenda o mistério e explica que o
alho-porro, segundo a tradição, protege do mau olhado; e a sabedoria popular
acredita que é verdade.
A tradição do alho-porro é mesmo anterior à era
cristã. Um ritual pagão que, tal como muitos outros, foi “reciclado” na
celebração popular do São João para assinalar o solstício de verão.
Os martelinhos têm pouco préstimo para espantar o mau olhado, ao
passo que o alho-porro é proteção garantida contra pragas e invejas. Passar a
noite do São João no Porto implica, mesmo para os não supersticiosos, respeitar
esta tradição milenar na noite de grande folia para os habitantes da cidade
nortenha e muitos outros cidadãos do mundo.
A utilização do alho-porro e as fogueiras de São João cruzam
fronteiras. A tradição repete-se um pouco por todo o mundo cristão, que nalgum
momento da sua história se cruzou ou herdou o legado celta. Os celtas,
essa gente que fundou o burgo que haveria de dar origem à povoação romana de Portus Cale [o berço do Condado
Portucalense],
eram politeístas e correram boa parte da Europa antes de Cristo ter nascido na
Judeia. Por isso, não sabiam da festa de São João. Mas celebravam com pompa e
circunstância o Solstício de verão, que o calendário quase faz coincidir com o
dia do santo. Naquela grande festa de homenagem à Deusa-Mãe Natureza, os celtas
faziam fogueiras e ofereciam ervas aromáticas à divindade (hoje queima-se incenso
perante Deus e seus símbolos). Os festejos de S. João (como os de muitos outros santos) recuperaram este
ritual.
As ervas aromáticas que são queimadas variam consoante a latitude
do globo – o alho-porro pode ter como alternativa a alcachofra –, mas a origem
do ritual tem um fim comum: espantar o mau olhado, garantir proteção para todo o
ano e homenagear a fecundidade dos seres humanos e as culturas agrícolas. Tudo
em honra da grande Deusa-Mãe – a Natureza que tudo nos dá e garante a
sobrevivência das espécies.
Nas fogueiras queimavam-se ervas aromáticas em “louvor do fogo”,
elemento tão necessário à vida quotidiana. E, com o passar do tempo, adotou-se
o aroma dos manjericos, do rosmaninho e do alecrim. São João e Santo António
partilham estas cheirosas plantas que abençoam os amores e a fecundidade. A
carga fálica associada aos manjericos surge com a quadra que os acompanha,
quadra que tem a mensagem que o oferente do manjerico quer transmitir.
No século XIX havia muitos terrenos abandonados à volta do Porto
onde o alho-porro crescia a eito. Na noite de São João, as pessoas colhiam um
alho-porro e batiam com ele na cabeça daqueles com quem se cruzavam. Era uma forma
de saudação. E as rusgas (canções populares) reforçaram-lhe a conotação fálica. O alho-porro é o alho
francês que se consome na alimentação, mas o que se usa para a noite do santo
está espigado.
O alho-francês (allium porrum ou allium ampeloprasum var. porrum) pertence à família (alliaceae) das as cebolas e alhos. Há as variantes allium ampeloprasum var. ampeloprasum,
cultivado devido ao uso dos seus bolbos e
o allium
kurrat, cujas folhas são apreciadas no Egito e Médio Oriente. É conhecido pelos
termos: alho-francês, alho-macho, alho-poró, alho-porró, alhoporrô, poró, porro, porró, porrô, porro-bravo e porro-hortense.
Em algumas regiões, é conhecido como cebola-poró, devido à sua semelhança com
este vegetal.
Em
vez de formar um bulbo arredondado, como a cebola, o alho-poró produz um longo
cilindro de folhas encaixadas umas nas outras, esbranquiçadas na zona
subterrânea, sendo esta a parte a mais utilizada na culinária, podendo a parte
verde ser utilizada, por exemplo, em sopas. Para o bulbo ficar de cor branca é
necessário proceder à “amontoa”, cerca de 30 dias antes da colheita. Tal
operação consiste em soterrar quase por completo a planta.
São
geralmente semeados em canteiros, em estufas,
dos quais se retiram as mudas, que se encontram no mercado e se transplantam
para hortas, ficando plantas deveras
resistentes. Existe um conjunto de variedades particularmente adaptadas ao frio
e que se mantêm prontas para consumo no inverno.
Resistem mais à geada que a cebola. As plantas adaptam-se facilmente a qualquer
tipo de solo, embora prefiram solo pouco
ácido ou sensivelmente neutro. E é de aconselhar também que o solo seja bem
drenado.
Em
geral, subdividem-se as variedades cultivares de alho-francês em alho-francês
de inverno e de verão. Enquanto o alho-francês de verão é plantado com vista a
uma colheita rápida, o de inverno é geralmente colhido até à primavera seguinte
ao ano em que é plantado. As variedades de verão são geralmente de menor porte
e têm um sabor menos intenso que as variedades de inverno.
De
sabor mais suave que a cebola, o alho-francês é muito usado na culinária, sendo
um ingrediente da famosa vichyssoise. Podem também ser
utilizados crus em saladas.
Como
um dos símbolos nacionais do País de Gales desde épocas antigas, é um alimento ali
vastamente utilizado. Um dos pratos tradicionais é o Cawn cennin, uma sopa preparada para
uma data comemorativa desde há vários séculos. Mas o alho-porro era já
utilizado pelos antigos Egípcios,
Gregos e Romanos, que depois
levaram o vegetal a diversas partes da Europa.
No
País de Gales, faz parte dos rituais do dia de São David, em que é tradição os
galeses envergarem a planta. De acordo com a mitologia daquele país, São David ordenou aos soldados galeses que
envergassem a planta nos elmos numa
batalha contra os Saxões que
teria ocorrido num campo de alhos-porros. É provável que esta lenda tenha sido
concebida pelo poeta inglês Michael
Drayton. Por exemplo, Shakespeare refere-se
à tradição de envergar o alho-porro na peça Henrique V, onde Henrique diz a Fluellen que está
envergando o alho-porro: “for I am Welsh,
you know, good countryman” (“porque sou galês, bem sabes, caro compatriota”).
***
E,
assim, fica o São João da sobriedade austera, precursor do Messias Salvador,
ofuscado na penumbra da folia a servir de pretexto para a diversão, nem sempre
inocente, dum povo cuja fé se esquece tantas vezes do essencial – a assembleia
eucarística celebrativa do Cristo morto e ressuscitado como rampa de lançamento
para a prática diária da justiça e da solidariedade em partilha de irmãos.
2017.06.26 –
Louro de Carvalho
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