Nem seria muito de admirar se não fosse muito
doloroso, mas o Natal também obriga a contemplar a vertente do martírio. Desde
logo, o Menino nascido na gruta belemita vinha destinado ao martírio redentor do
Gólgota. Tanto assim é que a cruz é o caminho de Cristo como há de ser o
caminho dos seus discípulos e seguidores:
“Se
alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha
causa, há de encontrá-la.” (Mt 16,24-25).
E uma estrofe do cântico de Natal “Cristãos, alegria que nasceu Jesus”
contém esta mística:
“Lá
nos altos Céus, / Honra e glória a Deus / Que nos deu Jesus!
Paz na terra à alma /
Que serena e calma / Vive unida à cruz!”.
Depois, a 26 de dezembro, celebrou-se a festa de
Santo Estêvão, o protomártir, que foi detido pelas autoridades judaicas e levado diante do Sinédrio
(a suprema assembleia de Jerusalém), que o
condenou por blasfémia, sendo sentenciado a apedrejamento. Entre os presentes
na execução, estaria Saulo, o futuro São Paulo, durante os seus dias de
perseguidor dos cristãos.
Muitos Padres da Igreja, como Santo Agostinho, atribuem
a conversão de Saulo às orações de Estêvão. Agostinho diz: Si Stephanus
non orasset, ecclesia Paulum non haberet.
A 27, celebrámos a festa de São João, Apóstolo e
Evangelista. Conforme tradição unânime, viveu em Éfeso em companhia de
Nossa Senhora e foi colocado, sob o imperador Domiciano, dentro duma caldeira
de óleo a ferver, daí saindo ileso e, todavia, com a glória de ter dado
testemunho. Depois do exílio de Patmos, tornou definitivamente a Éfeso, onde
exortava continuamente os fiéis ao amor fraterno, como resulta das suas três
cartas, acolhidas entre os textos sagrados, como também o Apocalipse e o
Evangelho. Morreu carregado de anos em Éfeso durante o império de Trajano (98-117) e aí foi sepultado.
A 28, celebrou-se o martírio dos Santos
Inocentes, evocando o
evento bíblico conhecido como o Massacre dos Inocentes, em que Herodes, rei da
Judeia, terá condenado à morte todos meninos da cidade de Belém e arredores,
com medo de perder o seu trono para o recém-nascido “Rei dos Judeus”, anunciado
pelos magos. Os meninos assassinados ficaram conhecidos na Igreja como os
“Santos Inocentes” e como os primeiros mártires cristãos.
A primeira
comemoração do Dia dos Santos Inocentes
na igreja ocidental remonta ao ano de 485, no “Sacramentário Leonino”. A data
da celebração varia entre o dia 27 e o dia 29, consoante o tipo de Igreja. Para
a Igreja Católica, a Igreja da Inglaterra e a Igreja Luterana, a data da
celebração é o dia 28 de dezembro.
Francisco, depois de, no dia 26, ter estabelecido
a similitude entre Estêvão e Cristo, no dia dos Santos Inocentes veio exortar a
acolher em Jesus o amor de Deus. O twitter do Papa inspira-se na sua
Mensagem de Natal de 2017, em que recordou todos os cantos do mundo onde as
crianças sofrem.
Diz agora o Papa:
“Acolhamos no Menino Jesus o amor de Deus e vamos empenhar-nos em tornar
o nosso mundo mais digno e humano para as crianças de hoje e de amanhã”.
Na Mensagem
do Natal de 2017, o Santo Padre recordava todos os lugares do mundo onde as
crianças sofrem, visualizando Jesus nos rostos das crianças no Oriente Médio,
onde “continuam a sofrer com o aumento das tensões entre israelenses e
palestinos”, nos rostos das crianças da Síria, “ainda marcados pela guerra que
ensanguenta esse país há anos”, ou ainda os rostos das crianças do Iraque, do
Iémen, da África; nos rostos de todas as crianças que vivem em “áreas do mundo
onde a paz e a segurança estão ameaçadas pelo perigo de tensões e novos
conflitos”, ou naqueles rostos de “tantas crianças forçadas a deixar os seus
países, a viajarem sozinhas em condições desumanas, sendo presas fáceis para os
traficantes de seres humanos”. E afirmava:
“Enquanto o mundo está a ser atingido por ventos de guerra e um modelo
de desenvolvimento já obsoleto continua a causar degradação humana, social e
ambiental, o Natal convida-nos a recordar o sinal do Menino e que o
reconheçamos nos rostos das crianças, especialmente daquelas para quem, como
Jesus, não há lugar na estalagem”.
Historia
Antiga (1937) – Miguel Torga
Era uma vez, lá na
Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem
cabresto
E duas grandes
tranças.
A gente olhava,
reparava e via
Que naquela figura
não havia
Olhos de quem gosta
de crianças.
|
E, na verdade, assim
acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de
quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos
eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação. |
Mas,
por acaso ou milagre aconteceu
Que,
num burrinho pela areia fora, fugiu
Daquelas
mãos de sangue um pequenito
Que
o vivo sol da vida acarinhou;
E
bastou
esse palmo de sonho
Para
encher o mundo de alegria;
Para
crescer, ser Deus;
E
meter no inferno o tal das tranças,
Só
porque ele não gostava de crianças.
|
***
Obviamente, não podemos ficar a olhar só para os
martírios do passado. Hoje eles praticam-se e são bem bárbaros, nada ficando a
dever aos demais martírios que a História regista.
Assim, no ano que
está prestes a terminar, a agência Fides
apresenta o relatório com números e circunstâncias em que missionários – “batizados
comprometidos na vida da Igreja” – foram mortos em diversas partes do mundo de
forma violenta, embora não necessariamente por ódio à fé. No total são 40,
quase o dobro de 2017, os missionários assassinados no ano que está prestes a
acabar. A maior parte deles, sacerdotes, em número de 35.
Segundo
dados recolhidos pela Fides, após 8
anos consecutivos em que o número mais elevado de missionários assassinados foi
registado na América, desta feita, em 2018 é a África a ocupar o primeiro lugar
neste ranking trágico. Também, neste
ano muitos perderam as suas vidas durante
tentativas de roubo ou furto em contextos sociais de pobreza, degradação e onde
a violência é a regra da vida, a autoridade do Estado ausente ou enfraquecida
pela corrupção ou onde a religião é instrumentalizada para outros fins.
São 19
sacerdotes, um seminarista e uma leiga as vítimas em África. Comove a
morte de Thérese Deshade Kapangala, da República
Democrática do Congo, que tinha apenas 24 anos de idade e estava a
preparar-se para começar o postulantado entre as Irmãs da Sagrada Família. Foi
assassinada em janeiro 2018 na violenta repressão dos militares que tentavam
sufocar os protestos contra as decisões do Presidente Kabila, promovidos por
leigos católicos em todo o país. Cantava no coro da paróquia e era muito ativa
na Legião de Maria. Tendo naquele dia participado na Missa na cidade de
Kintambo, ao norte de Kinshasa, tentou organizar uma marcha de protesto. Os
militares do exército, postados do lado de fora da igreja, abriram fogo contra
os manifestantes que buscavam abrigo no templo. Thérese foi atingida ao tentar
proteger uma criança com o seu corpo.
Um massacre
brutal em que foram mortos na Nigéria
o Padre Joseph Gor e o Padre Felix Tyolaha por pastores jihadistas nos povoados
de Mbalom, no Estado de Benue, na parte central do país que divide o norte de
predominância muçulmana, do sul em grande parte habitado por cristãos. O
massacre ocorreu na madrugada de 24 de abril de 2018, durante a Missa matinal,
muito frequentada. Tinha acabado de se iniciar a celebração e os fiéis ainda
estavam a entrar para a igreja, quando foram disparados vários tiros por um
grupo armado. Foram mortas a sangue frio 19 pessoas, incluindo os dois padres.
A seguir, os bandidos, entrando no povoado, saquearam e destruíram mais de 60
casas.
Também o idoso
e muito amado padre Albert Toungoumale-Baba, centro-africano (de 71 anos), foi morto na Paróquia de Nossa Senhora de Fátima,
não muito distante do bairro PK5 Bangui, capital da República Centro-Africana, onde houve um massacre provocou a morte
de, pelo menos, 16 pessoas e causou uma centena de feridos. Um grupo armado
atacou a paróquia, enquanto o Padre Albert e alguns fiéis estavam a celebrar a
Missa da festa de São José no 1.º de maio de 2018. O sacerdote, um dos mais
idosos da diocese de Bangui, muito estimado pelos fiéis, encontrava-se na igreja
para a celebração como capelão do movimento “Fraternité Saint Joseph” e foi assassinado de súbito.
Também a América
pagou alto tributo de vidas em 2018. Foram assassinados 12 padres – 7 somente
no México – e 3 leigos. Entre as vítimas, chama atenção a história do Padre
Juan Miguel Contreras García, ordenado sacerdote pouco antes de morrer. Tinha
apenas 33 anos, quando foi morto na noite de 20 de abril de 2018,no final da
Missa que celebrava na Paróquia São Pio de Pietrelcina, em Tlajomulco, Estado de Jalisco (México), onde estava em substituição de outro sacerdote ameaçado de morte. Um
comando invadiu a igreja e dirigiu-se à sacristia, onde abriu fogo contra o
sacerdote.
O Padre
Riudavets Carlos Montes, um jesuíta espanhol de 73 anos, foi encontrado
amarrado e com sinais de violência na comunidade indígena peruana de Yamakentsa. O
Padre Riudavets tinha formado centenas de líderes indígenas e era totalmente
consagrado à sua missão, sempre disponível. Amava a comunidade e por ela era
amado.
Das
diferentes histórias que a Fides
relata neste final de 2018, surge um único denominador comum: a
partilha que, em cada latitude, padres, religiosos e leigos são capazes
de estabelecer com as pessoas, levando um testemunho evangélico de amor e de serviço
para todos, e a coragem pela qual, mesmo diante de
situações de perigo, os missionários permanecem no seu lugar para serem fiéis
aos seus compromissos.
***
Por sua
vez, Pietro Parolin, Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé, que celebrou o Natal com as comunidades cristãs do Iraque, em entrevista ao Vatican News, confessa: No Iraque toquei a fé de uma igreja mártir – “uma Igreja que, entre sofrimentos e
tribulações, testemunha a alegria e a beleza do Evangelho”. Compartilha a esperança dos fiéis iraquianos duma
visita do Papa e ressalta a importância da colaboração entre cristãos e
muçulmanos para um futuro pacífico. E diz que a palavra “emoção” é a correta para
descrever o que viveu no Iraque: “uma grande emoção” e alegria sua e das
comunidades. Sentiu-se “muito feliz” por lhes poder levar “a proximidade do
Papa, o seu afeto, a sua bênção, a atenção com que ele sempre seguiu os seus acontecimentos”.
Naturalmente, a visita “foi uma ocasião para compartilhar os sofrimentos dos
anos recentes e também um pouco das incertezas do presente, mas ao mesmo tempo,
também as esperanças pelo futuro”.
Sobre a vivência da fé com alegria no meio de tantas tribulações, refere:
“Nos pronunciamentos que
fiz, sobretudo nas homilias, insisti muito neste ponto: ‘Vós sois um testemunho
para a Igreja universal’. A Igreja universal é-vos grata pelo que vivestes,
como vós vivestes isso, e deve pegar no vosso exemplo, desta
capacidade de suportar sofrimentos, aflições, pelo nome de Jesus’. Eu diria que
esta é uma exemplaridade que eles propõem a toda a Igreja que – tal como diz o
Concílio – ‘vive entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus’. No
entanto, o que mais me impressionou foi o orgulho – no bom sentido da palavra –
com que esses irmãos e irmãs vivem a sua fé: sentem-se orgulhosos por serem
cristãos e por
continuarem a sê-lo no meio de tantas dificuldades, tantas provações e
sofrimentos!”.
Em relação às imagens fortes e tocantes da visita ao Iraque, confessa que
foram muitas, pois tem cada encontro gravado na sua memória. Porém,
destaca a destruição da cidade de Mosul. Na verdade, foi confrangedor “ver as
igrejas, mas também as casas, os prédios, a parte inteira da cidade que mais
sofreu pelos acontecimentos bélicos”.
Outra coisa que o chocou foram essas igrejas (tanto as caldeias como as sírio-católicas) “cheias de gente, cheias de homens, de
mulheres, de crianças e de jovens”, em que “todos cantavam e rezavam”,
impressionando “pela sua maneira de rezar”. Por outro lado, em Mosul, “era
difícil andar pela rua porque havia entulho no meio”. O governador de Mosul quis
cumprimentar o Cardeal, que sentiu o momento em que o governador lhe pegou pela
mão “como um momento muito bonito, que deveria ser simbólico daquela que é a
colaboração entre cristãos e muçulmanos: tomar-se pelas mãos e ajudar-se
mutuamente”. E, naquele instante, estando a chover muito, apareceu um lindo
arco-íris no céu, no que vê o símbolo “da paz, da aliança”.
A visita do Cardeal Secretário de Estado acendeu as esperanças duma
visita de Francisco ao Iraque. A este respeito, o purpurado disse:
“As pessoas ficaram muito contentes por essa
presença. Sentiram também na presença do Secretário de Estado a presença do
Papa […] Mas todos, a uma só voz, esperam que ele possa visitar o Iraque em
breve e confortá-los pessoalmente. E a essa esperança dos cristãos iraquianos
também eu me uno: que sejam criadas as condições, naturalmente, para que
o Santo Padre possa ir ao Iraque e possa compartilhar momentos de oração e de
encontro com nossos irmãos.”.
Sendo-lhe recordado o discurso de saudação de Natal à Cúria, em que o
Pontífice falou de duas grandes aflições, o martírio e os abusos sexuais por
parte de membros do clero, Parolin, frisou:
“As minhas esperanças são
que este encontro, convocado pelo Papa, de todos os presidentes das
Conferências Episcopais, possa fortalecer ou continuar, melhor dizendo […] a
atenção em favor das vítimas, e sobretudo a criação de condições de segurança
para menores e pessoas vulneráveis. Parece-me que é sobretudo neste ponto que a
atenção dos participantes estará concentrada: isto é, como criar um ambiente
seguro para os menores e as pessoas vulneráveis.”.
Ainda sobre o encontro de fevereiro, diz esperar que, a partir de
então, se caminhe nesta estrada e que exista uma abordagem cada vez mais comum,
“de toda a Igreja diante desse fenómeno”, mas que, “naturalmente, depois cada
um” possa aplicar, “também de acordo com a situação local em que se vive, mas
que seja clara a ‘política’ para todas as Igrejas” e “que seja também uma
abordagem que tenha presente todos os aspetos do fenómeno, que são múltiplos e
interconectados entre si”, procedendo-se, depois, com uma abordagem “inspirada
pelos critérios do Evangelho em relação a todas as pessoas”.
E, a concluir, o Cardeal Parolin faz votos, para 2019, por que, diante de tantos desafios
atuais, “o Senhor sustente o Santo Padre na sua entrega contínua em favor da Igreja e
das comunidades cristãs que se encontram em situações de dificuldade e
marginalidade” e que “possa continuar a acender essa esperança e esse amor nos
corações dos homens, motivo pelo qual tantos lhe querem tão bem e tantos o
sentem particularmente próximo”, vendo muitos nele “a esperança de um mundo
mais solidário, de um mundo mais pacífico, de um mundo feito à medida do homem
e da fraternidade”.
***
Enfim, martírio de morte para uns, martírio de tribulação para outros e
proximidade de quantos sofrem ou se alegram – eis a onda diversificada e
intensa que marca a Igreja peregrina, que vive a beleza exigente do mistério do
Natal do Senhor, alimentando-se do banquete da Última Ceia e anunciando a Sua
Morte e proclamando a sua Ressurreição até que Ele Venha.
2018.12. 29 –
Louro de Carvalho
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