sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Portugal não parou com os “coletes amarelos”


Os promotores do MCAP (Movimento dos Coletes Amarelos de Portugal) prometeram parar o país, mas isso ficou muito longe de acontecer. Pelo que transpareceu para a comunicação social, Ponte 25 de Abril, Ponte Vasco da Gama, Rotunda dos Golfinhos em Setúbal, Madeira e Açores são apenas alguns dos locais em que a manifestação agendada para hoje, dia 21, falhou redondamente. Só em Braga, Porto e Lisboa é que teve maior expressão, embora sem impacto.
A convicção do MCAP que proclamava “Vamos Para Portugal como Forma de Protesto” era a de que milhares de pessoas (pelos mais de 6 mil seguidores na página de Facebook) se uniriam para, nas ruas, reivindicarem o aumento do salário mínimo nacional, pensões e subsídio de desemprego, o combate à corrupção e a redução dos impostos sobre o rendimento, a eletricidade e os produtos petrolíferos. No entanto, os coletes amarelos portugueses, inspirados nos congéneres movimentos contestatários de França, não lograram replicar o impacto que estes tiveram naquele país.
O contingente policial espalhou-se por 17 cidades portuguesas. Pelas 8 horas da manhã – uma hora depois da hora marcada para o início do protesto – começava a revelar-se, em alguns locais, a diferença entre o aparato das autoridades e o número de manifestantes. Há quem diga que havia, nalguns lugares, mais polícias que manifestantes. Por exemplo, nas pontes 25 de Abril e Vasco da Gama, havia polícia nos dois sentidos, sem estarem quaisquer indivíduos a protestar.
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Em Lisboa, Assembleia da República e Palácio de Belém eram dois dos locais onde estava previsto haver protestos. No entanto, foram mais as vozes de ontem que as nozes de hoje.
No Marquês havia pouco mais de cem de pessoas e foi onde se registou maior agitação. A Polícia de Intervenção foi chamada ao local, depois de alguns manifestantes tentarem condicionar o trânsito, paralisando nas passadeiras e obstruindo a rotunda. Algumas vias foram cortadas, embora por breves instantes. E, depois de os coletes amarelos tentarem romper o cordão policial, três pessoas foram detidas por desobediência e resistência à autoridade. Pelos vistos, um dos detidos é membro do PNR (Partido Nacional Renovador), ali representado pelo líder José Pinto Coelho. Um cidadão chegou ao Marquês pouco depois dos confrontos e, envergando um colete amarelo, fez-se anunciar com um altifalante a dizer ao que vinha:
Estamos aqui para lutar pelos nossos direitos. […] Isto é contra a corrupção; é contra tudo. Isto está tudo mal. A malta vem toda para aí porque eles compram carros de milhões e nós andamos com camiões de lixo de há 40 anos atrás, sem condições de trabalho.”.
Mas nem todos os que se deslocaram à rotunda juntaram a voz à dos protestos. Frederico Morim (pintor e empresário, de 50 anos) veio da Ericeira para a manifestação, insatisfeito com o país, que teve de deixar durante 20 anos por não conseguir trabalho, mas não se revê no movimento, atirando:
Coletes são para os franceses, nós temos é de ter tomates. Os coletes nasceram noutra realidade. Está tudo mal planeado, nem diz ao que é que vem. Só dizem ‘vamos parar o país’. Não se para um país assim. Para-se com coisas preparadas, com intenções.”.
Na Autoestrada 8 (sentido Torres Vedras-Lisboa), um dos locais também identificados pela PSP, houve apenas buzinadelas. Quatro “coletes amarelos”, um deles agarrando a bandeira de Portugal, pararam juntos às portagens da A8 em Loures, mas rapidamente seguiram caminho.
Braga era um dos pontos do país onde a polícia estava mais atenta. E a preocupação tinha razão de ser, pelo menos comparativamente com outros locais. Centenas de pessoas mobilizaram-se nas ruas e registaram-se desacatos: pontapés e garrafas contra viaturas que tentaram furar o bloqueio. Depois, a manifestação decorreu pacificamente. Cortaram todas as entradas no norte da cidade e alguns destes coletes deram pontapés e atiraram garrafas a viaturas que tentaram furar o bloqueio. Apesar do bloqueio com pesados e ligeiros, houve sempre uma faixa de segurança na via para passagem de viaturas de emergência. Enfim, o protesto ali foi marcado por alguma tensão a meio da manhã, com os manifestantes a discutirem se deixavam passar um camião bloqueado desde as 6 horas ou se o obrigavam a fazer marcha atrás, pois, desde aquela hora, a entrada norte de Braga, no Nó das Infias, esteve cortada ao trânsito, primeiro por cerca de 60 coletes amarelos e, depois, pela PSP, que desviou o trânsito antes daquela artéria. Em declarações aos jornalistas, Filipe Silva, representante do MCAP, explicou que o objetivo era “comer as batatas na estrada” (ou seja, ficar até à ceia de Natal), frisando que “não há hora para acabar o protesto”, cujo início foi marcado por uma altercação entre os manifestantes e um automobilista que furou o bloqueio, tendo, depois disso, decorrido a manifestação de forma pacífica.
Pelas 10 horas, a PSP ordenou a retirada de carros e camiões que estavam a bloquear o acesso à cidade. A desmobilização começou de forma pacífica, mas, ao chegar a altura de retirar o último camião bloqueado (não pertencente ao grupo de manifestantes), os ânimos exaltaram-se. Os agentes da PSP presentes falaram com os coletes amarelos e, no final, o camião fez marcha atrás com a ajuda da polícia. Entretanto, a página oficial da PSP comunicava que o bloqueio em Braga era o único autorizado pelas “entidades competentes”, mas fonte do município disse à Lusa que a autarquia não autorizou nenhum bloqueio de estrada, tendo sido apenas informada do protesto.
Tal como em Braga, foi no Porto que mais gente se juntou ao protesto. O dia começou no Nó de Francos, com muita polícia para 50 manifestantes, número que foi aumentando e a manifestação engrossando. O nó de Francos esteve cortado, com as pessoas a atravessarem as passadeiras e a pararem para complicar a circulação. Foram identificadas 8 pessoas por apresentarem tarjas ofensivas e demonstrarem uma postura agressiva. Uma delas foi levada para a esquadra por vestir um colete à prova de bala. Depois, os 150 manifestantes seguiram para a rotunda da Boavista e marcharam pela cidade invicta, sempre acompanhados pela polícia.
Em Faro, pouco mais de 100 manifestantes reclamaram pacificamente por “combustível mais baixo”, “aumento do salário mínimo” ou “IVA mais baixo”. A polícia não registou incidentes.
Em Setúbal, houve excesso de polícia nos locais previstos (rotunda dos Golfinhos) já que ali não se avistaram quaisquer manifestantes (Bastava haver um polícia para ser um a mais que os manifestantes).
Leiria foi outra cidade com forte policiamento. Os ânimos exaltaram-se junto ao Estádio Dr. Magalhães Pessoa, mas não houve distúrbios. A manifestação foi acompanhada por um forte dispositivo policial para resolver os constrangimentos de trânsito, originados pela ocupação dos manifestantes nas passadeiras. E houve a tentativa de parar os autocarros, mas sem resultado.
As rotundas da Casa de Sal e do Almegue, em Coimbra, replicaram o que acontecia no resto do país: havia mais polícia que coletes amarelos. As 30 pessoas que se reuniram na cidade conseguiram parar o trânsito por breves instantes. Mas Coimbra deu azo a um procedimento disciplinar dentro da PSP. Com efeito, um comunicado da PSP a instauração de processo disciplinar a um agente que, em Coimbra, foi filmado a, pelo menos aparentemente, despir o colete da PSP e a confrontar alguns dos manifestantes associados aos protestos dos coletes amarelos, o que poderá configurar uma infracção disciplinar.
O Jornal do Centro escreve que em Viseu se juntaram cerca de 20 pessoas, que exibiram cartazes como “há uma linha que separa viver de sobreviver”. Os protestos eram para todo o dia. Foi o que garantiu o porta-voz Hugo Moreira. E eram poucos, mas chegaram a ocupar passadeiras.
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Quando os planos da realização televisiva se abrem, a realidade aumenta. Em plano fechado, veem-se caras, ombros e olhos com raiva. Quando as câmaras mostram o contexto (por exemplo, a Praça do Marquês, em Lisboa, com a estátua e as duas rotundas), vê-se melhor a situação. Uns 30 ou 40 cidadãos, vestindo coletes amarelos, tentam cortar o trânsito. Uns sentados no chão, outros empurrando a polícia, outros gritando “vergonha”. À volta desta manifestação, o dobro, ou o triplo, de polícias, de mãos dadas, observam o protesto que prometia “parar Portugal”, mas que não teve expressão em nenhum dos 25 lugares escolhidos pela organização.
Esta versão portuguesa dos “coletes amarelos” foi convocada por vários grupos através das redes sociais, com inspiração nos movimentos contestatários das últimas semanas em França. Nasceu efetivamente nas redes sociais, mas foi também lá que começou a definhar. O fracasso, ainda antes das 10 horas, levava os organizadores a declarar, usando as teclas temerárias do WhatsApp, que “o povo é covarde” e o resto das redes sociais gozava a situação com o sarcasmo habitual. E os organizadores desânimo foram assolados pelo desânimo. Maria João Oliveira (a motorista do Montijo que se tornou uma das vozes a dar a cara e falar aos jornalistas), diz que “o pessoal teve medo”.
Maria João entrou na organização quando esta já estava em marcha, sendo adicionada como administradora do evento inicial pelo grupo do Bombarral. Mas, no fim da passada semana, o grupo (com cerca de 50 mil adesões) desmobilizou e o seu evento acabou por ser eliminado, o que valeu ao Facebook acusações de censura. E, o grupo do Bombarral desmembrou-se, com a saída do principal mentor, Filipe Ferreira, o cavaleiro tauromáquico que decidiu criar o evento depois de pagar o IMI e saiu do grupo no domingo por ter prestado declarações à imprensa. E foi Maria João quem, no sábado passado, publicou um vídeo a explicar que os manifestantes em causa nada tinham a ver com a extrema-direita ou com o PNR. Mas, nessa altura, já era do domínio público que havia movimentos infiltrados ou que vários elementos da organização partilhavam, nas suas páginas pessoais, sites de movimentos extremistas e ‘memes’ alusivos a Salazar ou ao tempo do fascismo. E essa terá sido uma das causas para afastar deste protesto quem genuinamente pensava juntar-se e manifestar-se pelos objetivos do MCAP, que não foram atingidos.
Entre os diversos grupos de WhatsApp, acima aludidos, sobressai o dos “coletes vermelhos”, que ameaçavam “entrar em ação no dia 22 se no dia 21 os coletes amarelos não vingarem”. E é aí que reina a maior desilusão. O grupo tem cerca de 50 membros, todos furiosos com o falhanço.
No Porto, alguns pensam que é preciso continuar. Luís Pereira – um dos mais ativos a liderar a marcha com pouco mais de 100 pessoas que seguiu do nó de Francos, local da concentração, até aos Aliados, e atravessou a cidade (com a PSP a fazer caixa de segurança em volta do grupo) – disse:
Vontade há, mas era preciso as autoridades baixarem a guarda. É muita polícia.”.
O ativista tem experiência em “assumir um cortejo destes”, pois integra a claque do Leixões. De facto, os cânticos futebolísticos ecoaram logo cedo e no grupo de coletes amarelos havia elementos dos Superdragões e de claques do Boavista. E Luís Pereira antevê:
Quando os grupos das claques se unirem todos, ninguém vai parar este movimento”.
Segundo Carminda Silva (já na idade de reforma e lesada do BES), vinda de Esposende e que fez o percurso a pé pelo Porto, “para primeiro dia foi muito bom”. E o motivo que aponta é:
Fui roubada pelos banqueiros que têm uma vida de luxo à custa de quem trabalha”.
Também Manuel Sousa, de 67 anos (lesado do BES e do Banif), saiu de Monção às 4 da manhã para estar no Porto com uma bandeira francesa na mão para denunciar a corrupção e exigir que lhe devolvam as suas economias.
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Esta foi a primeira experiência – mas não será certamente a última – duma manifestação deste tipo. Quem a convocou terá concluído que é fácil fazer o mais difícil: criar a sensação de que vai acontecer e tem significado. As redes sociais já rivalizam com a TV enquanto principal meio de acesso à informação. E este protesto, que hoje juntou poucas centenas de pessoas em todo o país, agregara mais de 50 mil pessoas “virtuais”. Da mesma forma, a “informação” que os juntou é a que consegue mais impacto entre os milhões de utilizadores das redes: a que revolta, enraivece, indigna. Com efeito, nas páginas anónimas que lideram, semana após semana, são quotidianos os rankings de partilhas no Facebook, com a corrupção, o crime e a injustiça como temas fortes. Longe dos olhares de muitos – (jornalistas, políticos, analistas…) ali se criam e crescem grupos fechados que multiplicam a raiva, o desespero, o cinismo. “Estado=ladrão” é a equação que resume este programa político crescente, numa faixa usada por dois dos protestantes dos “coletes amarelos”. Mas há mais: mensagens antielites, anti-imigração, antipolítica.
Porém, algumas destas crenças são falsas. Por exemplo, a das “mordomias” dos deputados, que se baseia na convicção de que os parlamentares portugueses são dos mais bem pagos da Europa, é contrariada pela realidade: os seus salários são muito mais baixos (em alguns casos menos de metade...) que em França, Chipre, Alemanha, Finlândia, Bélgica, Itália, Irlanda, Áustria, Holanda, Dinamarca, Luxemburgo, Suécia e Reino Unido. Também uma das reivindicações do movimento era, a princípio, o cancelamento do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, da ONU, assinado em Marraquexe por António Costa, quando o caso dos refugiados, que são considerados um problema grave, fica esbatido no facto de que, durante a crise que abalou a Europa, chegaram ao país menos de 1700 migrantes, tendo saído quase metade.  
Ora, o axe está na forma como estas convicções alastram. Surgem associadas à ideia de que vivemos num “sistema” dominado por “corruptos”, gerido por “ladrões” – ideia “popular”, que granjeia gostos, gera partilhas e se torna “viral”. É verdade que há muito de verdade neste comum contexto de desinformação. Há, na verdade, um descontentamento gritante: impostos altíssimos, a que muitos escapam por diversos meios; custo de vida excessivamente caro em comparação com os muito baixos rendimentos; habitação quase inacessível a bolsas médias; pobreza, desigualdade, precariedade laboral alastrantes; debate político codificado, de que os cidadãos estão afastados; e interesses poderosos instalados, que travam o bem-estar da maioria. Depois, vem o fator “rapidez”, com a ultrapassagem virtual das fronteiras físicas e culturais. Os coletes amarelos de França podem ter começado num grupo no Facebook criado por um emigrante luso-descendente, como vários franceses participaram na organização do protesto português, com o lançamento de ideias no Facebook e no WhatsApp. O mundo virtual é uma aldeia. E não é por acaso que surgem movimentos “populistas”, líderes autoritários, projetos nacionalistas, por toda a Europa, no Brasil, nos EUA, nas Filipinas e em tantos outros lugares.
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Então, porque falhou o movimento desta vez? Do meu ponto de vista, apesar da rápida difusão das ideias, não houve tempo para assimilar de forma consistente os diversos itens do caderno reivindicativo e a sua consequente priorização (Para quê reivindicar medidas que postulam a revisão constitucional?). E cedo se divisou a existência de grupos indesejáveis, bem como a junção de outros protestos (vg lesados do BES e Banif). E, se as ideias voam, a ação é marcada pela lentidão.
Ora, não foi desta vez, mas o país não se livra disto (O 25 de Abril foi precedido da revolta das Caldas!).
2018.12.21 – Louro de Carvalho

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