O Vatican News revisita o ano de 2018 de
Francisco, com as suas alegrias e aflições, olhando para os acontecimentos
pelas lentes da sua primeira Exortação Apostólica, a Evangelii gaudium.
Como disse o
Papa no discurso de felicitações de Natal à Cúria Romana, neste ano, foi
difícil para a Igreja a “investida de tempestades e furacões”. Por isso, talvez
seja positivo lermos o ano de 2018, à luz da Evangelii gaudium, que perfez
5 anos no mês passado. De facto, como escreveu o Pontífice argentino, “é preciso permitir que a alegria da fé
comece a despertar como uma secreta, mas firme confiança, mesmo no meio das
piores angústias”.
Respigam-se,
nestas linhas, os dados mais pertinentes do itinerário, embora com as
necessárias e oportunas adaptações e reordenamento dos temas. Os itens
abordados são: a centralidade de Cristo;
uma Igreja que caminha em direção à
santidade; o Rosário como remédio
para proteger a Igreja das divisões; o falar
incessante de Deus e o crescimento da fé; a difusão da frescura
originária do Evangelho pelo mundo; uma Igreja
de portas abertas; as reformas da
Igreja; a chaga dos abusos; as viagens
internacionais; as viagens em Itália; o acordo
com a China; os direitos humanos
espezinhados e os cristãos
perseguidos; e a hora da misericórdia.
***
Cristo no centro. A Evangelii
gaudium é um texto programático do pontificado, fortemente cristocêntrico.
E repercute-se em todas as reflexões papais do ano, que, das 43 Audiências
Gerais às 89 meditações em Santa Marta, dos Angelus às homilias
das Missas públicas, se centram no encontro vivo com Jesus, como se lê no
início daquele documento:
“A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira dos que se
encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado,
da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem
cessar a alegria”.
E o Bispo de
Roma convida os fiéis a uma nova etapa de evangelização marcada pela alegria.
A referência
da Igreja não pode ser ela mesma, mas, ao invés da tentadora
autorreferencialidade eclesial, Cristo é que tem de estar no centro da seu ser,
vida, oração, ação e missão.
Uma Igreja que caminha em direção à
santidade. No Sínodo
de outubro passado, o Bispo de Roma relançou o convite, contido na Evangelii
Gaudium, a “caminhar
juntos” na Igreja, sem deixar ninguém à margem, sendo que o documento final
daquela assembleia episcopal pede um novo protagonismo dos jovens, mulheres e
leigos. Mas ainda há um longo caminho a percorrer, mercê da inércia e do
preconceito, com base, muitas vezes, mais no uso que na doutrina.
E caminhar
todos juntos implica demandar a santidade. Em torno deste desígnio, surgiu, em
abril, a publicação da Exortação Apostólica “Gaudete et exsultate”, em que Francisco refere, por
exemplo, os “santos da porta ao lado”, as tantas testemunhas da fé que dão a
vida no silêncio do quotidiano. E, com as canonizações de Paulo VI e de Romero,
evidencia a santidade a manifestar-se de muitas maneiras diferentes, mas a
juntar instituição e profecia.
O Rosário como remédio para proteger
a Igreja das divisões. Um dos
momentos fortes de 2018 foi o apelo papal à recitação diária do Rosário por
parte de todos os cristãos unidos como povo de Deus a pedir a Nossa Senhora e a
São Miguel Arcanjo que protejam a Igreja do diabo, “que sempre visa separar-nos
de Deus e entre nós”. Na verdade, como diz o Pontífice, nestes tempos, “parece que o Grande Acusador se soltou e
persegue os bispos” para semear discórdia, escândalo e dúvidas. Assim,
Francisco olha com aflição os que “traem” a sua consagração a Deus e à Igreja e
se escondem “por trás das boas intenções para apunhalar os seus irmãos”,
achando “sempre justificações”, mesmo lógicas e espirituais, para continuarem a
percorrer, sem serem perturbados, o caminho da perdição”. Como disse o Papa no
final do último Sínodo, a Igreja não deve ser sujada”; se os seus filhos estão
sujos, a Mãe não está, pelo que é o momento de defender a Mãe. “E defende-se do
Grande Acusador a Mãe do com oração e penitência”.
Deus não cessa de falar e faz
crescer a inteligência da fé. Neste
contexto, recorda-se a mudança do CIC (Catecismo da Igreja Católica), aprovada pelo Papa Bergoglio, sobre a pena de
morte. Neste sentido, lê-se, no novo texto, que “a Igreja ensina, à luz do
Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a
inviolabilidade e dignidade da pessoa”, e que se empenha com determinação para
a sua abolição em todo o mundo”. Trata-se, assim, dum desenvolvimento da
doutrina sobre o tema, que admitia a pena capital só em linha de princípio,
desenvolvimento que evidencia como a tradição, segundo Francisco, é “realidade
viva, e só uma visão parcial pode pensar no ‘depósito da fé’ como algo
estático”, pois, “não se pode conservar a doutrina sem a fazer progredir, nem se
pode ligá-la a uma leitura rígida e imutável sem humilhar a ação do Espírito
Santo”. Lendo os desenvolvimentos doutrinais em 2000 anos de história cristã,
percebe-se que Deus não cessa de falar e de nos fazer entender cada vez melhor
as verdades do Evangelho. Cresce, assim, a inteligência da fé.
Levar a frescura originária do
Evangelho pelo mundo. Francisco
indica duas vias. Na primeira, está o apelo a todos cristãos a levarem, com
renovado fervor e criatividade, a alegria de terem encontrado Jesus: é uma
“nova saída missionária” a “recuperar a frescura originária do Evangelho” e a concentrar-se
no essencial, evitando uma pastoral “obcecada pela transmissão desarticulada de
uma multitude de doutrinas que se tentam impor pela força de insistir”. No núcleo
do anúncio “o que resplandece é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado
em Jesus Cristo que morreu e ressuscitado”. Na realidade, como diz o Papa, falamos
“mais da lei que da graça, mais da Igreja do que de Jesus Cristo, mais do Papa
do que da Palavra de Deus”.
Uma Igreja de portas abertas. A segunda via é a de uma Igreja aberta e acolhedora.
Neste sentido, afirma o Papa Francisco:
“A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. […] Mesmo as
portas dos Sacramentos não se deveriam fechar por qualquer motivo. […] A
Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio
para os perfeitos, mas um generoso remédio e um alimento para os fracos. Essas
convicções também têm consequências pastorais que somos chamados a considerar
com prudência e audácia. Comportamo-nos frequentemente como controladores da
graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega, é a casa
paterna onde há espaço para todos com a sua vida dura.”.
E o
Pontífice prevê as consequências dessa abordagem, mas faz uma opção:
“Eu prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído para as
ruas, em vez de uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de apegar-se
às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro e que
acaba encerrada num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se algo deve
santamente inquietar e perturbar a nossa consciência, é que muitos dos nossos
irmãos vivem sem a força, a luz e o consolo da amizade com Jesus Cristo.”.
As reformas: por uma Igreja profundamente
missionária. Tiveram
continuidade as reformas estruturais iniciadas em chave missionária, como
desejado pela Evangelii gaudium. O Conselho de Cardeais entregou
uma proposta da Constituição Apostólica (“Praedicate evangelium”) sobre a reforma da Cúria Romana para responder cada vez mais às
exigências de uma Igreja em saída. E, pela Constituição Apostólica
Episcopalis communio, transformou-se
o Sínodo dos Bispos em “evento em processo”, com o envolvimento de todos os
batizados: inicia-se escutando o Povo de Deus, e prossegue com a escuta dos
pastores, culminando na escuta do Bispo de Roma, chamado a pronunciar-se como ‘Pastor e Doutor de todos os cristãos’.
Com o Motu proprio “Aprender a despedir-se”, modificou
aspetos da renúncia dos titulares de ofícios de nomeação pontifícia,
enfatizando a importância de se prepararem para a renúncia, “despojando-se dos
desejos de poder e da pretensão de ser indispensável”. E aprovou a Nova Lei do
Governo do Estado da Cidade do Vaticano, em vigor a partir de junho próximo,
com base em 3 princípios (racionalização, economicidade e simplificação) e 4 critérios (funcionalidade, transparência,
coerência normativa e flexibilidade organizacional). E continua o empenho da Santa Sé na melhoria da
transparência financeira, confirmada pelo “sim” da Europa ao ingresso do
Vaticano no circuito bancário SEPA (Single Euro Payments Area).
A chaga dos abusos: homens da Igreja
que se comportam como senhores em vez de servos. Com efeito, 2018 foi o ano em que o escândalo de
abusos sexuais cometidos por expoentes da Igreja irrompeu em toda a sua
virulência. Assim, compreende-se melhor a invocação lançada na Evangelii
gaudium: “Deus nos livre de uma
Igreja mundana” que, sob “aparência
de religiosidade”, busca apenas poder, declinado em suas múltiplas formas. Na
Carta ao Povo de Deus, de 20 de agosto, Francisco reitera a rota da tolerância
zero, da verdade, da justiça, da prevenção e da reparação. A Igreja está ao
lado das vítimas, pois “as feridas nunca prescrevem”, e está fortemente
comprometida na proteção de menores. Francisco fala duma tríplice forma de
abuso: de poder, de consciência e sexual. E afirma que o “clericalismo” está entre as principais
causas do flagelo: é quando o sacerdócio perde a sua vocação de serviço e se
transforma em poder, anulando a personalidade dos cristãos. Falando à Cúria,
clamou contra o encobrimento e classificou os abusadores de lobos atrozes,
muitas vezes escondidos atrás de rostos angelicais, lançando-lhes o apelo a que
se convertam, se entreguem “à justiça humana” e se preparem para “a justiça
divina”. Recorde-se que o Papa destituiu do estado clerical bispos e sacerdotes
e retirou o cardinalato a Theodore McCarrick, 88 anos, Arcebispo emérito de
Washington. E note-se a criação da grande expectativa em torno do anunciado
encontro sobre abusos convocado pelo Papa para o próximo mês de fevereiro no
Vaticano, em que tomarão parte os presidentes (ou seus substitutos) de todas as Conferências Episcopais do mundo.
Nas viagens internacionais, o abraço
de pessoas e povos. A Evangelii
gaudium pede uma Igreja
cada vez mais missionária e próxima das pessoas. Assim, 2018 levou Francisco ao
Chile, onde encontrou algumas vítimas de abusos: mais tarde, confessaria, em
carta, que incorrera em “graves erros de avaliação e de perceção da situação, sobretudo
pela falta de informações verdadeiras e equilibradas” e pediu perdão. No
Peru, abraçou o povo da Amazónia e, na peregrinação ecuménica a Genebra, apelou
a todas as Confissões cristãs que testemunhassem juntas Cristo, para lá das
diferenças, na lógica do serviço. Em Dublin, viveu o caloroso abraço com as
famílias. E, nos três países bálticos, recordou a perseguição nazista e
comunista e a fidelidade de tantos cristãos mártires.
As viagens em Itália. Na Itália, Francisco foi a Pietrelcina e San Giovanni
Rotondo. Disse que o Padre Pio é um santo que amava Jesus e amava
incondicionalmente a Igreja com todos os seus problemas e todas as suas
dificuldades, dando grande testemunho de fidelidade e comunhão. Em Alessano e
Molfetta, recordou a pertinente exortação do Padre Tonino Bello a uma vida
desconfortável, pois “quem segue Jesus ama os pobres e os humildes”. Seguiram-se
as visitas a Nomadelfia (Comunidade fundada por Frei Zeno Saltini) e Loppiano (Focolares) e, depois, a Bari para o encontro com os líderes
das comunidades cristãs do Médio Oriente, onde o Papa denunciou violências,
destruição, fundamentalismos e a migração forçada “no silêncio de tantos e com
a cumplicidade de muitos”, com o risco da própria existência dos cristãos na
região. E a última viagem em Itália foi a Piazza Armerina e Palermo, no 25.º
aniversário da morte do Beato Pino Puglisi (sacerdote assassinado pela máfia), que vem espalhando bondade contra o poder do mal.
Acordo com a China ou olhar para a
história pelos olhos da fé. A 22 de
setembro, foi assinado, em Pequim, o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a
China sobre a nomeação dos Bispos (a última palavra pertence ao Papa) para contribuir para a vida da Igreja na China, em
benefício dos chineses e da paz no mundo – objetivo pastoral, não político.
Numa Mensagem, Francisco explicou o que o moveu: promover o anúncio do
Evangelho obter a unidade da comunidade católica chinesa. E pediu confiança,
“porque a fé muda a história”.
Direitos humanos espezinhados e
cristãos perseguidos. No 70.º
aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Papa, no discurso
ao Corpo Diplomático, afirmou que muitos direitos fundamentais são ainda hoje
violados: “O primeiro entre todos, o da vida, da liberdade e da inviolabilidade
de todo ser humano”. E pensa nas “crianças inocentes, descartadas ainda antes
de nascerem”, nos “idosos, também eles muitas vezes descartados, especialmente
se estiverem doentes”, nas “mulheres que frequentemente sofrem violências”, nas
vítimas de tráfico, muitas vezes fugindo da pobreza e das guerras. E denuncia o
surgimento de novos e controversos direitos que, numa nova forma de colonização
ideológica, os países ricos querem impor aos mais pobres. Assim, o nosso
pensamento vai para as palavras da Evangelii Gaudium, onde se pede
a mudança do atual sistema económico, porque “essa economia mata”, gera
famintos e descartes humanos, fazendo prevalecer “a lei do mais forte, onde o
poderoso come o mais fraco”; se sublinha que, em muitos países, a liberdade de
religião e de consciência é espezinhada; e se afirma que, em diversas ocasiões,
os cristãos são mais perseguidos hoje do que nos primeiros séculos.
É a hora da misericórdia. Há 5 anos, Francisco concluía a sua Exortação Apostólica
com um encorajamento aos “evangelizadores com Espírito”, crentes que
vivem a missão como “paixão por Jesus” e pelo povo, próximos dos mais
sofredores e portadores da alegria do Evangelho que não se impõe, mas atrai com
uma linguagem positiva, dialógica, que acolhe e não condena, cheios de
esperança, atentos a “tirar as sandálias
diante da terra sagrada do outro”.
E, na
Audiência Geral de 21 de novembro, proclamava:
“Bem-aventurados
os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus! (Mt 5,3). Sim, felizes aqueles
que deixam de se iludir, julgando que se podem salvar da própria debilidade sem
a misericórdia de Deus, a única que pode curar. Somente a misericórdia de Deus
cura o coração. Ditosos os que reconhecem os seus desejos malvados e, com um
coração arrependido e humilhado, não se apresentam a Deus e aos outros homens
como pessoas justas, mas como pecadores. É bonito o que Pedro disse ao Senhor:
‘Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador’. Como é bonito este pedido: ‘Afasta-te
de mim, Senhor, porque sou um pecador’. Estas pessoas sabem ter compaixão,
misericórdia pelos outros, porque a experimentam em si mesmos.”.
***
Com efeito,
é a misericórdia divina, qual outro rosto do Deus rico que Se faz pobre, que
nos torna pobres em espírito e misericordiosos para alcançarmos
misericórdia – tornando-nos sempre dialogantes, pacíficos, puros de coração,
humildes, com fome e sede de justiça, e santos, mesmo em choro e perseguição, virtude
heroica ou oferta da vida, capazes de arrebatar o Reino de Deus dilatá-lo e
inculcando-o no coração dos demais irmãos, porque todos somos filhos de Deus e
ganhamos direito à Sua herança celeste.
2018.12.31 – Louro de Carvalho
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