A notícia foi avançada,
em primeira mão, pela SIC Notícias,
referindo que a antiga provedora da Casa Pia de Lisboa estava doente há alguns
anos e que terá morrido na sequência de uma infeção hospitalar.
Maria
Catalina Batalha Pestana foi a primeira mulher – e a última – a assumir o cargo
de provedora daquela instituição, para o qual foi nomeada pelo então Ministro
da Segurança Social António Bagão Félix, em 2002, na sequência do escândalo de
abusos sexuais que envolveu alunos e um ex-funcionário da instituição. É
lembrada como “mulher de muitas convicções”, “uma força da natureza” e a mulher
que esteve “sempre ao lado dos que não têm voz”.
A antiga provedora foi o rosto da instituição e das crianças vítimas de abuso
sexual durante o processo da Casa Pia. “Nunca
desistiu de combater pelas causas em que acreditava”, como recorda Marcelo
Rebelo de Sousa em nota da Presidência da República, onde se pode ler:
“O
Presidente da República apresenta as suas sentidas condolências à família de
Catalina Pestana nesta hora de luto, recordando a vida de uma mulher que marcou
a luta pelos direitos das crianças em Portugal.
“Foi a primeira mulher a assumir a direção
da centenária Casa Pia de Lisboa, num dos momentos mais difíceis que a
instituição atravessou.
“Catalina Pestana, professora e cuidadora,
nunca desistiu de combater pelas causas em que acreditava, nomeadamente a
defesa das crianças acolhidas. Depois da Casa Pia encarregou-se da refundação
da Casa do Gaiato de Lisboa.
“O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa
recorda a sua coragem no desempenho das funções profissionais e genuinidade com
que tratava todos com quem convivia.”.
***
A antiga
professora, que faleceu aos 72 anos, nasceu em 1946 (em entrevista ao jornal I, diz ter nascido em 1947), cresceu no Barreiro e estudou em
Setúbal antes de entrar para o curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, após o que, aos 24 anos de idade, começou a sua carreira
profissional como professora dum colégio feminino, tendo chegado a ser alvo de
vigia da PIDE, como recorda o Diário
de Notícias, por ser uma das organizadoras dos campos de férias para os
filhos de presos políticos. Um ano depois do 25 de Abril de 1974, assumiu a direção
do Colégio de Santa Catarina, em Lisboa, que estava sob a tutela da Casa Pia de
Lisboa, cargo que exerceu durante mais de uma década (melhor, 12 anos).
Nunca
abandonou o ensino, concluiu o mestrado em Psicologia Educacional, na década de
80 deu aulas na Faculdade de Motricidade Humana e, no início da década de 90,
foi coordenadora nacional do Projeto Vida
de Prevenção da Toxicodependência em Meio Escolar. Em 1998, foi diretora do
Plano para a Eliminação de Exploração do
Trabalho Infantil.
Em dezembro
de 2002, após a exoneração de Luís Rebelo do cargo na sequência do maior
escândalo de abusos sexuais em Portugal, foi convidada pelo Ministro Bagão
Félix para ocupar o cargo de provedora da Casa Pia. Assumiu até ao fim uma
postura de defensora acérrima dos menores que afirmavam ter sido vítimas
de abuso, muito embora insistisse lucidamente que os abusos na Casa Pia não
eram “questão de fé”, mas “de prova”.
Durante o
processo judicial, Catalina foi várias vezes ouvida pelos investigadores e
juízes e manteve a convicção de que as vítimas estavam a dizer a verdade. Em
2003, na sequência da prisão preventiva de Carlos Silvino (conhecido por “Bibi”), a provedora garantia, em entrevista
à agência Lusa, que isso estaria
a contribuir para que mais vítimas relatassem os abusos de que foram vítimas. Em
Tribunal, afirmou que o historial de abusos sexuais na instituição é longo:
“Esta história é longa, não posso dizer se
tem décadas ou mais, nem se houve algum período em que não acontecesse, nem lhe
posso garantir que agora não aconteça”.
Questionada
sobre como classificaria a intensidade do abalo provocada pelo caso, Catalina
respondeu que seria um “terramoto de grau
sete”. E afirmou em tribunal:
“Quando
se fizer a história deste processo, todos verão que, se houvesse legislação que
permitisse investigar tudo o que me foi dito a mim, à Polícia Judiciária e ao
Ministério Público, o terramoto teria consequências devastadoras”.
Permaneceu
à frente da instituição até ao ano de 2007, quando o julgamento do caso Casa Pia
ainda decorria. E, em outubro
de 2007, mais de 5 anos depois de o escândalo ter rebentado, a já ex-provedora
veio a público afirmar que os abusos sexuais na instituição continuavam.
***
A antiga
professora morreu na madrugada do dia 22, vítima de doença, como declarou à
agência Lusa o advogado da Casa Pia.
De acordo com Miguel Matias, Catalina estava internada numa unidade hospitalar
em Lisboa e “morreu durante a noite” vítima de uma infeção generalizada.
O advogado lembrou,
em declarações à Lusa, o “trabalho
gigantesco” (contra muitas dificuldades) da
antiga provedora da Casa Pia de Lisboa na defesa das vítimas de
abusos e da instituição.
Segundo o
jurista, que trabalhou na defesa das vítimas com Catalina, sempre a antiga
provedora enfrentou as dificuldades do processo da Casa Pia “de peito aberto” e
“preocupada com a defesa das crianças, do bom nome da instituição e dos
funcionários”, num período que classificou como “muito conturbado e difícil”,
tendo a provedora tido sempre em mente “a justiça”.
Afirmando ser
uma pessoa com quem teve a sorte e o privilégio de trabalhar e de encetar uma
amizade que ficou para sempre, engrandeceu a imagem que fica “de uma pessoa
amiga, muito determinada, muito boa” e que “soube reunir uma equipa” para levar
a cabo um trabalho de modo que a defesa das crianças fosse “efetivamente
salvaguardada”.
Do seu lado,
o conselho diretivo da Casa Pia de Lisboa destaca, em comunicado, o legado “particularmente
relevante” deixado pela antiga provedora Catalina Pestana na “defesa
intransigente” dos direitos das crianças e jovens.
E Bagão
Félix, o responsável pela nomeação de Catalina como provedora da instituição, também
em declarações à agência Lusa, disse
que “foi uma pessoa admirável, com rosto,
alma e coração”, que “esteve sempre
ao lado dos que não têm voz, não têm poder e que não fazem notícias, não abrem
telejornais, dos que estão indefesos”. E acrescentou que Portugal perdeu “uma grande senhora, uma portuguesa de
eleição, uma pessoa que ao longo da sua vida juntou qualidades essenciais para
as causas cívicas e públicas em que se envolveu”. Com efeito, era alguém “que juntava o sentido de dever, a força da
coragem, a enorme sensibilidade humana e a consistência da vontade” e que “trabalhou sempre em nome de um valor ético
que às vezes desprezamos, que é o valor ético da esperança”.
Mais lembrou
Bagão Félix que a antiga provedora lutou sempre contra “a tecnocracia estatística”,
que transforma pessoas em números e “teve uma vida feita pela grande luta pelas
causas em que acreditava, com total autenticidade”.
Por seu turno, Edmundo
Martinho, provedor da SCML (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), que trabalhou “muito próximo e em vários momentos
da vida” com Catalina, disse que era uma mulher de muitas convicções,
muito combativa e muito enérgica a defender os seus pontos de vista, mesmo que
não fossem consensuais” – caraterísticas que não são muito comuns hoje em dia”,
mas que fazem dela “um exemplo de participação cívica”.
Para Rui
Godinho, diretor para a Infância, Juventude e Família da SCML, Catalina Pestana
“era uma força da natureza”. Foi há “25 ou 30 anos” que este responsável da
SCML se cruzou pela primeira vez com a professora. Tinha 16 anos quando trabalharam
juntos no âmbito dum programa do “Projeto
Vida”, o “Viva a Escola”, para
prevenção da toxicodependência nas escolas. E refere que era um jovem quando a
conheceu e “foi uma grande inspiração”, pois tinha “uma força contagiante e era
muito empenhada e dedicada”.
***
A edição on
line do jornal I de 22 de
dezembro antepublica sob o título “Catalina
Pestana. O adeus às armas”, o texto de parte duma entrevista com a antiga provedora,
a publicar na íntegra na edição em papel do dia 24. Dado o seu interesse, pelo
conhecimento que dá da vivência em semiclandestinidade no tempo do Estado Novo,
retiram-se do texto alguns dos dados mais pertinentes.
Começou por referir
que, aos 4 anos, “ouviu pela primeira vez um discurso incendiário contra o
regime” por parte do pai, “um operário anarco-sindicalista que a tratava como
ao macho que lhe falhara”. E a menina, “ainda um palmo de gente”, registou o
tom de voz, que não as palavras.
Era véspera
do 1.º de Maio de 1951, feriado “em vários países europeus como o dia do
trabalhador, mas proibido em Portugal”. Agostinho Pestana, do alto duma pedreira,
esquecera-a por momentos e, fixando os colegas da indústria do mármore apelava
à greve: “Amanhã é 1.º de Maio e aqui
ninguém trabalha!”.
O pai, um
operário diferenciado, fizera o 3.º ano do Liceu e, quando ficou órfão, foi
internado na Casa Pia de Beja. Era um homem culto e transmitia cultura à sua
menina, que sabia de cor, já aos 10 anos, poemas de Guerra Junqueiro, poeta de
cabeceira de Agostinho, “um anticlerical que no fundo apenas tinha no sangue o
selo das injustiças e tanto ajudava o padre da paróquia por este viver na
miséria como dava apoio, nada ortodoxo para um anarco-sindicalista, ao PCP”. E,
nos palcos das coletividades, era aproveitada a infância de Catalina, que
recitava, sem lhe faltar o fôlego, “poemas que o pai escolhia por medida
enquanto no subpalco elementos do partido da classe operária concertavam estratégias”.
Na adolescência, a menina tentou matar o fantasma do progenitor: “uma
professora de liceu despertou-a para a existência de Deus e ela acertou a fé,
um sentimento revolucionário no seu entender, com o seu percurso”.
Como reza o
texto do I, carregara “combustível
suficiente para nunca aceitar compromissos avessos à verdade ou à justiça”,
pelo que “nunca foi militante de qualquer partido”. E, “quando o escândalo da
Casa Pia abalou o país e, entre arguidos e suspeitos, deparou com velhos amigos
usou os mesmos pesos da balança que utilizou toda a vida”.
Como memoria mais antiga que guardava da infância, registou que, aos dois anos e meio, os pais a deixaram
à avó, por estar para nascer a irmã. E, embora adorasse a avó, quando viu os
pais afastarem-se, disfarçou e só não chorou para não a contristar.
Dado que o
pai era operário da indústria de mármores e animador da coletividade de cultura
e recreio, Catalina herdou uma cultura operária, alimentada em pleno tempo do fascismo.
O pai, que era presidente do sindicato (do que era nomeado pelo Ministério
das Corporações), conseguia
falar aos trabalhadores e convocar greves do alto das pedreiras.
Considerava-se
“a grande frustração” da vida do pai ou “o filho que ele não teve”. Nasceu
outro a seguir, mas, como os pais tinham incompatibilidade de RH (na altura
ninguém sabia o que era...), nasceu
bem, mas depois morreu.
Vivia-se com
muito aperto: “os operários ganhavam à semana e muito pouco”. Quando chegou o
tempo de irem para a escola, a mãe começou a fazer camisas, em casa, para o
Casão Militar, pois antes não trabalhava: viviam do magro salário de Agostinho.
Os pais eram naturais de Moura, no Alentejo. “Fazem parte da primeira revoada
de migração do interior alentejano para o litoral”. Por não haver dinheiro, era
o pai que, que morreu muito cedo, quem fazia os brinquedos. E fazia molduras nas
horas extraordinárias, para aumentar o parco salário. Era um operário
diferenciado: “na forma de lidar com os patrões, no sentido crítico, na
animação cultural e no desejo de fazer outras coisas”. A certa altura, ele e um
amigo fizeram o curso de guarda-livros por correspondência e, quando acabou o
curso, foram morar para Pero Pinheiro (tinha Catalina 6 ou 7 anos) e o pai deixou de trabalhar como operário (em 1953/54), pois já fazia as escritas de muitas pequenas
empresas.
O pai, como se disse, era “sindicalista e anticlerical” e tinha Guerra Junqueiro como “poeta
preferido”. Naquele tempo, Catalina tinha memória de elefante e aprendeu poemas
enormes – como ‘Aos Simples’ e ‘O Melro’, de A Velhice do Padre Eterno, que é anticlerical.
Questionada se percebia alguma coisa do que dizia, respondeu:
“Os do Guerra Junqueiro percebia, porque o
meu pai explicava mil vezes. E dizia que Nosso Senhor Jesus Cristo era muito bom,
mas a Igreja Católica tinha estragado tudo. Proibiu-nos mesmo de ir à
catequese, – mas as miúdas todas iam e eu e a minha irmã Madalena também
queríamos ir. Os meus pais tinham casado pela Igreja e nós fomos batizadas
apenas porque era um ato social. Para ele, era evidente que a catequese estava
fortemente conotada com o regime e que na Igreja iriam meter-nos na cabeça os
seus princípios totalitários. Mas era completamente solidário: como o padre da
paróquia vivia com dificuldades, ele promoveu uma quotização, a seu favor,
entre os associados do sindicato. E o padre passou a ir comer connosco muitas
vezes.”.
Recitava em
todos os sítios que o pai queria. “Só muito mais tarde percebeu o que estava a
fazer”: a camuflar os vários comités clandestinos do PCP, que reuniam,
entretanto, no subpalco.
O pai escrevia as
peças de teatro (às vezes), fazia os
cenários, encenava e depois pedia aos patrões para usar uma das camionetas
descobertas e aos fins de semana percorriam várias localidades. A primeira vez
que a menina subiu a um palco foi aos 4 anos (‘traindo’ a mãe, que era contra). O pai escrevia durante a noite e, ao pequeno-almoço,
dava-lhe a ler os papéis. E ela decorava tudo até ir para a escola.
Tinha ela 9
ou 10 anos, foram viver para umas pequenas vivendas na Quinta da Lomba, ao pé
do Barreiro, onde abrira uma fábrica de mármores. Também para lá foi um casal que
tinha dois filhos e que ninguém sabia donde vinha, sendo que a mulher nunca
chamava o marido pelo nome. Passaram a chamar-lhe o vizinho político.
Em cada
sessão, Catalina entrava e o pai dava início à reunião; e ela só saía quando o pai
mandava. Depois, mandava-a voltar ao palco ou não, consoante a reunião já
tivesse acabado. Foi por essa altura que a família passou a ter um tipo de ‘objecto
de estimação’, “uma bomba.
***
Claramente
esta vivência de luta em que foi induzida criou-lhe a fibra de mulher livre e
empenhada nas grandes causas em que acreditava, não lhe restando tempo para a mediocridade
ou para a sujeição.
2018.12.23 –
Louro de Carvalho
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