quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Os titulares do soberano órgão legislativo transgridem a lei


Se fosse o cidadão comum a afirmá-lo, poderia pensar-se em calúnia, insulto ou opinião exacerbada. Mas quem chega à conclusão vertida em epígrafe é o TdC (Tribunal de Contas), “o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe”, competindo-lhe, entre outras atribuições, “dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social” (vd art.º 214.º da CRP).
A este respeito, o JN, o Observador e o JN, como eco da informação adiantada pelo jornal I e do site do TdC, referem, citando o parecer do TdC, entretanto disponibilizado no site oficial, que o TdC detetou várias falhas e potenciais irregularidades na fiscalização que o Parlamento faz aos deputados, sendo de relevar sobretudo a falta de rigor na supervisão das viagens pagas pela AR (Assembleia da República) aos parlamentares, das presenças em plenário e das informações relativas às moradas, a ilegalidade do seguro de saúde de que beneficiam os deputados e as dúvidas que persistem sobre as informações pessoais dos deputados, podendo estar desatualizadas – informação não confirmável por falta de supervisão do Parlamento sobre estes dados.
O Expresso  revelou, em abril, que os deputados insulares recebiam um duplo reembolso pelas deslocações às ilhas. Além dos 500 euros semanais pagos pela AR, podem reclamar ainda nos CTT o pagamento dessas viagens se forem superiores a 86 euros, no caso da Madeira, ou a 134, no caso dos Açores – situação que levou Ferro Rodrigues a pedir a apreciação da Subcomissão de Ética e da Comissão Eventual de Transparência (Só em 2017 foram pagas mais de três milhões de euros em viagens e deslocações). Ora os deputados que recebem estas ajudas podem estar a incorrer em fraude fiscal porque, se tiverem sido ressarcidos por viagens que realizaram, tais valores deveriam ser tributados em sede de IRS como rendimentos de trabalho dependente.
Assim, deverá a Autoridade Tributária ou a UTAO averiguar se os deputados não estarão a incorrer em situação que possa configurar evasão fiscal ao perceberem réditos indevidos.
A este respeito, os juízes recomendam à AR o acatamento das conclusões da Subcomissão de Ética, que apela à revisão do valor de subsídios de deslocação e a uma fiscalização mais eficaz da justiça destes pagamentos, criticando o facto de estes subsídios serem pagos sem que haja necessidade de apresentar um comprovativo de viagem. E, além de alertar para a necessidade de atualização das suas informações pessoais, o documento do TdC imputa responsabilidades aos deputados, que estão obrigados a “atualizar os dados de titularidade de IRS junto da entidade patronal”. Com efeito, a situação pode agravar-se já que os subsídios de deslocação pagos aos deputados são calculados com base naqueles dados, podendo dar-se, por exemplo, o caso de haver deputados a receber ajudas de deslocação tendo em conta uma morada não efetiva.
Por outro lado, os juízes avisam ainda que o seguro de saúde a que os deputados têm direito é ilegal, pois, desde 2007 a lei em vigor impossibilita que as entidades públicas financiem seguradoras. Porém, o Parlamento defende-se alegando que o seguro existe desde 1990 e que “não existe motivo” para quebrar o acordo. Quer constituir-se no regime de exceção, já que os demais subsistemas de saúde aplicáveis aos trabalhadores da administração pública – caso da ADSE – também estavam constituídos há muito mais tempo e o Estado deixou de os financiar.
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No portal do TdC, antes do acesso ao Parecer sobre a Conta da Assembleia da República relativa ao ano económico de 2017 (PROCESSO N.º 9/2018 – AUDIT), aprovado em sessão de 23 de novembro, após as peças de contraditório remetidas, a 18 de outubro, pelos partidos com assento parlamentar e pelo Conselho de Administração da AR, vem uma síntese da análise feita e das recomendações que o Tribunal houve por bem fazer.   
Assim, a auditoria à conta da AR relativa a 2017 teve por objetivos “verificar a contabilização adequada das receitas e das despesas” e “a respetiva regularidade e legalidade, a fim de suportar a emissão do Parecer cometido ao TdC”.
O resultado constitui uma base aceitável para formular a opinião de que a conta reflete de forma apropriada a posição financeira da AR em 31 de dezembro de 2017, o desempenho financeiro e a execução orçamental relativos àquele ano. E o TdC entende que “o juízo sobre a conta é favorável”. Porém, “chama a atenção para as situações relativas às despesas de transporte dos deputados” (no montante de 3,1M€ em 2017) que, de acordo com os critérios da RAR (Resolução da Assembleia da República) n.º 57/2004, “foram dispensadas da apresentação de documentos que comprovem os custos e, consequentemente, não foram objeto de prestação de contas por cada deputado, pelo que, nos termos do Código do IRS, poderão ser consideradas como rendimentos do trabalho”. Na verdade, o TdC considera que “tais critérios são insuficientes para formular um juízo de auditoria sobre se as deslocações foram ou não realizadas e, consequentemente, sobre a conformidade legal dos pagamentos autorizados”. No caso dos deputados residentes nas RA (Regiões Autónomas), os valores pagos relativamente às viagens aéreas não consideram o subsídio social de mobilidade, a que cada deputado tem direito enquanto residente nessas Regiões.
As operações examinadas, no quadro dos testes realizados por amostragem não evidenciaram erros de conformidade legal e regulamentar ou de cálculo em matéria das remunerações e outros abonos aos deputados, ao pessoal dos Serviços da AR e das transferências de subvenções para os partidos, campanhas eleitorais e grupos parlamentares. Assim, o Tribunal concluiu que as operações subjacentes são legais e regulares, com exceção das despesas com contratos de seguro de doença dos deputados (no montante de 15,9m€ em 2017). E justifica:
As despesas relativas ao seguro de saúde dos Senhores Deputados não se encontram previstas no artigo 16.º do Estatuto dos Deputados, só podendo aqueles auferir remunerações ou vantagens de caráter patrimonial se estiverem fixadas por lei, nos termos do artigo 32.º do Estatuto Remuneratório dos Titulares dos Cargos Políticos, o que não sucede com os seguros de saúde. Acresce que o financiamento, por orçamentos públicos, de seguros de saúde privados está proibido pelo artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro. As despesas autorizadas, os compromissos assumidos e os pagamentos efetuados com o seguro de saúde não são conformes às leis aplicáveis.”.
Nestes termos, o TdC recomenda
- Ao Plenário da AR, através do Presidente da AR, a revisão do regime jurídico da RAR n.º 57/2004 relativa ao abono de ajudas de custo e de transporte dos deputados, em ordem a que o montante dos pagamentos de deslocações efetuados pela AR corresponda aos custos incorridos pelos deputados com deslocações efetivamente realizadas, bem como a revisão do regime de previsto no Estatuto dos Deputados. E
- Ao Conselho de Administração da AR que, enquanto não for revisto aquele regime jurídico, fixe um valor para as deslocações dos deputados residentes nas RA que tenha em conta o subsídio social de mobilidade, como foi já preconizado pela Subcomissão de Ética.
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Entretanto, foi agendada para hoje, dia 5, uma conferência de líderes parlamentares extraordinária, convocada de emergência na semana passada pelo Presidente da AR, para discutir os casos relacionados com as viagens dos deputados, com as moradas falsas e com as presenças-fantasma em plenário (e troca de “passwords”), que ficou marcada pelas palavras duras de Ferro Rodrigues, sublinhando que, embora esta prática não constitua uma ilegalidade, é preciso mudar o sistema. 
Para Ferro Rodrigues, ao invés do que declarara dantes, “é de toda a conveniência a atualização e ajuste de alguns dos procedimentos e conceitos”. Nesse sentido, concordou com a proposta do Conselho de Administração da AR de criação de um grupo de trabalho “com vista a estudar e a recomendar as alterações” com as despesas e reembolsos de viagens de deputados – posição que foi transmitida aos líderes parlamentares naquela conferência extraordinária.
O Presidente da AR deixou claro que as alterações devem entrar em vigor na atual legislatura, antes das eleições legislativas previstas para novembro do próximo ano (o parlamento tem dez meses para arrumar a casa). 
No diz que respeito às falsas presenças na AR – Plenário, comissões e outras – (vg do secretário-geral do PSD, José Silvano, e, depois, dos deputados sociais-democratas Duarte Marques e José Matos Rosa e chegaram a Feliciano Barreiras Duarte que votou o Orçamento sem estar presente), reconheceu que “parece inquestionável a existência de irregularidades”. E defendeu que os deputados e os grupos parlamentares a que pertencem terão de ser “responsabilizados”. Disse a este respeito:
Quando alguns (poucos) deputados põem em causa o prestígio da democracia representativa, com isso não pactuo. O que se exige é mais responsabilidade e responsabilização individual (de cada deputado) e coletivas (de cada grupo parlamentar), sancionando as irregularidades.”.
Sabe-se que, entretanto, o Ministério Público já anunciou que vai abrir um inquérito ao caso das falsas presenças de José Silvano no plenário da AR.
Ferro Rodrigues, sustentando que não pretende ser “o polícia dos deputados”, transmitiu aos diversos líderes das bancadas partidárias que se afigura “indispensável distinguir a simples ligação do computador do registo das presenças”. No entanto, considera “inaceitáveis quaisquer formas de funcionalização dos mandatos parlamentares, equiparando o registo de presenças dos deputados ao modelo em vigor para os funcionários”, pois, como salientou, “todos os deputados são titulares do órgão de soberania Assembleia da República”.
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O exposto merece uma clarificação. Nos regimes de ditadura, nas monarquias teocráticas e nas monarquias absolutas, o legislador não está sujeito à lei, pois, como diz Fernão Lopes no Prólogo à Crónica de Dom Pedro, a lei é o Príncipe mudo e o Príncipe é a lei com voz. Porém, em regimes democráticos, maxime de democracia representativa, ninguém está acima da lei nem deve estar fora da lei. Por isso, o legislador é um coletivo, seja o Parlamento, seja o Governo. Ora cada membro do Governo ou cada deputado não é o legislador; e até uma portaria refere “que manda o Governo através do Ministro” X... ou “do Secretário de Estado” Y… E o colégio não é responsável criminalmente pelo incumprimento, mas cada membro do colégio na medida em que prevarique. Mesmo quando a lei obriga o Governo a fazer algo, como regulamentar uma lei num determinado prazo, isso traz a responsabilidade política e, se mais alguma houver, cabe ao Primeiro-Ministro, cidadão responsável pela atividade governativa, embora caiba a todos os membros do Governo a solidariedade política. Assim, os deputados parecem querer ser a lei com voz e não se sujeitar ao Príncipe mudo, que já não o é por ser o povo, que vota e critica e que eles representam. Porém, pondo-se em cima da lei e falando cima da burra que não cometem ilegalidades nem infringem a ética, traem o povo. Corrijam-se ou substituam-se!
2018,12.05 – Louro de Carvalho

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