sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece!



Não bastava verificar-se a marcação de presença no Plenário da Assembleia da República (AR) de deputado ausente ou a assinatura da folha de presenças de deputado em reunião de comissão parlamentar com o abandono imediato e em regresso. Tinha de vir a fraude do voto duma lei importante como é a do Orçamento do Estado a decorar a moldura legislativa.
Sim, uma deputada do PSD (o atual paladino da ética) diz que já registou várias vezes colegas que não estavam no hemiciclo, mas não sabe “precisar” se o fez por Feliciano Duarte, assegurando que, se o fez, “não foi com instinto de maldade ou vigarice”. No entanto, sabe-se que essa deputada registou Feliciano Barreiras Duarte no momento da votação na generalidade do Orçamento do Estado para 2019. Isto ocorreu às 18,31 horas do dia 30 de outubro de 2018, cinco horas após o antigo secretário-geral do PSD ter abandonado o hemiciclo de São Bento, alegadamente para acorrer a uma “emergência familiar”.  
A deputada em causa (coordenadora do PSD na Comissão do Trabalho e Segurança Social, presidida por Feliciano) admitiu ao Observador a possibilidade ter “carregado no botão” no momento da verificação de quórum, induzindo o sistema a assumir a presença e o voto no OE do deputado ausente, mas garante que não foi ela a fazer o log in de entrada no computador. Refere que, “se o computador estava ligado” ao seu lado, pode “ter carregado no botão porque a ideia que tinha era que ele ia voltar”. E desafia: Que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece”. Justificando que tem “muito respeito e consideração” por Feliciano, garante que não tem uma relação pessoal ou de confiança com o colega. A isto Feliciano disse “nim”.
As imagens, da AR TV do plenário do dia que mostram que Maria das Mercês Borges era a mais bem posicionada no local onde o voto foi registado para votar por Feliciano. E ela diz:
Não consigo precisar se o registei, se carreguei ou não carreguei. Sei que ele saiu em pânico por causa do filho, totalmente desesperado. Por isso, posso ter carregado porque fazemos isso muitas vezes. Se quiserem pôr as imagens que mostram isso, coloquem, eu não vou dar uma conferência de imprensa como a outra deputada.”.
A outra deputada a que se refere é a que registou indevidamente a presença do secretário-geral do seu partido. E não vê mal em ter registado Feliciano para efeitos de votação e admite que já carregou “muitas vezes por vários outros colegas”, esclarecendo o óbvio, que “isto não é só no PSD que acontece, é em todas as bancadas”.
Porém, se a deputada não fez o log in de entrada no computador, apenas admitindo ter carregado no botão antes da verificação de quórum, foi outro deputado a fazer o log in ou o próprio foi Feliciano Barreiras Duarte, o que parece provável, dado que ele se ausentou. Não terá é fechado o sistema antes de se ausentar do hemiciclo – descuido ou pressa!
Segundo o Observador, “fonte autorizada” assegura que o deputado “não pediu a ninguém que votasse por ele, não teve qualquer vantagem pecuniária ou política por se ter ausentado, o seu voto ou ausência dele era irrelevante para o resultado final da votação, dado que havia disciplina de voto e o PSD votava em bloco”, e que “já se dirigiu aos serviços do Parlamento pedindo para marcarem falta à votação e justificando as razões da ausência”.
O dia era de debate e votação do Orçamento do Estado para 2019 na generalidade, em duas etapas longas: 3 horas e 43 minutos na sessão da manhã e 4 horas na sessão da tarde, onde ocorreu a votação. Feliciano Duarte esteve no arranque da sessão, às 10 horas, acabando por sair pouco depois das 13. Às 13,26 horas, o deputado já tinha abandonado o seu lugar, na última fila da bancada socialdemocrata, não tendo voltado naquele dia.
Os restantes deputados naquelas filas confirmam a versão de que Feliciano saiu à pressa, como o próprio explicou, para “acorrer a uma emergência de um dos seus filhos menores“. A sessão da tarde recomeçou às 15,08 horas, quando Ferro Rodrigues dá início à sessão e dá ordem para que se abram as galerias.
Feliciano, que não deu a sua password a ninguém, sugere que podia ter deixado o computador ligado de manhã e outro colega, bem intencionado, o ter registado para votar. Só que o deputado António Lima Costa, ao ver que o seu lugar habitual estava ocupado pelo deputado Miguel Santos, sentou-se no lugar mais à ponta na fila de cima (onde Feliciano estava sentado de manhã). Assim, alguém (ou o próprio, antes de sair) teve de fazer log in por Feliciano noutro computador que não aquele onde esteve sentado de manhã e depois registá-lo para votar.
Pelas imagens da AR TV que mostram os momentos da verificação de quórum, é possível perceber que Maria das Mercês Borges era a única que conseguiria ter feito o registo naquele computador por Feliciano. E a própria admitiu que é possível tê-lo feito. E Feliciano Barreiras Duarte votou assim contra o Orçamento do Estado para 2019 sem estar presente.
Também, na votação final global do Orçamento do Estado para 2019 no passado dia 29 de novembro, se deu um momento caricato. Na verificação de quórum, alguns deputados não se conseguiram registar. Um deles registou-se, mas levantou o braço como se não tivesse conseguido. Ferro Rodrigues ironizou: “Isso não pode ser, porque seriam 231 deputados e, portanto, teria de haver um deputado-fantasma”. Tudo resolvido e uma novidade, que Ferro fez questão de registar: “Parece que estamos todos, estamos os 230”.
***
Na sequência dos vários casos de presenças-fantasma, que nos últimos tempos afetaram três deputados do PSD (José Silvano, Matos Rosa e Duarte Marques), e do voto-fantasma de Feliciano, o Presidente da Assembleia da República tomou uma posição após a aprovação final do Orçamento do Estado. Convocou uma conferência de líderes extraordinária para o passado dia 5. Logo no início da reunião, Ferro disse que é “inquestionável” que existiram irregularidades nos casos até agora registados. Foi bastante duro com os deputados incumpridores, para os quais defende sanções, e quer acabar com o registo de presença apenas através do mero log in no computador, pois, como defende, “afigura-se como indispensável distinguir a simples ligação do computador do registo de presenças”. E sustenta que “nunca é de mais enfatizar” que “não é, nem pode ser, o polícia dos deputados” e que “sempre os defendeu”. Porém, “quando alguns (poucos) deputados põem em causa o prestígio do Parlamento, estão a pôr em causa o prestígio da democracia representativa”, não pactua.
Segundo Ferro Rodrigues, exige-se “mais responsabilidade e responsabilização individual (de cada deputado) e coletiva (de cada grupo parlamentar) sancionando as irregularidades”, porque, “apesar de considerar inaceitáveis as formas de “funcionalização dos mandatos parlamentares”, a questão chegou a um ponto de limite.
Na predita conferência de líderes, todas as  bancadas concordaram com a introdução de um novo registo de presença  em plenário, além de terem de fazer o log in. E, após proposta de Ferro Rodrigues, os partidos na conferência de líderes chegaram a consenso quanto à criação dum grupo de trabalho para aumentar a responsabilização dos deputados no registo de presença. Embora ainda não tenham chegado a acordo sobre a forma, têm dois pontos de partida: aceitam um novo registo, que passa pela marcação de presença em plenário, estando claro que é feita só para esse efeito; e rejeitam o recurso a qualquer registo com dados biométricos.
Sobre os casos badalados, três deles registados no PSD, o líder parlamentar dos sociais-democratas disse que a direção da bancada só pode fazer o trabalho de “sensibilização dos deputados relativamente às suas responsabilidades”. Isto, em nome da “regra sacrossanta da democracia e de qualquer parlamento no mundo” da relação do deputado e do eleitor.
E eu só me pergunto como é que o eleitor responsabiliza em concreto o seu deputado prevaricador, a não ser pela via eleitoral. Mas aí o eleitor vota num partido e o faltoso pode passar por entre as pingas da chuva. São os partidos que, na sua estratégia, escolhemos candidatos, não?!
E Negrão disse que estas irregularidades não são matérias passíveis de punição no Conselho de Jurisdição do PSD, embora admita que isso possa vir a ser “estudado”. Mas lembrou que que o grupo parlamentar não é uma empresa, nem um órgão administrativo. E eu questiono-me se apenas há sanções legais e éticas no âmbito das empresas e dos órgãos administrativos.
Quanto às medidas da AR para combater o problema, o líder parlamentar do PSD considerou que o “ponto crucial” é o da “responsabilidade individual de cada deputado” e que os deputados têm “de assumir de uma vez por todas que tem responsabilidades perante os eleitores” e que “essas responsabilidades devem ser cumpridas”. Depois, falou da hipótese do uso do cartão para esse registo, dando essa medida quase como certa aos jornalistas:
Relativamente à marcação das presenças, haverá o uso do cartão que depois, aberto que esteja o computador, assinalará a presença e, por outro lado, assinalará todo o resto do trabalho que deve ser feito com o computador”.
Para Negrão, este sistema do cartão, já utilizado em votações eletrónicas, “responsabiliza mais o deputado no que respeita à sua presença em cada sessão de trabalho”. No entanto, a questão não terá sido discutida na conferência de líderes, embora possa ser sempre uma proposta apresentada pelo PSD no grupo de trabalho que vai discutir o assunto.
Questionado sobre as fragilidades da solução, Negrão diz que “um cartão responsabiliza muito mais um deputado”, pois, “não sendo oral, como é a password (A password é oral?), é pessoal e intransmissível”. Sobre se os deputados não podiam depois trocar entre si os cartões, o líder parlamentar acrescentou que “há crimes no Código Penal e são muitos que existem e continuam a existir porque nada impede que eles continuem a ser cometidos”.
Os restantes partidos estão de acordo com um novo registo em plenário, proposto pelo Presidente da AR. O PS, através do deputado Pedro Delgado Alves, destacou, após a reunião, que “não deve haver espaço para manipulação ou para fraude no que diz respeito a verificação de presenças em plenário”. Segundo o socialista, o objetivo do grupo de trabalho constituído é “arranjar formas que sejam estanques e que não permitam que isso suceda”.
O líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares, sustenta que a sua bancada julga “necessário ir além do modelo de verificação que hoje existe”, porque “está desadequado e desatualizado”, “como se provou nos casos recentes”. No entanto, admite que “como em qualquer modelo, se não houver uma responsabilidade individual, ele tem sempre um patamar de fiabilidade”. Pedro Filipe Soares não está convencido com o modelo de cartão abordado por Negrão e explica:
O modelo já existe atualmente, qualquer deputado pode validar a sua presença com username e password ou com o cartão de deputado. Esses dois modelos existentes já provaram, nas situações que foram descritas, não estarem à altura de garantir quer a presença dos deputados, quer a validação de quórum de iniciativas legislativas, o que desvirtua a democracia representativa como ela deve existir.”.
Por sua vez, o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, começou por dizer que “o problema não está nem no modelo nem no sistema, mas no bom ou, neste caso, no mau uso que é dado a esse sistema”. Apesar disso, os centristas defendem que “havendo propostas construtivas como há, no sentido de haver um reforço dos procedimentos“, o CDS não tem nada a opor. Mas avisa:
Não há sistemas infalíveis, não há sistemas perfeitos, o que há é o bom ou mau uso do sistema”.
O PCP, através do deputado António Filipe, concorda “genericamente” com as propostas feitas pelo Presidente da AR, pois a ideia de poder existir “no sistema informático do plenário da AR uma forma autónoma do deputado assinalar a sua presença” é um “método razoável e responsabilizante”.
E José Luís Ferreira, dos Verdes, reforçou que este é “mais um problema ético do que técnico”. Apesar disso, o PEV considera “útil que se possam tomar medidas de maior responsabilização para os deputados” e, por isso, concorda que exista uma nova “diligência no sentido de confirmar a presença do deputado no plenário”. Destacou, no entanto, que ainda não está fechada a forma como será feita: “Pode ser com cartão ou no ecrã no computador”. E reiterou algo com que todos concordaram: “Está afastada qualquer utilização de dados biométricos”.
***
Entretanto, Mercês Borges, que, além de coordenadora do PSD na comissão de trabalho, era presidente da comissão parlamentar de inquérito (CPI) às rendas excessivas no setor energético, demite-se, na sequência do caso da votação-fantasma, de todos os cargos que desempenhava na Assembleia da República, mas mantém-se como deputada.
Em comunicado, o PSD refere que “perante as últimas noticias vindas a publico, a deputada do PSD Maria das Mercês Borges, pediu hoje a demissão de todos os cargos em que representava o grupo parlamentar ao presidente do grupo parlamentar Fernando Negrão”. E ainda:
O presidente do grupo parlamentar, Fernando Negrão, aceitou estes pedidos de demissão e designou para novo presidente da comissão parlamentar de inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Eletricidade o deputado e vice-presidente da direção do grupo parlamentar Emídio Guerreiro”.
A solução é inadequada, quer por a deputada ter falhado como deputada e não como coordenadora de grupo de trabalho nem como presidente de CPI (devia demitir-se de deputada), quer por Feliciano, que deu azo à fraude, não ter sanção visível e equitativa.
Deputados só para levantar o braço dispensam-se.
Carlos César diz que, se um deputado do PS incorresse na falta em causa, não permaneceria no grupo parlamentar. Será?  
Além disso, não percebo a hipocrisia e o desplante que reinam na AR e nos partidos: podem impor disciplina de voto, cuja quebra acarreta sanções (chegou a implicar multa, retirada da confiança política, não proposta de candidatura…), mas não são capazes de impor assiduidade, pontualidade, verdade da presença e do voto, exigência de documentos comprovativos de despesas e atividades (viagens, trabalho político…)… Que representantes têm os eleitores, que tudo podem fazer porque são órgão de soberania, e não são empresa nem órgão administrativo, quando deveriam ser muito mais verdadeiros, cumpridores, responsáveis e ativos? Se não são capazes de prestar contas na AR, com é que as prestam ao eleitorado, já que representam todo o eleitorado e não apenas os círculos por que foram eleitos?
2018,12.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário