Esta é a grande asserção papal – a que junta a de que
“a Igreja sairá das tempestades mais bela e purificada” – no seu discurso
aos membros da Cúria Romana, por ocasião do Natal, em que destacou “as aflições e as alegrias na Igreja”.
Efetivamente, Francisco recebeu, na
manhã do dia 21, os seus colaboradores da Cúria Romana, para as felicitações de
Natal – uma das audiências mais tradicionais e aguardadas do ano. Como nos anos
precedentes, o Pontífice fez um discurso franco, procedendo ao levantamento de
algumas das mazelas e das alegrias que afligem o trabalho de quem se dedica à
Igreja.
Considerando
que, num mundo em turbulência que marcou este ano, “a barca da Igreja” viveu e vive momentos difíceis, “acometida por
tempestades e furacões”,
mas, entretanto, a Esposa de Cristo prossegue a sua
peregrinação entre alegrias e aflições, sucessos e dificuldades, externas e
internas, sendo que “as dificuldades internas continuam sempre a ser as mais
dolorosas e destrutivas”. Muitos questionam o Mestre,
que parece dormir, se não se importa com a nossa perda (cf Mc 4,38); outros, atordoados pelas notícias, perdem a confiança e abandonam; outros,
por medo, interesse ou segundas intenções, tentam espancar o corpo eclesial
aumentando-lhe as feridas; outros não escondem a satisfação em vê-la
abalada; porém, muitos, continuam a apegar-se à certeza da vitória do
Evangelho (“as portas do inferno não prevalecerão
contra ela”, Mt 16,18).
***
Para o Santo Padre, são muitas
as aflições, entre as quais emergem a situações dos migrantes que
encontram a morte ou os que, ao sobreviverem, acham as portas fechadas, mercê
do medo e do preconceito (os
demais seres humanos estão envolvidos em conquista política e poder), a que se juntam os cenários
dramáticos das pessoas, mormente crianças, que morrem diariamente por falta de
água, comida e remédios, dos frágeis, especialmente mulheres, que sofrem a
exploração, a extorsão, a violência ou das pessoas que são sistematicamente
torturadas em diversos cenários de guerras, declaradas e não declaradas, em
delegacias de polícia, prisões e campos de refugiados em diferentes partes do
mundo.
E Francisco não se esqueceu de que se
vive hoje uma “nova era de mártires” e disse que “a cruel e atroz perseguição
do Império Romano parece não conhecer fim”. E explicitou:
“Novos Neros nascem continuamente para
oprimir os crentes, somente por causa da sua fé em Cristo. Novos grupos
extremistas estão a multiplicar-se visando igrejas, locais de culto, ministros
e fiéis simples. Novos e antigos círculos e conventículos vivem a
alimentar-se de ódio e hostilidade a Cristo, à Igreja, aos
crentes. Quantos cristãos ainda vivem hoje sob o peso da perseguição,
marginalização, discriminação e injustiça em muitas partes do mundo! No
entanto, continuam corajosamente a abraçar a morte para não negar a
Cristo. Quão difícil é hoje viver a fé livremente em muitas partes do
mundo onde a liberdade religiosa e a liberdade de consciência estão em falta!”.
Outro
motivo de aflição apontado pelo Papa é o contratestemunho e os escândalos de
alguns filhos e ministros da Igreja através do flagelo dos abusos e da
infidelidade.
“Desde há vários anos que a Igreja
está seriamente empenhada em erradicar o mal dos abusos”, disse o Pontífice,
que salientou o facto de haver “homens
consagrados a cometer abomínios” e, ao mesmo tempo, continuar “a exercer o seu ministério como se nada
tivesse acontecido, não temendo a Deus nem o seu juízo, mas apenas ser
descobertos e desmascarados”.
Como o rei
David – ungido do Senhor – apesar de
ser eleitos, cometem um triplo pecado, isto é três graves abusos juntos: o
abuso sexual, o abuso de poder e o abuso de consciência. A história começa
quando o rei, apesar de ser especialista em guerra, fica em casa ocioso em vez
de ir para o meio do povo de Deus em batalha. Aproveita, por sua
conveniência e interesse, o facto de ser o rei (abuso de poder), para se abandonar ao conforto (começa o declínio
moral e de consciência), contexto em
que, do terraço do palácio, vê a esposa de Urias a tomar banho e sente atração
por ela. Manda-a vir até junto de si e une-se com ela (abuso de
poder e abuso sexual). E,
para encobrir o seu pecado, manda que Urias regresse da batalha a casa e tenta
em vão convencê-lo a passar a noite com a esposa. Como o seu intento não
resultou, manda que o chefe do exército exponha Urias a morte certa na frente
da batalha (abuso de poder, abuso de consciência). Assim,
a cadeia do pecado se rapidamente espalha e se transforma em rede de
corrupção. Mas ele ficou em casa para ocioso. Das faíscas de preguiça e
luxúria e da redução da guarda, começa a cadeia diabólica de
pecados graves: adultério, mentiras e assassinato. Assumindo-se, sendo
rei, como capaz de fazer tudo e obter tudo, David tenta enganar o marido de Betsabé,
o povo, a si mesmo e a Deus. Negligenciando o relacionamento com Deus, transgride
os mandamentos divinos e fere a sua integridade moral – sempre sem se sentir
culpado. E o ungido continua a
exercer a sua missão como se nada tivesse acontecido. Só lhe importa
salvaguardar a imagem e a aparência. E o Papa, vendo em David a imagem dos
ungidos abusadores, comentou:
“Aqueles que não percebem que estão a
cometer sérios delitos contra a Lei de Deus podem incorrer numa espécie de
atordoamento ou torpor. Como não encontram nada grave para se recriminarem,
não sentem a indiferença que pouco a pouco está a apoderar-se de si, tomando
posse da sua vida espiritual e acabam por se encouraçar e corromper (Exortação
Apostólica Gaudete et exsultate,
164). De pecadores acabam por se
tornar corruptos.”
Mas avisou:
“Fique
claro que a Igreja, perante estes abomínios, não poupará esforços fazendo tudo
o que for necessário para entregar à justiça toda a pessoa que tenha cometido
tais delitos. (...) Esta é a opção e a decisão de toda a Igreja.”.
A propósito, citou o encontro
agendado para fevereiro próximo, no Vaticano, com todos os presidentes das
Conferências Episcopais, para reiterar a vontade da Igreja de prosseguir pelo
“caminho da purificação”, tal como agradeceu o trabalho dos jornalistas “que
foram honestos e objetivos e que procuraram desmascarar estes lobos e dar voz
às vítimas”. E exortou:
“Por
favor, ajudemos a Santa Mãe Igreja na sua tarefa difícil, que é reconhecer os
casos verdadeiros distinguindo-os dos falsos, as acusações das calúnias, os
rancores das insinuações, os boatos das difamações”.
Aos abusadores, pediu conversão, autoentrega
à justiça humana e preparação para a divina.
Outra aflição apontada por Francisco
é a da infidelidade. É a das pessoas que “traem a sua vocação, o seu juramento,
a sua missão, a sua consagração a Deus e à Igreja; dos que se escondem, por
detrás de boas intenções” (de boas intenções está o inferno cheio, disse o Papa citando o provérbio popular) “para apunhalar os seus irmãos e
semear joio, divisão e perplexidade; e das pessoas que sempre encontram
justificações, até lógicas e espirituais, para continuar a percorrer,
imperturbáveis, o caminho da perdição”.
Ora, para fazer resplandecer a luz de
Cristo, o Papa recorda que todos temos o dever de combater a “corrupção
espiritual”. E destaca o
exemplo dos mártires e dos muitos bons samaritanos: muitos jovens,
famílias, movimentos de caridade e voluntariado, fiéis e consagrados.
***
Francisco deixou para o final do seu
discurso os motivos de alegrias, em que destacou “o bom
êxito do Sínodo dedicado aos jovens” e “os passos realizados até agora na reforma
da Cúria”, alguns dos quais são os trabalhos de clarificação e transparência na
economia”. Mas também são motivos de alegrias os novos Beatos e Santos, de modo
especial os recentes 19 mártires da Argélia. Acrescenta-se o aumento do número
de fiéis, as famílias e os pais que seriamente vivem a fé e a transmitem
diariamente aos próprios filhos e o testemunho de muitos jovens que escolhem
“corajosamente” a vida consagrada e o sacerdócio. E “um verdadeiro motivo de
alegria é também o grande número de consagrados e consagradas, bispos e
sacerdotes, que vivem diariamente a sua vocação com fidelidade, em silêncio, na
santidade e abnegação” – pessoas que “iluminam a escuridão da humanidade, com o
seu testemunho de fé, esperança e caridade”. E o Papa Bergoglio especifica:
“São […] pessoas que, por amor de Cristo e do seu Evangelho, trabalham
pacientemente a favor dos pobres, oprimidos e marginalizados, sem procurar
aparecer nas primeiras páginas dos jornais nem ocupar os primeiros lugares.
Pessoas que, deixando tudo e oferecendo a sua vida, levam a luz da fé aonde
Cristo está abandonado, sequioso, faminto, preso e nu (cf Mt 25,31-46). E penso de modo particular nos numerosos
párocos que dia a dia dão bom exemplo ao povo de Deus, sacerdotes próximos das
famílias, que conhecem o nome de todos e vivem a sua vida com simplicidade, fé,
zelo, santidade e caridade. Pessoas esquecidas pelos mass media, mas sem as quais
reinaria a escuridão.”.
O Santo Padre recordou que a força de
toda e qualquer instituição não reside em ser composta por homens perfeitos,
mas na sua vontade de se purificar continuamente, pelo que declarou:
“É necessário abrir o nosso coração à
verdadeira luz: Jesus Cristo. Ele é a luz que pode iluminar a vida e transformar
as nossas trevas em luz”.
E concluiu com uma mensagem de
esperança, recordando que o Natal dá a certeza de que “a Igreja sairá destas
tribulações ainda mais bela, purificada e esplêndida” e dizendo a propósito:
“Cada ano, o Natal dá-nos a certeza de que a luz de Deus, não obstante a
nossa miséria humana, continuará a brilhar; a certeza de que a Igreja sairá
destas tribulações ainda mais bela, purificada e esplêndida. Com efeito, todos
os pecados, as quedas e o mal cometido por alguns filhos da Igreja não poderão
jamais obscurecer a beleza do seu rosto; antes, são a prova certa de que a sua
força não se encontra em nós, mas está sobretudo em Cristo Jesus, Salvador do mundo e Luz do universo, que ama a Igreja
e deu a sua vida por ela, sua esposa. O Natal prova que os graves males
cometidos por alguns não poderão jamais ofuscar todo o bem que a Igreja faz
gratuitamente no mundo. O Natal dá-nos a certeza de que a verdadeira força da
Igreja e do nosso trabalho diário, tantas vezes escondido como o da Cúria –
nela há santos –, está no Espírito Santo que a guia e protege através dos
séculos, transformando até os pecados em ocasiões de perdão, as quedas em
ocasiões de renovamento, o mal em ocasião de purificação e vitória.”.
***
Greg
Burke, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, comentou este discurso do Pontífice,
apontando-o como uma espécie de preparação para a reunião de fevereiro sobre a
proteção dos menores, pois, Francisco falou dos abusos e não usou meias palavras,
frisando que os sacerdotes abusadores fazem parte de uma rede de corrupção, são
lobos que devoram almas inocentes”, e fez menção explícita dessa reunião.
E poderia
ter frisado que o Papa disse que o combate aos abusos era ação de toda a
Igreja, que estará representada na reunião de fevereiro peso presidentes das conferências
episcopais do mundo inteiro.
Depois, Greg
Burke sublinhou o facto de o Santo Padre ter elogiado o trabalho dos
jornalistas”, agradecendo aos que foram honestos e objetivos na descoberta dos
casos de padres predadores e em dar voz às vítimas.
E registou,
no seu comentário, as linhas-mestras do discurso: tempestades e furacões; aflições;
e alegrias – não deixando de relevar o sentido espiritual e pastoral do Natal.
***
Por fim,
atentemos no drama problemático do primeiro Natal, como o retrata Francisco:
“Jesus, na realidade, nasce em uma situação sociopolítica
e religiosa cheia de tensão, agitação e obscuridade. O seu nascimento, de
um lado aguardado e do outro rejeitado, resume a lógica divina que
não se detém diante do mal, antes o transforma radical e gradualmente em bom, e
a lógica maligna que transforma até o bem em mal, para fazer
com que a humanidade permaneça em desespero e escuridão: “a luz brilha nas
trevas, mas as trevas não a receberam.” (Jo 1,5).
E as certezas salvíficas que nos dá o
Natal:
“O Natal é a festa que
nos enche de alegria, dando-nos a certeza de que jamais pecado algum será maior
que a misericórdia de Deus e nunca poderá qualquer ato humano impedir à aurora
da luz divina de despontar
sempre de novo nos corações dos homens; é a festa que nos convida a renovar o
compromisso evangélico de anunciar Cristo, Salvador do mundo e luz do universo. De facto, enquanto
Cristo, ‘santo, inocente, imaculado (Heb 7,26), não
conheceu o pecado (cf 2Cor 5,21), mas
veio apenas expiar os pecados do povo (cf Heb 2,17), a
Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre
necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação.
A Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações
de Deus’ [no meio das perseguições do
espírito mundano e das consolações do Espírito de Deus], anunciando a
cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf 1Cor 11,26). Mas é robustecida pela força do Senhor
ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas
aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas
fielmente, o seu mistério, até que, por fim, se manifeste em plena luz’ (Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium ,
8).”.
***
É um discurso em que, ao invés dos anteriores,
não se vislumbra um ponto de crítica endereçada ao interior da Cúria Romana. Talvez
Francisco tenha assumido que ficara cumprido o dever de falar, que não valeria
a pena insistir nas críticas ou que a reforma interna da Cúria vai no bom
sentido, com pessoas escolhidas e mais aplicadas, e que pretende mobilizá-la em
bloco e com a participação de cada um para reforma sempre in fieri da
Igreja.
2018.12.22 – Louro de Carvalho
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