No âmbito da aprovação na especialidade do Orçamento
do Estado para 2019, a Assembleia da República integrou no PNV (programa nacional de vacinação) as vacinas da meningite B,
do rotavírus e do HPV (vírus do papiloma humano para os rapazes).
A primeira proposta para o alargamento do PNV a tais vacinas
era do PCP e foi aprovada pelos proponentes e pelos PSD e BE, com os votos
contra do PS e a abstenção do CDS-PP.
A proposta do PEV pretendia o alargamento da vacina
contra o HPV a rapazes.
O BE também apresentou uma proposta para a inclusão das
vacinas para a Meningite B e para o Rotavírus e alargando às pessoas do sexo
masculino a administração da vacina contra o HPV.
Outra das
propostas que viu ‘luz verde’ foi apresentada pelo PEV para que, em 2019, o
Governo garanta “disponibilidade
financeira para que, nos casos de avaliação médica favorável, seja administrado
o medicamento que se destina a tratar a atrofia muscular espinhal, aos doentes
com tipo I e com tipo II, em todas as unidades hospitalares do Serviço Nacional
de Saúde”.
De acordo com a nota explicativa, “urge
que o medicamento apto a promover tratamento aos doentes com atrofia muscular
espinhal seja administrado aos doentes que dele carecem, nas unidades
hospitalares do Serviço Nacional de Saúde”, pois, como explicam, “cada dia que passa, sem a possibilidade de
acesso ao medicamento, é mais um dia onde a situação destes doentes se agrava a
olhos vistos”.
***
Em relação a esta deliberação parlamentar, as reações
não se fizeram esperar.
Desde logo, os médicos de saúde pública reagiram
contra a posição dos partidos, que deliberaram em matéria técnico-científica
para a qual não têm competência.
Do alto da
sua cátedra, a OM (Ordem dos Médicos) vem considerar
um erro que o Parlamento tenha aprovado a integração de três novas vacinas no PNV
sem ouvir a DGS (Direcção-Geral da Saúde), que está ainda a estudar o assunto. A este respeito, o bastonário da OM,
Miguel Guimarães, disse à Lusa que vê
“com muita preocupação” o facto de os deputados “estarem a interferir nas boas
práticas em saúde”, sobretudo quando existe uma comissão técnica independente,
de “pessoas com conhecimento científico
específico na área da vacinação”, que está a estudar se as três vacinas
devem integrar o PNV. “Acho que é uma má
decisão da Assembleia da República por ser feita sem ouvir a Direcção-Geral da
Saúde e é uma falta de respeito pelos profissionais de saúde e pela própria
Direcção-Geral da Saúde”, afirmou o bastonário, que sublinhou: “É um erro que importa corrigir”. E aduziu
que “é fundamental que todas as vacinas do
PNV tenham uma análise e um acordo baseado na evidência científica”.
Porém,
sucede que, no passado mês de agosto, em entrevista ao Público, a Diretora-Geral da Saúde adiantou que a comissão técnica
de vacinação estava a estudar a integração e o alargamento das vacinas da
meningite B (desde 2016 que esta vacina é dada de forma gratuita através do Programa
Nacional de Vacinação a crianças com problemas graves de saúde) e do HPV aos rapazes. Por outro lado, estava
previsto que a comissão técnica de vacinação reuniria em breve.
Agora, depois
da aprovação da integração das preditas três vacinas pelo Parlamento (não vale
dizer que foram os partidos, porque os deputados propostos à eleição pelos partidos
constituem-se em titulares do órgão de soberania legislativo), a Diretora-Geral
de Saúde deu uma conferência de imprensa, a 29 de novembro, na Direção-geral da
Saúde, em Lisboa, em
que fez críticas ao facto de o Parlamento ter aprovado três novas vacinas para
o Programa Nacional de Vacinação, sem que a proposta tivesse passado pela DGS, lembrando
que “há 53 anos” que o mecanismo de introdução de vacinas no plano nacional
segue um protocolo que, desta vez, não foi respeitado. Mas refere que tomou boa
nota da decisão do Parlamento e espera pela redação final do texto da norma
para agir em conformidade.
Graça Freitas não nega que a
comissão parlamentar de saúde tenha “ouvido – e bem – a indústria farmacêutica”
a propósito da inclusão de três novas vacinas no PNV. Porém, o que já não lhe
parece correto e dentro dos parâmetros de funcionamento de todo o processo é o
facto de essa decisão não ter passado pela DGS e que a comissão parlamentar de
saúde não “tivesse tido em atenção os vários pareceres que a DGS mandou ao
longo dos anos para o Parlamento sobre o assunto”.
Em
declarações aos jornalistas, Graça Freitas, sublinhando o facto de o PNV ser uma “receita
universal” que “constitui um protocolo de tratamento preventivo” e
reiterou:
“Se
é preciso ter imensos critérios, boa evidência científica e boas práticas e
rigor na prescrição de um medicamento – uma vacina no caso – a uma
pessoa, também
é preciso respeitar as boas práticas, a evidência científica e o rigor na
prescrição universal de vacinas para grupos da população”.
E é “por
isso”, explica a Diretora-Geral da Saúde, que a DGS “tem desde sempre comissões técnicas de vacinação”, pois o “primeiro crivo para saber se uma vacina entra na PNV passa pelo parecer
desta comissão”. Depois, acrescentou, é emitido um parecer
que é submetido à Diretora-Geral da Saúde que, com a sua “equipa de vacinação
densifica esse parecer” para ser então submetido à tutela para aprovação.
Por outras
palavras, Graça Freitas apontou que houve uma alteração de sentido em todo o
processo, acusando os deputados de terem avançado com a inclusão de três novas
vacinas no PNV sem terem consultado a DGS. Face a esta situação, lembrou:
“Há 53 anos que este é o mecanismo de introdução de vacinas no PNV e
há 53 anos que construímos um dos melhores PNV do mundo (…) que permitiu
eliminar doenças do nosso país e controlar outras doenças”.
Aliás, como
frisou, “depois do fornecimento da água potável às
populações, nenhuma medida preventiva de saúde pública é tão eficaz e nenhuma
tem tanto retorno em diminuição das doenças, do sofrimento e da morte” como
o plano nacional de vacinação.
E Graça
Freitas disse recear que a decisão do Parlamento de incluir vacinas no PNV abra
um precedente num assunto que é do foro da prescrição médica e da prescrição da
saúde, acrescentando que tem “a certeza absoluta” de que os parlamentares que
tomaram esta decisão são “pessoas extremamente sensíveis a estas questões” e
que estarão atentos para, no futuro, “tentarem não incorrer em algum tipo de
situação que possa por em risco os critérios técnico-científicos, a evidência
científica e as boas práticas médicas”.
Segundo Graça
Freitas, as três vacinas incluídas pelo parlamento no PNV estão a ser
analisadas pela comissão técnica de avaliação. Relativamente ao rotavírus, explicou
que, de ponto de vista estritamente técnico, a doença “não tem peso suficiente
em Portugal” para ser candidata a um programa de vacinação universal. Sobre a
vacina da meningite B, afirmou haver estudos em curso, explicando: “Nós temos de saber, de acordo com a bactéria
que circula no nosso país, se a vacina é efetiva ou não”. Já para o HPV, a
comissão técnica de vacinação tem de momento, os dados que vão permitir, a
curto prazo, emitir uma recomendação, como avançou a responsável.
Graça Freitas
garantiu que a DGS vai aguardar pela decisão final do Parlamento e ter em conta
o que vai ficar recomendado para atuar em conformidade, declarando:
“A
DGS é uma pessoa de bem e cumpre a lei e vai aguardar serenamente para ver a
decisão do Parlamento”.
Também a
Ministra da Saúde, Marta Temido, disse estar surpreendida com a imposição do
Parlamento de três novas vacinas entrarem no PNV, pois vai contra plano da DGS.
A Ministra manifestou,
no dia 28, surpresa pela aprovação pelo Parlamento de três novas vacinas para o
PNV, considerando que essa inclusão não tinha sido planeada pela DGS. Marta
Temido disse, em declarações à RTP, que “a
inclusão que foi feita não tinha anteriormente sido preconizada pela DGS”. E
declarou:
“Estamos
a avaliar também o sentido em que a redação da norma em última instância vai
sair. […] Estão em causa três vacinas, uma rotavírus, outra para a meningite B
e uma última de HPV para os rapazes. De facto, relativamente às duas primeiras,
a Comissão Nacional de Vacinação não tinha concluído pela necessidade da sua
universalização.”.
Por outro
lado, não sei bem porquê, lamenta que o seu Ministério tenha ficado
enfraquecido na sua capacidade negocial. Será que só tem capacidade de negociação
se detiver o monopólio da ciência e da técnica?
E, face a
boatos de que a indústria farmacêutica estaria por trás da deliberação parlamentar,
tanto a APIFRAMA como os partidos apontados vieram fazer o conveniente
desmentido.
***
Sucede,
porem, que os deputados se escudam no facto de os pediatras e os médicos de
família terem vindo a recomendar e a prescrever as preditas vacinas e, se bem
me lembro, o Presidente da República mostrou-se publicamente favorável à extensão
da vacina do HPV aos rapazes.
A este respeito,
o site da revista Visão publicou, a 7
de fevereiro do corrente ano, um texto de José Carlos Carvalho, que aponta o nosso PNV como “um óptimo exemplo de sucesso”. Não obstante, dá conta de outras
vacinas que podem ser adquiridas e administradas em determinadas situações,
referindo que a Comissão de Vacinas
da SPP (Sociedade Portuguesa de Pediatria) emitira, em Janeiro,
um documento que visa reforçar algumas recomendações para essas vacinas, reiterando
a ideia de que a decisão de administração da vacina deve ser discutida com o
médico assistente, de forma a perceber se não existe nenhuma contraindicação
para o efeito.
- Vacina contra o meningococo do tipo B (Bexsero®, Trumenba®):
“O meningococo é uma bactéria que pode existir transitoriamente nos
narizes de pessoas saudáveis e, daí, propagar-se a outros indivíduos. Os
principais ‘reservatórios’ desta bactéria são os adolescentes e os adultos
jovens. Tem uma capacidade grande de invadir as nossas células e pode originar
infeções muito graves, como a sépsis
(infeção generalizada do organismo) ou meningite, por exemplo. Existem 13
grupos diferentes, mas os mais frequentemente causadores de doença são o A, B,
C, W, X e Y.”.
Em Portugal, a maior parte das situações são provocadas pelo
meningococo do grupo B. Para vacinação contra este micro-organismo, as recomendações
da SPP são: todas as crianças dos 2 meses aos 2 anos devem, idealmente,
ser vacinadas com Bexsero®; as crianças com idades entre os 2 anos e os 10 anos
devem, se possível, ser vacinadas com Bexsero®; a partir dos 10 anos os
adolescentes devem também ser vacinados com Bexsero® ou Trumenba®.
- Vacinas contra os meningococos A, C, W e Y (Nimenrix®, Menveo®):
“Com a introdução da vacina contra o meningococo do grupo C no Programa
Nacional de Vacinação em 2006, a taxa de infeção por esta bactéria reduziu
drasticamente, estando praticamente ausente nos últimos anos em Portugal. O
meningococo do grupo W tem aumentado bastante a sua frequência na América
Latina e também na Europa, particularmente no Reino Unido. Também os casos de
infeção pelo meningococo do grupo Y têm aumentado nos últimos anos no nosso
continente.”.
Assim, a SPP recomenda a vacinação contra os meningococos do grupo
A, C, W e Y a: todas as crianças com alterações da imunidade que aumentem o
risco de infeção por estas bactérias; viajantes com estadias prolongadas ou
residentes em países onde esta doença é muito prevalente e sempre que exigido
pela autoridade local; e às crianças e adolescentes saudáveis, se possível.
- Vacina contra o papilomavírus humano no sexo masculino (Gardasil 9®):
“O HPV é um vírus que infeta algumas células do nosso organismo e que
tem capacidade de provocar dois grandes tipos de lesões: malignas – o segundo
agente carcinogénico mais frequente, logo a seguir ao tabaco, responsável por
diferentes tipos de cancro (cabeça e pescoço, colo do útero, pénis, vagina e
ânus, entre outros); benignas – o responsável pelos condilomas (as chamadas ‘verrugas’),
que podem existir na pele e na região genital. A vacinação contra o
papilomavírus humano (HPV) está incluída no PNV para todas as adolescentes do
sexo feminino, mas não para o sexo masculino.”.
Por isso, a SPP recomenda a vacinação
aos adolescentes do género masculino como forma de prevenir as lesões associadas
ao HPV.
- Vacina contra o rotavírus (Rotateq®, Rotarix®):
“A gastroenterite aguda é uma infeção extremamente comum nos
primeiros anos de vida, responsável por uma percentagem significativa dos
internamentos nessa faixa etária. Pode ser provocada por vírus ou bactérias,
mas o rotavírus é o agente mais frequentemente implicado. Apesar de a gastroenterite
ser, geralmente, uma infeção com uma baixa taxa de complicações, o impacto na
qualidade de vida das crianças e famílias é bastante significativo. A vacina para
o rotavírus tem de ser administrada nos primeiros meses de vida, sendo que as
idades-limite variam um pouco entre cada uma das vacinas.”.
Por isso, a SPP recomenda que
sejam vacinadas todas as crianças saudáveis, reforçando a importância do
cumprimento das indicações quanto à idade de vacinação.
(vd também SPP in http://criancaefamilia.spp.pt/media/127910/Vacinas-extra-PNV-RecomendaCOes-SIP-SPP-2018.pdf)
***
O nosso
processo legislativo pressupõe que, antes da produção do ato legislativo no
Parlamento ou no Governo sejam ouvidas entidades interessadas e/ou peritas na
respetiva matéria, o que não obriga o órgão legislativo a seguir o parecer
dessas entidades. Por outro lado, embora em muitos casos, as decisões
legislativas e regulamentares sejam propostas por entidades administrativas assessoradas
por comissões ou grupos de trabalho de competência técnico-científica, tal não
quer dizer que o órgão legislativo, sobretudo o Parlamento, não tenha legitimidade
para produzir a legislação respetiva. E a DGS entra em contradição: parece não
ter sido ouvida, mas acusa a comissão parlamentar de saúde de não ter seguido
os pareceres que enviou!
Compreendo
que antigos ministros da saúde, sobretudo os alinhados com o PS (como
Ana Jorge ou Adalberto Fernandes)
se venham solidarizar com a surpresa da Ministra da Saúde Marta Temido, mas o
exposto não os legitima a invocar a vertente científica nem o poder dos
deputados, os quais também dispõem de assessorias técnicas a que dão ouvidos. Por
outro lado, o Governo é o órgão superior da administração pública (vd
art.º 182.º da CRP).
Assim, a Ministra da Saúde, sabendo que a matéria estava na agenda do debate,
deveria instruir politicamente a DGS para que promovesse o fechamento do debate
técnico-científico e as suas propostas, instruídas técnica e cientificamente, chegassem
antes da proposta de lei do Orçamento. Vir agora dizer que o Ministério da
Saúde perde poder negocial é desculpa de mau pagador e sabe a muito má
solidariedade governativa.
Ademais,
os deputados limitam-se, em sede do Orçamento, a garantir a dotação orçamental
da introdução das vacinas no PNV, ficando reservado aos médicos o juízo de oportunidade
da administração da vacina e aos centros de saúde a obrigação de, sob
determinadas condições (vg por requisição, marcação…), de disponibilizar gratuitamente
as vacinas.
E não é
o Governo nem as direções-gerais que são a sede da ciência…
Enfim,
poupem o povo a estas guerrinhas. Precisamos de governação, sossego e
bem-estar!
2018.12.01 –
Louro de Carvalho
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