sábado, 29 de dezembro de 2018

A quadra natalícia também sob o signo do martírio


Nem seria muito de admirar se não fosse muito doloroso, mas o Natal também obriga a contemplar a vertente do martírio. Desde logo, o Menino nascido na gruta belemita vinha destinado ao martírio redentor do Gólgota. Tanto assim é que a cruz é o caminho de Cristo como há de ser o caminho dos seus discípulos e seguidores:
Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la.” (Mt 16,24-25).
E uma estrofe do cântico de Natal “Cristãos, alegria que nasceu Jesus” contém esta mística:
Lá nos altos Céus, / Honra e glória a Deus / Que nos deu Jesus! 
 Paz na terra à alma / Que serena e calma / Vive unida à cruz!”.
Depois, a 26 de dezembro, celebrou-se a festa de Santo Estêvão, o protomártir, que foi detido pelas autoridades judaicas e levado diante do Sinédrio (a suprema assembleia de Jerusalém), que o condenou por blasfémia, sendo sentenciado a apedrejamento. Entre os presentes na execução, estaria Saulo, o futuro São Paulo, durante os seus dias de perseguidor dos cristãos.
Muitos Padres da Igreja, como Santo Agostinho, atribuem a conversão de Saulo às orações de Estêvão. Agostinho diz: Si Stephanus non orasset, ecclesia Paulum non haberet.
A 27, celebrámos a festa de São João, Apóstolo e Evangelista. Conforme tradição unânime, viveu em Éfeso em companhia de Nossa Senhora e foi colocado, sob o imperador Domiciano, dentro duma caldeira de óleo a ferver, daí saindo ileso e, todavia, com a glória de ter dado testemunho. Depois do exílio de Patmos, tornou definitivamente a Éfeso, onde exortava continuamente os fiéis ao amor fraterno, como resulta das suas três cartas, acolhidas entre os textos sagrados, como também o Apocalipse e o Evangelho. Morreu carregado de anos em Éfeso durante o império de Trajano (98-117) e aí foi sepultado.
A 28, celebrou-se o martírio dos Santos Inocentes, evocando o evento bíblico conhecido como o Massacre dos Inocentes, em que Herodes, rei da Judeia, terá condenado à morte todos meninos da cidade de Belém e arredores, com medo de perder o seu trono para o recém-nascido “Rei dos Judeus”, anunciado pelos magos. Os meninos assassinados ficaram conhecidos na Igreja como os “Santos Inocentes” e como os primeiros mártires cristãos.
A primeira comemoração do Dia dos Santos Inocentes na igreja ocidental remonta ao ano de 485, no “Sacramentário Leonino”. A data da celebração varia entre o dia 27 e o dia 29, consoante o tipo de Igreja. Para a Igreja Católica, a Igreja da Inglaterra e a Igreja Luterana, a data da celebração é o dia 28 de dezembro.
Francisco, depois de, no dia 26, ter estabelecido a similitude entre Estêvão e Cristo, no dia dos Santos Inocentes veio exortar a acolher em Jesus o amor de Deus. O twitter do Papa inspira-se na sua Mensagem de Natal de 2017, em que recordou todos os cantos do mundo onde as crianças sofrem. Diz agora o Papa:
Acolhamos no Menino Jesus o amor de Deus e vamos empenhar-nos em tornar o nosso mundo mais digno e humano para as crianças de hoje e de amanhã”.
Na Mensagem do Natal de 2017, o Santo Padre recordava todos os lugares do mundo onde as crianças sofrem, visualizando Jesus nos rostos das crianças no Oriente Médio, onde “continuam a sofrer com o aumento das tensões entre israelenses e palestinos”, nos rostos das crianças da Síria, “ainda marcados pela guerra que ensanguenta esse país há anos”, ou ainda os rostos das crianças do Iraque, do Iémen, da África; nos rostos de todas as crianças que vivem em “áreas do mundo onde a paz e a segurança estão ameaçadas pelo perigo de tensões e novos conflitos”, ou naqueles rostos de “tantas crianças forçadas a deixar os seus países, a viajarem sozinhas em condições desumanas, sendo presas fáceis para os traficantes de seres humanos”. E afirmava:
Enquanto o mundo está a ser atingido por ventos de guerra e um modelo de desenvolvimento já obsoleto continua a causar degradação humana, social e ambiental, o Natal convida-nos a recordar o sinal do Menino e que o reconheçamos nos rostos das crianças, especialmente daquelas para quem, como Jesus, não há lugar na estalagem”.

Historia Antiga (1937) – Miguel Torga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas, por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora, fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

***
Obviamente, não podemos ficar a olhar só para os martírios do passado. Hoje eles praticam-se e são bem bárbaros, nada ficando a dever aos demais martírios que a História regista.
Assim, no ano que está prestes a terminar, a agência Fides apresenta o relatório com números e circunstâncias em que missionários – “batizados comprometidos na vida da Igreja” – foram mortos em diversas partes do mundo de forma violenta, embora não necessariamente por ódio à fé. No total são 40, quase o dobro de 2017, os missionários assassinados no ano que está prestes a acabar. A maior parte deles, sacerdotes, em número de 35.
Segundo dados recolhidos pela Fides, após 8 anos consecutivos em que o número mais elevado de missionários assassinados foi registado na América, desta feita, em 2018 é a África a ocupar o primeiro lugar neste ranking trágico. Também, neste ano  muitos perderam as suas vidas durante tentativas de roubo ou furto em contextos sociais de pobreza, degradação e onde a violência é a regra da vida, a autoridade do Estado ausente ou enfraquecida pela corrupção ou onde a religião é instrumentalizada para outros fins.
São 19 sacerdotes, um seminarista e uma leiga as vítimas em África. Comove a morte de Thérese Deshade Kapangala, da República Democrática do Congo, que tinha apenas 24 anos de idade e estava a preparar-se para começar o postulantado entre as Irmãs da Sagrada Família. Foi assassinada em janeiro 2018 na violenta repressão dos militares que tentavam sufocar os protestos contra as decisões do Presidente Kabila, promovidos por leigos católicos em todo o país. Cantava no coro da paróquia e era muito ativa na Legião de Maria. Tendo naquele dia participado na Missa na cidade de Kintambo, ao norte de Kinshasa, tentou organizar uma marcha de protesto. Os militares do exército, postados do lado de fora da igreja, abriram fogo contra os manifestantes que buscavam abrigo no templo. Thérese foi atingida ao tentar proteger uma criança com o seu corpo.
Um massacre brutal em que foram mortos na Nigéria o Padre Joseph Gor e o Padre Felix Tyolaha por pastores jihadistas nos povoados de Mbalom, no Estado de Benue, na parte central do país que divide o norte de predominância muçulmana, do sul em grande parte habitado por cristãos. O massacre ocorreu na madrugada de 24 de abril de 2018, durante a Missa matinal, muito frequentada. Tinha acabado de se iniciar a celebração e os fiéis ainda estavam a entrar para a igreja, quando foram disparados vários tiros por um grupo armado. Foram mortas a sangue frio 19 pessoas, incluindo os dois padres. A seguir, os bandidos, entrando no povoado, saquearam e destruíram mais de 60 casas.
Também o idoso e muito amado padre Albert Toungoumale-Baba, centro-africano (de 71 anos), foi morto na Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, não muito distante do bairro PK5 Bangui, capital da República Centro-Africana, onde houve um massacre provocou a morte de, pelo menos, 16 pessoas e causou uma centena de feridos. Um grupo armado atacou a paróquia, enquanto o Padre Albert e alguns fiéis estavam a celebrar a Missa da festa de São José no 1.º de maio de 2018. O sacerdote, um dos mais idosos da diocese de Bangui, muito estimado pelos fiéis, encontrava-se na igreja para a celebração como capelão do movimento “Fraternité Saint Joseph” e foi assassinado de súbito.
Também a América pagou alto tributo de vidas em 2018. Foram assassinados 12 padres – 7 somente no México – e 3 leigos. Entre as vítimas, chama atenção a história do Padre Juan Miguel Contreras García, ordenado sacerdote pouco antes de morrer. Tinha apenas 33 anos, quando foi morto na noite de 20 de abril de 2018,no final da Missa que celebrava na Paróquia São Pio de Pietrelcina, em Tlajomulco, Estado de Jalisco (México), onde estava em substituição de outro sacerdote ameaçado de morte. Um comando invadiu a igreja e dirigiu-se à sacristia, onde abriu fogo contra o sacerdote.
O Padre Riudavets Carlos Montes, um jesuíta espanhol de 73 anos, foi encontrado amarrado e com sinais de violência na comunidade indígena peruana de Yamakentsa. O Padre Riudavets tinha formado centenas de líderes indígenas e era totalmente consagrado à sua missão, sempre disponível. Amava a comunidade e por ela era amado.
Das diferentes histórias que a Fides relata neste final de 2018, surge um único denominador comum: a partilha que, em cada latitude, padres, religiosos e leigos são capazes de estabelecer com as pessoas, levando um testemunho evangélico de amor e de serviço para todos, e a coragem pela qual, mesmo diante de situações de perigo, os missionários permanecem no seu lugar para serem fiéis aos seus compromissos.
***
Por sua vez, Pietro Parolin, Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé, que celebrou o Natal com as comunidades cristãs do Iraque, em entrevista ao Vatican News, confessa: No Iraque toquei a fé de uma igreja mártiruma Igreja que, entre sofrimentos e tribulações, testemunha a alegria e a beleza do Evangelho”. Compartilha a esperança dos fiéis iraquianos duma visita do Papa e ressalta a importância da colaboração entre cristãos e muçulmanos para um futuro pacífico. E diz que a palavra “emoção” é a correta para descrever o que viveu no Iraque: “uma grande emoção” e alegria sua e das comunidades. Sentiu-se “muito feliz” por lhes poder levar “a proximidade do Papa, o seu afeto, a sua bênção, a atenção com que ele sempre seguiu os seus acontecimentos”. Naturalmente, a visita “foi uma ocasião para compartilhar os sofrimentos dos anos recentes e também um pouco das incertezas do presente, mas ao mesmo tempo, também as esperanças pelo futuro”.
Sobre a vivência da fé com alegria no meio de tantas tribulações, refere:
Nos pronunciamentos que fiz, sobretudo nas homilias, insisti muito neste ponto: ‘Vós sois um testemunho para a Igreja universal’. A Igreja universal é-vos grata pelo que vivestes, como vós vivestes isso,  e deve pegar no  vosso exemplo, desta capacidade de suportar sofrimentos, aflições, pelo nome de Jesus’. Eu diria que esta é uma exemplaridade que eles propõem a toda a Igreja que – tal como diz o Concílio – ‘vive entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus’. No entanto, o que mais me impressionou foi o orgulho – no bom sentido da palavra – com que esses irmãos e irmãs vivem a sua fé: sentem-se orgulhosos por serem cristãos e por continuarem a sê-lo no meio de tantas dificuldades, tantas provações e sofrimentos!”.
Em relação às imagens fortes e tocantes da visita ao Iraque, confessa que foram muitas, pois tem cada encontro gravado na sua memória. Porém, destaca a destruição da cidade de Mosul. Na verdade, foi confrangedor “ver as igrejas, mas também as casas, os prédios, a parte inteira da cidade que mais sofreu pelos acontecimentos bélicos”.
Outra coisa que o chocou foram essas igrejas (tanto as caldeias como as sírio-católicas) “cheias de gente, cheias de homens, de mulheres, de crianças e de jovens”, em que “todos cantavam e rezavam”, impressionando “pela sua maneira de rezar”. Por outro lado, em Mosul, “era difícil andar pela rua porque havia entulho no meio”. O governador de Mosul quis cumprimentar o Cardeal, que sentiu o momento em que o governador lhe pegou pela mão “como um momento muito bonito, que deveria ser simbólico daquela que é a colaboração entre cristãos e muçulmanos: tomar-se pelas mãos e ajudar-se mutuamente”. E, naquele instante, estando a chover muito, apareceu um lindo arco-íris no céu, no que vê o símbolo “da paz, da aliança”.
A visita do Cardeal Secretário de Estado acendeu as esperanças duma visita de Francisco ao Iraque. A este respeito, o purpurado disse:
As pessoas ficaram muito contentes por essa presença. Sentiram também na presença do Secretário de Estado a presença do Papa […] Mas todos, a uma só voz, esperam que ele possa visitar o Iraque em breve e confortá-los pessoalmente. E a essa esperança dos cristãos iraquianos também eu me uno: que sejam criadas as condições,  naturalmente, para que o Santo Padre possa ir ao Iraque e possa compartilhar momentos de oração e de encontro com nossos irmãos.”.
Sendo-lhe recordado o discurso de saudação de Natal à Cúria, em que o Pontífice falou de duas grandes aflições, o martírio e os abusos sexuais por parte de membros do clero, Parolin, frisou:
As minhas esperanças são que este encontro, convocado pelo Papa, de todos os presidentes das Conferências Episcopais, possa fortalecer ou continuar, melhor dizendo […] a atenção em favor das vítimas, e sobretudo a criação de condições de segurança para menores e pessoas vulneráveis. Parece-me que é sobretudo neste ponto que a atenção dos participantes estará concentrada: isto é, como criar um ambiente seguro para os menores e as pessoas vulneráveis.”.
Ainda sobre o encontro de fevereiro, diz esperar que, a partir de então, se caminhe nesta estrada e que exista uma abordagem cada vez mais comum, “de toda a Igreja diante desse fenómeno”, mas que, “naturalmente, depois cada um” possa aplicar, “também de acordo com a situação local em que se vive, mas que seja clara a ‘política’ para todas as Igrejas” e “que seja também uma abordagem que tenha presente todos os aspetos do fenómeno, que são múltiplos e interconectados entre si”, procedendo-se, depois, com uma abordagem “inspirada pelos critérios do Evangelho em relação a todas as pessoas”.
E, a concluir, o Cardeal Parolin faz votos, para 2019, por que, diante de tantos desafios atuais,o Senhor sustente o Santo Padre na sua entrega contínua em favor da Igreja e das comunidades cristãs que se encontram em situações de dificuldade e marginalidade” e que “possa continuar a acender essa esperança e esse amor nos corações dos homens, motivo pelo qual tantos lhe querem tão bem e tantos o sentem particularmente próximo”, vendo muitos nele “a esperança de um mundo mais solidário, de um mundo mais pacífico, de um mundo feito à medida do homem e da fraternidade”.
***
Enfim, martírio de morte para uns, martírio de tribulação para outros e proximidade de quantos sofrem ou se alegram – eis a onda diversificada e intensa que marca a Igreja peregrina, que vive a beleza exigente do mistério do Natal do Senhor, alimentando-se do banquete da Última Ceia e anunciando a Sua Morte e proclamando a sua Ressurreição até que Ele Venha.
2018.12. 29 – Louro de Carvalho

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