Vasco Sacramento (neto de Mário Sacramento, grande nome da história contemporânea de Aveiro,
médico, resistente antifascista, várias vezes preso pelo regime de Salazar) deitou-se, a 17 de junho, o sábado dos
incêndios, impressionado com o que vira nas televisões e acordou com mensagens
de pânico no telemóvel. Era-lhe impossível ficar quieto, pelo que provocou o
movimento que desemboca no esgotadíssimo concerto do dia 27, que todas as
televisões e rádios transmitiram.
O próprio Vasco Sacramento, de 39 anos, promotor de
concertos, responsável pela Sons em
Trânsito, deu o primeiro sinal exterior de que algo poderia estar para
acontecer, quando, às 20,47 horas do dia seguinte, escrevia na sua página de
Facebook o que lhe ia na alma. Impressionado, começou por dizer que, na manhã
daquele domingo, não conseguira “ficar parado com as notícias e as imagens que
chegavam de Pedrógão Grande”. E continuou:
“Arregacei as mangas e desafiei a MEO
Arena, algumas empresas parceiras e muitos dos principais artistas nacionais.
Não tive uma única resposta negativa, para além daqueles que, infelizmente, não
dispunham de agenda. Dia 27, teremos um concerto com mais de 20 artistas e
transmitido em direto pela RTP, que também se associou imediatamente.
Obviamente que ninguém vai ganhar um tostão com isto e todas as receitas
obtidas reverterão para o apoio às vítimas e à reconstrução das áreas afetadas.
Mais informações nas próximas horas. Agora é preciso encher o MEO Arena.”.
Foi o começo duma iniciativa empenhada e emocionante.
Logo na manhã do dia 19, o Expresso falou
com Vasco, para este contar o que estava a acontecer. Ciente da delicadeza
sempre contida numa iniciativa deste tipo, Sacramento optou naquele dia, como
nos dias seguintes, por não falar, pois não queria assumir qualquer
protagonismo suscetível de ser mal interpretado. Interessava-lhe assegurar a
realização do concerto e nada fazer para pôr qualquer espécie de grão de areia
na engrenagem. Mas acabou por, momentos antes do concerto, se dispor a contar
como tudo sucedeu. Se no sábado do início da tragédia foi dormir já muito impressionado,
no domingo apercebeu-se da troca de mensagens entre pessoas que habitualmente
com ele trabalham e aconteceu o seguinte:
“Começo a perceber que há amigos comuns
desaparecidos, outros com as casas destruídas e sinto a necessidade de fazer
algo”.
Telefonou aos responsáveis do MEO Arena “para saber se
tinha ajuda e se estariam comigo” e “disseram imediatamente que sim”. Porém,
começando a colocar-se o problema da logística necessária a iniciativa desta
dimensão, foi preciso conversar muito e em várias frentes. Hoje estarão a
trabalhar na maior sala de concertos lisboeta mais de 900 pessoas, todos
solidários: “ninguém vai receber um cêntimo; e estarão lá técnicos de todo o
tipo, profissionais de incontáveis áreas”, porque “há na verdade um imenso
trabalho acrescido, resultante do facto de o concerto ser transmitido por todas
as televisões”. No dito comentário no Facebook, só falava na RTP, mas tinha a
grande ambição de reunir todas as televisões. E agora disse:
“Nunca imaginei que assumisse estas
proporções. Achava quase impossível ter todos os canais de televisão a
transmitir, mas fomos ainda mais longe ao conseguir reunir também as rádios,
todos unidos neste esforço solidário”.
Importante era a questão dos artistas. Sacramento
representa alguns dos principais nomes nacionais, com Ana Moura à cabeça. Depressa
percebe que os Amor Eletro estavam a colocar de pé algo de parecido e logo se estabelece
contacto para unir esforços. Foi assim que na noite do dia 27 se tornou
possível ver e ouvir artistas tão diversos como: Agir, Amor Eletro, Ana
Moura, Áurea, Carlos do Carmo e Camané, Carminho, D.A.M.A., David Fonseca,
Diogo Piçarra, Gisela João, Jorge Palma e Sérgio Godinho, Luís Represas e João
Gil, Helder Moutinho, Luísa Sobral, Matias Damásio, Miguel Araújo, Paulo Gonzo,
Pedro Abrunhosa, Raquel Tavares, Rita Redshoes,
Rui Veloso e Salvador Sobral (que não devia ter dito o que disse no fim). O cartaz ficou concluído em duas ou três
horas – rapidez de que resultou a impossibilidade de integrar no alinhamento
muitos outros artistas que se disponibilizaram. Foram centenas que ficaram de
fora, porque era inviável estar a pensar num espetáculo com muito mais do que
os 25 que subiram ao palco. Ainda assim o espetáculo durou mais de três horas.
“Juntos Por Todos”, iniciativa
coproduzida pela Sons em Trânsito, Nação Valente, Meo Arena, Blueticket, RTP, SIC
e TVI, contou com a generosidade e
solidariedade de numerosas empresas e parceiros e, ainda, com o contributo das
editoras Sony Music Portugal, Universal Music Portugal, Valentim de Carvalho e
Warner Music Portugal na sua divulgação artística e o Alto Comissariado da
Fundação Calouste Gulbenkian. As verbas arrecadadas serão entregues à UMP (União das Misericórdias de Portugal), porque não se queria “beneficiar apenas um concelho ou uma situação
específica” e porque são as misericórdias quem está “no terreno a fazer o
levantamento das necessidades, além de estarem a gerir o fundo de meio milhão
de euros atribuído pela Fundação Gulbenkian”. E, ao comentar tudo quanto se tem
estado a passar nos últimos dias, Sacramento diz ser ainda cedo para se
perceber até que ponto estes acontecimentos estão a transformá-lo. Não obstante,
declarou ao Expresso:
“Estou ainda tão anestesiado com tudo e
com a montagem desta operação que não dá para perceber de que forma é que isto
nos afeta ou transforma”.
Já durante o concerto declarou saber que organizar
espetáculos “é sempre algo de efémero”. Porém, “aqui sabemos que estamos a
contribuir para algo mais sólido, mais permanente”, pois, os problemas são tão
vastos que, se conseguirmos ajudar a que uma casa se erga, que um posto de
trabalho se mantenha, já sentiremos que valeu a pena”. E, questionado se
esperava um espetáculo com esta dimensão, respondeu que esperava um espetáculo
grande, mas que lhe caiu no colo um espetáculo gigante.
***
Na noite de
27, no Meo Arena, em Lisboa, assisti pela TV ao concerto especial de 25
artistas portugueses, já referidos, num espetáculo
montando apenas numa semana, cuja receita reverte a favor das vítimas do
incêndio de Pedrógão Grande e similares, que angariou 1 153 000 euros,
dinheiro (além
do dos bilhetes
e bilhetes-participação) que ajudará a pessoas atingidas
em diversas vertentes da subsistência. Na plateia, entre as 14 mil pessoas, que
homenagearam com um aplauso de pé os bombeiros, estavam o Presidente da
República (em cuja pessoa a UMP agradeceu a Portugal esta bela iniciativa
de solidariedade) e o Presidente da Assembleia da República, que disse:
“É importante que estejamos juntos o ano inteiro e não apenas nestas
ocasiões”.
Outros
testemunhos surgiram da parte de artistas, apresentadores e outros.
Destacam-se, a seguir, palavras de artistas e do Presidente da União das
Misericórdias de Portugal.
Carminho
resumiu o espírito geral dos músicos que se apresentaram em palco, garantindo
que estavam ali para lá do que representam e do percurso individual de cada um:
“Estamos aqui para ajudar a vida das
pessoas que sozinhas não conseguem fazer a reconstrução”. E David Fonseca, de
Leiria, disse que o choque da tragédia de Pedrógão “não foi um choque
regional”:
“Somos um país pequeno,
mas temos uma ideia de comunidade muito forte. Quando acontece algo, isto que
aconteceu, temos uma extraordinária capacidade de ajudar.”.
Por
seu turno, Gisela João entrou em palco, pedindo: “vamos todos dançar pelos bombeiros portugueses”. E, quando começou
a interpretação de “Sr. Extraterrestre”,
disse:
“Acredito em todos os
portugueses que estão aqui neste momento, acredito de coração”.
E
recordou ainda a mensagem de uma bombeira, que integrava o batalhão do bombeiro
que morreu durante o combate às chamas:
“Ela queria fazer uma
última homenagem a esse bombeiro, tive que me certificar de que ela estava
aqui”.
Helder
Moutinho reforçou a necessidade de acabar com “alguns negócios que estão por
trás disto tudo, de forma a que isto não aconteça”, referindo-se à “tragédia
dos incêndios”. E Luís Represas, depois de interpretar, com João Gil, “Memórias de um Beijo”, dos Trovante, disse:
“Não é novidade que os
portugueses estão presentes quando são chamados a isso”.
“Afinal veio gente”, exclamou Sérgio
Godinho ao começar o dueto que protagonizou com Jorge Palma, num medley que
juntou “Portugal Portugal”, do
segundo, e “O Primeiro Dia”, do
primeiro. Jorge Palma recordou:
“Há um ano estava a
fazer um concerto em Pedrógão, na semana passada fiquei horrorizado. A
prevenção, precisamos de gastar o dinheiro que for preciso para que isto não
volte acontecer.”.
E
Sérgio Godinho afirmou que “é sempre
preciso lembrar os bombeiros”.
Por
seu turno, Luísa Sobral, uma das vozes em cartaz, confessou não estar previsto
falar antes de cantar “Cupido” (acompanhada por Mário
Delgado à guitarra), mas foi isso que fez:
“Normalmente, para um
espetáculo deste tamanho são necessários alguns meses. Neste caso, foi tudo
feito numa semana. Acabamos por ser nós a dar a cara. Eu dormi bem esta semana,
mas as pessoas que organizaram isto mal dormiram.”
E
falou sobre todos os músicos que não estiveram no Meo Arena, mas que gostariam
de estar.
“Estamos
aqui porque, quando é preciso. as pessoas juntam-se.” Miguel Araújo cantou “Anda Comigo Ver os Aviões” e assumiu que
para lá das canções, “as palavras falham nestes momentos”. Antes, cantou Matias
Damásio. E Paulo Gonzo cantou “Sei-te de
cor”: “A música é sempre uma boa causa e ajuda a mudar as coisas. A música
pode ajudar a cicatrizar a dor”.
“A
tempestade há de passar” é o 1.º verso de “Toma
Conta de Mim”, que Pedro Abrunhosa levou ao Meo Arena. “Que saibamos tomar
conta uns dos outros nos momentos mais aflitivos da nossa vida”, disse a meio
do tema e confessou: “A música acaba por ser um abraço invisível, mesmo com vontades
e crenças diferentes”. Logo a seguir, cantou Raquel Tavares, que disse:
“Esta noite significa
que as pessoas de Pedrógão não estão sozinhas. E prometemos que não nos vamos
esquecer deles.”
Por sua vez, Rita Redshoes, que escolheu o tema “Mulher”, apontou o fundamental:
“Esta noite é muito bonita, mas não podemos esquecer
porque estamos aqui. Há responsabilidades políticas e individuais que têm de
ser apuradas. Só isso é que devolve o respeito à memória dos que não ficaram
cá. Como cidadãos temos que exigir justiça por essas pessoas.”.
Depois de “Primeiro Beijo”, Rui
Veloso deixou “um recado para os nossos políticos, que tanto falam, tanto põem
as culpas nuns como põem nos outros” e disse:
“Já toda a gente ouviu essa conversa, mas nós temos
que nos unir e resolver a questão de uma vez por todas. O país e os homens
estão a ser destruídos.”
E Salvador Sobral foi o último a atuar sozinho, com despedida em grande. E,
em vez de cantar primeiro “Amar Pelos
Dois”, a canção com a qual ganhou o Eurofestival, apresentou antes uma
versão de “A Case of You”, de Joni
Mitchell. Depois, atirou-se ao sucesso entoado em coro pelos 14 mil que
esgotaram o Meo Arena, a cantar já não a amar
pelos dois, mas por todos.
E o Presidente da UMP interveio a meio do concerto em postura de gratidão e
garantia de que a UMP está no terreno, conhece as populações e, após esta fase
de emergência e luto, acabará o levantamento das reais necessidades e gastará
bem todos os cêntimos que administra, suscitando a colaboração de todas as
entidades. E, no fim, agradeceu emocionado a todo o país.
2017.06.27 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário