sábado, 8 de dezembro de 2018

Angola avalia reclamar bens culturais à guarda do Estado português


A comunicação social está avançar com a informação de que “Angola avalia reclamar bens culturais à guarda do Estado português”. O Expresso refere que Angola quer as suas “bonecas”, ao passo que o DN adianta poderem ser reclamadas “máscaras, artefactos, bonecas, objetos do uso quotidiano”.
A discussão da matéria, ainda não chegada a Portugal, deve-se, segundo o Expresso, a Macron, que abalou os alicerces museológicos europeus ao institucionalizar a discussão sobre a restituição de bens culturais aos países de origem. De facto, o parecer da historiadora francesa Bénédicte Savoy (do Collège de France, a instituição ancestral de investigação e ensino) e do economista senegalês Felwine Sarr, autor do influente livro “Afrotopia”, entregue ao Governo francês aconselhou a restituição de peças de arte aos territórios de origem. As primeiras (26 no total), que integram uma coleção de bronzes à guarda do Museu do Quay Branly, em Paris, voltarão ao Benim. Ganham, assim, forma as declarações do presidente francês numa universidade africana: “O património africano não pode estar prisioneiro dos museus europeus”.
Entre nós, sabe-se que, embora ainda não tenha chegado à DGPC (Direção-Geral do Património Cultural), qualquer pedido de restituição dos bens culturais que estão em museus portugueses, há tal intenção, como confirmou ao Expresso a Ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira:
É imperioso que a diplomacia angolana, em colaboração com o Ministério da Cultura e outros departamentos ministeriais, possa dar início a consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade e da posse, por um lado, e, por outro lado, da exploração dos bens culturais angolanos no estrangeiro”.
Em Portugal, é no Museu Nacional de Etnologia que se encontram mais peças de origem angolana. Mas o Museu Nacional de Arqueologia e Museu de História Natural e da Ciência também são detentores de alguns destes bens. A maioria resulta das recolhas do antropólogo Jorge Dias e da sua equipa no âmbito das Missões de Estudo das Minorias Étnicas.
O atual diretor do Museu Nacional de Etnologia, Paulo Costa, disse ao Expresso que o critério de devolução tem de ser muito bem definido porque pode acabar com os museus como existem atualmente. E mostra-se tranquilo com a origem das peças que se podem ver nesta instituição fundada e dirigida por Jorge Dias em 1965 albergando o produto das expedições. E António Pinto Sousa Ribeiro, investigador e professor catedrático do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e ex-curador da Fundação Calouste Gulbenkian e da Culuturgest, sustenta que Portugal tem de se preparar para a hipótese de devolução, mas tal só poderá acontecer se a transferência tiver sido ilegal e se a devolução for solicitada por um Estado, nunca por privados.   
A questão não é nova. Os americanos do Instituto Smithsonian foram precursores desta medida, quando o museu de Washington devolveu, em 2010, os esqueletos de mais de 60 pessoas de Arnhem Land, na Austrália, todos com menos de 120 anos, como noticiou a BBC. E, há quatro anos, a Grécia passou a reclamar a devolução dos mármores do Párthenon que estão no Museu Britânico. A UNESCO, que estabeleceu a Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 16 de novembro de 1972, tem sido a mediadora destes casos.
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No atinente à França, já no passado dia 22 de novembro, recomendações filtradas pelos meios de comunicação social sustentavam a devolução generalizada tanto das obras roubadas como das resultantes de missões científicas ou de doações da administração colonial. Porém, não pode suceder que alguém esvazie aos museus de uns para encher os de outros. Por isso, os processos têm de ser cautelosos, progressivos e negociados entre as partes, como destaca o documento em tempo difundido diário francês Le Figaro. Não obstante, o Governo francês passou a envolver-se na ponderação sobre a possível restituição de coleções de arte africana presentes no seu território, no sentido de cumprir a promessa do Presidente Emmanuel Macron, de priorizar a devolução desse património, mas os diretores dos museus regionais vêm-se-lhe opondo.
O Le Figaro calcula que haja, nos museus franceses, 98 mil objetos africanos, que provêm, na sua maioria, de Chade, Mali e Camarões. Cerca de 46 mil chegaram ao país entre 1885 e 1960, no período colonial. O museu etnológico do Quai Branly, em Paris, possui 70 mil dessas obras, enquanto o resto se divide por outros museus, como o Museu do Exército, o Museu das Confluências, em Lyon, e outros centros mais pequenos em cidades como Bordéus ou Marselha.
Savoy e Sarr querem que se estabeleça um calendário preciso, pois a devolução constitui uma espécie de reparação da Europa às suas antigas colónias e abre uma nova “ética” nas relações entre os dois continentes.
O predito quotidiano relevou que, desde 1960, muitos países solicitaram à França, à Bélgica, ao Reino Unido e à Alemanha a devolução do seu património. Porém, o Ministério Negócios Estrangeiros francês rejeitou em concreto uma petição oficial do Benim, efetuada em 2016, considerando “inalienáveis” as coleções francesas. Agora, o referido relatório oficial, embora não vinculativo, propõe a modificação do Código do Património, questão espinhosa, porque os museus gálicos contêm numeroso património asiático, grego e egípcio, e esses países poderiam juntar-se às reivindicações dos africanos subsarianos. Não obstante, em novembro de 2017, num discurso na Universidade de Uagadugu, Macron disse não poder aceitar “que uma grande parte do património cultural de vários países africanos esteja em França”, sublinhando, como já se disse, que este não podia continuar “prisioneiro dos museus europeus”. E reiterou que “o património africano não deve estar visível em Paris, mas também em Dakar, em Lagos e em Cotonou”, desejando que, dentro de 5 anos se tenham criado as condições necessárias para o retorno temporário ou permanente do património a África.
Entre nós, o especialista em colonialismo Sousa Ribeiro, já mencionado, considerou “urgente” a realização dum inventário dos bens coloniais existentes nos museus portugueses e propôs só a restituição dos que foram “pilhados” e requisitados por um Estado, como se disse. Em entrevista à agência Lusa, o docente, a propósito da conferência sobre o património e a memória colonial, “Responsabilidades Coloniais, Legados e Perspetivas”, no Goethe Institut, em Lisboa, disse que “não há uma solução genérica para a restituição dos bens” e “cada caso é um caso”. E recordou que a Bélgica iria abrir em dezembro, perto da capital, Bruxelas, um Museu Africano no qual muitas coleções coloniais “vão ser apresentadas num conceito diferente daquele em que são expostas nos museus etnográficos, ou seja, introduzindo precisamente a questão da origem das peças”. Esta deve ser considerada, a meu ver, uma solução alternativa tão válida como a devolução, nos casos em que esta não se justifique ou seja demasiado penosa.
A base para o processo de restituição ou da referida solução alternativa é sempre o inventário, que deve começar a fazer-se quanto antes. Em Lisboa, o Padrão dos Descobrimentos inaugurou uma exposição coordenada por António Camões Gouveia, tendo como ponto de partida um “exercício científico-museológico” cujo desafio é “contar África e não a visão que de África tiveram os portugueses”.
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Ora, Angola já recuperou peças de arte históricas desaparecidas durante a guerra civil, pois três marchands, duas leiloeiras, colecionadores e a Fundação Sindika Dokolo trabalharam em conjunto para recuperar peças de arte então desaparecidas, que regressam ao país. Assim, uma máscara de madeira vermelha maciça, um cadeirão de chefe tribal, um cachimbo com cabeça esculpida, uma taça para cozinhar mandioca e um pequeno banco redondo são 5 peças de arte, que faziam parte da coleção nacional à guarda do histórico museu angolano do Dundo (até desaparecerem, entre milhares de artigos, durante a guerra civil) e que foram descobertas e resgatadas.
Há uma sexta peça, encontrada recentemente, que se juntou às outras na entrega: uma máscara chokwe, descoberta de forma inesperada. Durante os trabalhos dos investigadores patrocinados pela predita Fundação – que iniciou, há alguns anos, um projeto de identificação e devolução de arte africana retirada ilegalmente dos países de origem –, uma série de pistas levou-as de volta ao portefólio do presidente da fundação, que se declarou  chocado por descobrir que tinha aquela máscara” na sua coleção, como contou ao Observador:
Lembro-me de que a comprei num leilão nos Estados Unidos, em 2007, quando estava a começar a minha coleção. E, na altura, a máscara estava a ser vendida como sendo de fonte legítima, até porque a arte chokwe não é exclusiva de Angola, também há em países como o Congo ou a Zâmbia.”.
Para o investidor de origem congolesa e um dos mais importantes colecionadores de arte africana e marido de Isabel dos Santos, empresária e filha do ex-presidente de Angola, a única decisão foi retirar a peça do seu portefólio e devolvê-la ao Estado angolano com as outras.
É de observar que fazer regressar a maioria destas peças de arte a Angola é um dos objetivos que levou Sindika Dokolo a iniciar um projeto de inventariação e aquisição de peças de arte retiradas do país durante os anos de conflito interno entre 1975 e 2002. Muitas dessas obras de arte clássica desapareceram do país e do Museu do Dundo, que reunia as principais coleções de arte angolana, bem como a documentação que permitia identificar essas peças, que hoje estão dispersas por vários países, nas mãos de colecionadores privados ou em parte incerta.
Além da máscara que estava na posse de Sindika Dokolo, aquelas 5 peças foram encontradas mercê do trabalho desenvolvido pela Fundação em colaboração com autoridades de vários países e outras entidades e especialistas. A operação, conforme explicou o investidor, postula uma equipa permanente dedicada a documentar peças e a identificar as referências. Depois, é preciso “triangular a peça: saber onde, como e quando surgiu a peça no mercado”. E, por fim, “identificar o depositário da obra” e ver o que fazer “para resgatar a obra”.
Quando se identificam as pessoas ou entidades detentoras da peça, a prática habitual passa por oferecer uma compensação, em jeito de indemnização (nunca aos valores do mercado, que seriam sempre mais altos) – embora, neste último caso, só uma das 5 peças (além da máscara chokwe que estava na coleção de Sindika Dokolo) tenha sido resgatada a custo zero. Daniel Hourdé, artista e colecionador residente em Paris, “aceitou devolver a cadeira sem pedir nada em troca”, como conta o presidente da Fundação, sem revelar os valores envolvidos nas restantes devoluções.
Graças à colaboração de colecionadores, de 3 marchands especializados e de 2 casas leiloeiras, estas peças históricas podem agora regressar ao Museu do Dundo. Neste caso, a Fundação Sindika Dokolo destaca as iniciativas de Didier Claes (em Bruxelas), de Daniel Hourdé (em Paris) e de Giorgio Rusconi (em Milão), diretamente envolvidos na devolução das obras. Todos os passos da operação, até ao momento do resgate, envolveram ainda vários investigadores (historiadores, antropólogos, museólogos), advogados e autoridades, caso da Interpol e de polícias nacionais. E a fundação conta com a ajuda de sites especializados, como os da Interpol ou ArtLossRegister – trabalho que pode ser precioso para continuar a ajudar o Museu do Dundo a recuperar muitas das obras perdidas.
Desde que a fundação iniciou, em meados de 2016, este trabalho de pesquisa mais aprofundado, cerca de 60 peças já foram referenciadas. Mas ainda falta muito para recuperar esse património perdido (apenas 1% foi recuperado). Daí que o investidor insista na necessidade de alertar para este problema e de debater a importância do património histórico dos países. A esse propósito, dá o exemplo do político britânico Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, que defendeu publicamente a restituição à Grécia de esculturas do Párthenon, que se encontram no British Museum. E, em abril de 2017, o próprio Sindika Dokolo que exigiu à França que devolvesse a África obras de arte “pilhadas” durante o período colonial.
Até ao final deste ano, Dokolo espera reforçar o trabalho da fundação na recuperação dessa arte desaparecida: tem em curso a criação duma base de dados que centraliza imagens e informações técnicas que ajudam a identificar obras que surgem pontualmente no mercado de arte. Desta forma, vendedores e potenciais compradores poderão confirmar as origens de certas obras e certificar-se de que não investem em obras ilegítimas. Tal base de dados conta com informações do Bureau International de Documentation Ethnographique, mantido nos arquivos do Museu Real da África Central, em Tervuren, na Bélgica, e com o contributo de Marie-Louise Bastin, historiadora belga, especialista em arte chokwe e “uma das primeiras pessoas a denunciar o aparecimento no mercado internacional de peças pertencentes ao Museu do Dundo, no contexto da guerra civil angolana”.
No final de 2015, a Fundação resgatou e devolveu àquele museu angolano duas máscaras Pwo e uma estátua rara duma figura masculina, datadas do final do século XIX, início do século XX.
De acordo com os últimos dados conhecidos, a coleção de arte da Fundação, criada em 2003, em Luanda, é composta por mais de 5.000 obras, entre pinturas, gravuras, fotografias, vídeos e instalações, da autoria de 90 artistas de 25 países. Em março de 2015, o presidente da fundação trouxe algumas dessas obras ao Porto, onde inaugurou a exposição ‘You Love Me, You Love Me Not’, um dos vários projetos que anunciou na altura previstos para a cidade.
Não imaginava que Sindika Dokolo fosse um benemérito para a arte angolana!
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A predita convenção da UNESCO não é retroativa, pelo que deixa muita margem de manobra para a negociação entre os atuais possuidores e os países de origem das obras de arte.
Há que fazer os respetivos inventários de forma exaustiva e fazer uma ponderação negociada e exigindo apenas o razoável. Seria um caos se todas as peças de arte deslocadas – por subtração, rapina (veja-se o caso das invasões francesas), fraude, venda imponderada – houvessem de ser restituídas. Portugal teria muito a ganhar e não creio que Macron tenha a generosidade com Portugal que tem com África. Quanto a Angola, concordo que se restituam as peças pilhadas no tempo da guerra civil, desde que reclamadas pelo Estado, não as anteriores, a não ser em casos excecionais devidamente ponderados e justificados. Não nos precipitemos!
2018.12.08 – Louro de Carvalho

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