sábado, 22 de dezembro de 2018

Apesar das misérias humanas, a luz de Deus continua a brilhar no Natal


Esta é a grande asserção papal – a que junta a de que “a Igreja sairá das tempestades mais bela e purificada” – no seu discurso aos membros da Cúria Romana, por ocasião do Natal, em que destacou “as aflições e as alegrias na Igreja”.
Efetivamente, Francisco recebeu, na manhã do dia 21, os seus colaboradores da Cúria Romana, para as felicitações de Natal – uma das audiências mais tradicionais e aguardadas do ano. Como nos anos precedentes, o Pontífice fez um discurso franco, procedendo ao levantamento de algumas das mazelas e das alegrias que afligem o trabalho de quem se dedica à Igreja.
Considerando que, num mundo em turbulência que marcou este ano, “a barca da Igreja” viveu e vive momentos difíceis, “acometida por tempestades e furacões”, mas, entretanto, a Esposa de Cristo prossegue a sua peregrinação entre alegrias e aflições, sucessos e dificuldades, externas e internas, sendo que “as dificuldades internas continuam sempre a ser as mais dolorosas e destrutivas”. Muitos questionam o Mestre, que parece dormir, se não se importa com a nossa perda (cf Mc 4,38); outros, atordoados pelas notícias, perdem a confiança e abandonam; outros, por medo, interesse ou segundas intenções, tentam espancar o corpo eclesial aumentando-lhe as feridas; outros não escondem a satisfação em vê-la abalada; porém, muitos, continuam a apegar-se à certeza da vitória do Evangelho (“as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, Mt 16,18).

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Para o Santo Padre, são muitas as aflições, entre as quais emergem a situações dos migrantes que encontram a morte ou os que, ao sobreviverem, acham as portas fechadas, mercê do medo e do preconceito (os demais seres humanos estão envolvidos em conquista política e poder), a que se juntam os cenários dramáticos das pessoas, mormente crianças, que morrem diariamente por falta de água, comida e remédios, dos frágeis, especialmente mulheres, que sofrem a exploração, a extorsão, a violência ou das pessoas que são sistematicamente torturadas em diversos cenários de guerras, declaradas e não declaradas, em delegacias de polícia, prisões e campos de refugiados em diferentes partes do mundo.
E Francisco não se esqueceu de que se vive hoje uma “nova era de mártires” e disse que “a cruel e atroz perseguição do Império Romano parece não conhecer fim”. E explicitou:
Novos Neros nascem continuamente para oprimir os crentes, somente por causa da sua fé em Cristo. Novos grupos extremistas estão a multiplicar-se visando igrejas, locais de culto, ministros e fiéis simples. Novos e antigos círculos e conventículos vivem a alimentar-se de ódio e hostilidade a Cristo, à Igreja, aos crentes. Quantos cristãos ainda vivem hoje sob o peso da perseguição, marginalização, discriminação e injustiça em muitas partes do mundo! No entanto, continuam corajosamente a abraçar a morte para não negar a Cristo. Quão difícil é hoje viver a fé livremente em muitas partes do mundo onde a liberdade religiosa e a liberdade de consciência estão em falta!”.
Outro motivo de aflição apontado pelo Papa é o contratestemunho e os escândalos de alguns filhos e ministros da Igreja através do flagelo dos abusos e da infidelidade.
“Desde há vários anos que a Igreja está seriamente empenhada em erradicar o mal dos abusos”, disse o Pontífice, que salientou o facto de haver “homens consagrados a cometer abomínios” e, ao mesmo tempo, continuar “a exercer o seu ministério como se nada tivesse acontecido, não temendo a Deus nem o seu juízo, mas apenas ser descobertos e desmascarados”.
Como o rei David – ungido do Senhor – apesar de ser eleitos, cometem um triplo pecado, isto é três graves abusos juntos: o abuso sexual, o abuso de poder e o abuso de consciência. A história começa quando o rei, apesar de ser especialista em guerra, fica em casa ocioso em vez de ir para o meio do povo de Deus em batalha. Aproveita, por sua conveniência e interesse, o facto de ser o rei (abuso de poder), para se abandonar ao conforto (começa o declínio moral e de consciência), contexto em que, do terraço do palácio, vê a esposa de Urias a tomar banho e sente atração por ela. Manda-a vir até junto de si e une-se com ela (abuso de poder e abuso sexual). E, para encobrir o seu pecado, manda que Urias regresse da batalha a casa e tenta em vão convencê-lo a passar a noite com a esposa. Como o seu intento não resultou, manda que o chefe do exército exponha Urias a morte certa na frente da batalha (abuso de poder, abuso de consciência). Assim, a cadeia do pecado se rapidamente espalha e se transforma em rede de corrupção. Mas ele ficou em casa para ocioso. Das faíscas de preguiça e luxúria e da redução da guarda, começa a cadeia diabólica de pecados graves: adultério, mentiras e assassinato. Assumindo-se, sendo rei, como capaz de fazer tudo e obter tudo, David tenta enganar o marido de Betsabé, o povo, a si mesmo e a Deus. Negligenciando o relacionamento com Deus, transgride os mandamentos divinos e fere a sua integridade moral – sempre sem se sentir culpado. E o ungido continua a exercer a sua missão como se nada tivesse acontecido. Só lhe importa salvaguardar a imagem e a aparência. E o Papa, vendo em David a imagem dos ungidos abusadores, comentou:
Aqueles que não percebem que estão a cometer sérios delitos contra a Lei de Deus podem incorrer numa espécie de atordoamento ou torpor. Como não encontram nada grave para se recriminarem, não sentem a indiferença que pouco a pouco está a apoderar-se de si, tomando posse da sua vida espiritual e acabam por se encouraçar e corromper (Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, 164). De pecadores acabam por se tornar corruptos.
Mas avisou:
 Fique claro que a Igreja, perante estes abomínios, não poupará esforços fazendo tudo o que for necessário para entregar à justiça toda a pessoa que tenha cometido tais delitos. (...) Esta é a opção e a decisão de toda a Igreja.”.
A propósito, citou o encontro agendado para fevereiro próximo, no Vaticano, com todos os presidentes das Conferências Episcopais, para reiterar a vontade da Igreja de prosseguir pelo “caminho da purificação”, tal como agradeceu o trabalho dos jornalistas “que foram honestos e objetivos e que procuraram desmascarar estes lobos e dar voz às vítimas”. E exortou:
Por favor, ajudemos a Santa Mãe Igreja na sua tarefa difícil, que é reconhecer os casos verdadeiros distinguindo-os dos falsos, as acusações das calúnias, os rancores das insinuações, os boatos das difamações”.
Aos abusadores, pediu conversão, autoentrega à justiça humana e preparação para a divina.
Outra aflição apontada por Francisco é a da infidelidade. É a das pessoas que “traem a sua vocação, o seu juramento, a sua missão, a sua consagração a Deus e à Igreja; dos que se escondem, por detrás de boas intenções” (de boas intenções está o inferno cheio, disse o Papa citando o provérbio popular) “para apunhalar os seus irmãos e semear joio, divisão e perplexidade; e das pessoas que sempre encontram justificações, até lógicas e espirituais, para continuar a percorrer, imperturbáveis, o caminho da perdição”.
Ora, para fazer resplandecer a luz de Cristo, o Papa recorda que todos temos o dever de combater a “corrupção espiritual”. E destaca o exemplo dos mártires e dos muitos bons samaritanos: muitos jovens, famílias, movimentos de caridade e voluntariado, fiéis e consagrados.

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Francisco deixou para o final do seu discurso os motivos de alegrias, em que destacou “o bom êxito do Sínodo dedicado aos jovens” e “os passos realizados até agora na reforma da Cúria”, alguns dos quais são os trabalhos de clarificação e transparência na economia”. Mas também são motivos de alegrias os novos Beatos e Santos, de modo especial os recentes 19 mártires da Argélia. Acrescenta-se o aumento do número de fiéis, as famílias e os pais que seriamente vivem a fé e a transmitem diariamente aos próprios filhos e o testemunho de muitos jovens que escolhem “corajosamente” a vida consagrada e o sacerdócio. E “um verdadeiro motivo de alegria é também o grande número de consagrados e consagradas, bispos e sacerdotes, que vivem diariamente a sua vocação com fidelidade, em silêncio, na santidade e abnegação” – pessoas que “iluminam a escuridão da humanidade, com o seu testemunho de fé, esperança e caridade”. E o Papa Bergoglio especifica:
São […] pessoas que, por amor de Cristo e do seu Evangelho, trabalham pacientemente a favor dos pobres, oprimidos e marginalizados, sem procurar aparecer nas primeiras páginas dos jornais nem ocupar os primeiros lugares. Pessoas que, deixando tudo e oferecendo a sua vida, levam a luz da fé aonde Cristo está abandonado, sequioso, faminto, preso e nu (cf Mt 25,31-46). E penso de modo particular nos numerosos párocos que dia a dia dão bom exemplo ao povo de Deus, sacerdotes próximos das famílias, que conhecem o nome de todos e vivem a sua vida com simplicidade, fé, zelo, santidade e caridade. Pessoas esquecidas pelos mass media, mas sem as quais reinaria a escuridão.”.
O Santo Padre recordou que a força de toda e qualquer instituição não reside em ser composta por homens perfeitos, mas na sua vontade de se purificar continuamente, pelo que declarou:
É necessário abrir o nosso coração à verdadeira luz: Jesus Cristo. Ele é a luz que pode iluminar a vida e transformar as nossas trevas em luz”.
E concluiu com uma mensagem de esperança, recordando que o Natal dá a certeza de que “a Igreja sairá destas tribulações ainda mais bela, purificada e esplêndida” e dizendo a propósito:
Cada ano, o Natal dá-nos a certeza de que a luz de Deus, não obstante a nossa miséria humana, continuará a brilhar; a certeza de que a Igreja sairá destas tribulações ainda mais bela, purificada e esplêndida. Com efeito, todos os pecados, as quedas e o mal cometido por alguns filhos da Igreja não poderão jamais obscurecer a beleza do seu rosto; antes, são a prova certa de que a sua força não se encontra em nós, mas está sobretudo em Cristo Jesus, Salvador do mundo e Luz do universo, que ama a Igreja e deu a sua vida por ela, sua esposa. O Natal prova que os graves males cometidos por alguns não poderão jamais ofuscar todo o bem que a Igreja faz gratuitamente no mundo. O Natal dá-nos a certeza de que a verdadeira força da Igreja e do nosso trabalho diário, tantas vezes escondido como o da Cúria – nela há santos –, está no Espírito Santo que a guia e protege através dos séculos, transformando até os pecados em ocasiões de perdão, as quedas em ocasiões de renovamento, o mal em ocasião de purificação e vitória.”.
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Greg Burke, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, comentou este discurso do Pontífice, apontando-o como uma espécie de preparação para a reunião de fevereiro sobre a proteção dos menores, pois, Francisco falou dos abusos e não usou meias palavras, frisando que os sacerdotes abusadores fazem parte de uma rede de corrupção, são lobos que devoram almas inocentes”, e fez menção explícita dessa reunião.
E poderia ter frisado que o Papa disse que o combate aos abusos era ação de toda a Igreja, que estará representada na reunião de fevereiro peso presidentes das conferências episcopais do mundo inteiro.
Depois, Greg Burke sublinhou o facto de o Santo Padre ter elogiado o trabalho dos jornalistas”, agradecendo aos que foram honestos e objetivos na descoberta dos casos de padres predadores e em dar voz às vítimas.
E registou, no seu comentário, as linhas-mestras do discurso: tempestades e furacões; aflições; e alegrias – não deixando de relevar o sentido espiritual e pastoral do Natal.
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Por fim, atentemos no drama problemático do primeiro Natal, como o retrata Francisco:
Jesus, na realidade, nasce em uma situação sociopolítica e religiosa cheia de tensão, agitação e obscuridade. O seu nascimento, de um lado aguardado e do outro rejeitado, resume a lógica divina que não se detém diante do mal, antes o transforma radical e gradualmente em bom, e a lógica maligna que transforma até o bem em mal, para fazer com que a humanidade permaneça em desespero e escuridão: “a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a receberam.” (Jo 1,5).
E as certezas salvíficas que nos dá o Natal:
O Natal é a festa que nos enche de alegria, dando-nos a certeza de que jamais pecado algum será maior que a misericórdia de Deus e nunca poderá qualquer ato humano impedir à aurora da luz divina de despontar sempre de novo nos corações dos homens; é a festa que nos convida a renovar o compromisso evangélico de anunciar Cristo, Salvador do mundo e luz do universo. De facto, enquanto Cristo, ‘santo, inocente, imaculado (Heb 7,26), não conheceu o pecado (cf 2Cor 5,21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf Heb 2,17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus’ [no meio das perseguições do espírito mundano e das consolações do Espírito de Deus], anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf 1Cor 11,26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que, por fim, se manifeste em plena luz’ (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium , 8).”.
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É um discurso em que, ao invés dos anteriores, não se vislumbra um ponto de crítica endereçada ao interior da Cúria Romana. Talvez Francisco tenha assumido que ficara cumprido o dever de falar, que não valeria a pena insistir nas críticas ou que a reforma interna da Cúria vai no bom sentido, com pessoas escolhidas e mais aplicadas, e que pretende mobilizá-la em bloco e com a participação de cada um para reforma sempre in fieri da Igreja.    
2018.12.22 – Louro de Carvalho

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