Se fosse o cidadão comum a afirmá-lo, poderia pensar-se em calúnia,
insulto ou opinião exacerbada. Mas quem chega à conclusão vertida em epígrafe é
o TdC (Tribunal de
Contas), “o órgão supremo de
fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que
a lei mandar submeter-lhe”,
competindo-lhe, entre outras atribuições, “dar
parecer sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social” (vd
art.º 214.º da CRP).
A este respeito, o JN, o Observador e o JN, como eco da informação adiantada pelo jornal I e do site do TdC, referem,
citando o parecer do TdC, entretanto disponibilizado no site oficial, que o TdC detetou várias
falhas e potenciais irregularidades na fiscalização que o Parlamento faz aos
deputados, sendo de relevar sobretudo a falta de rigor na supervisão das
viagens pagas pela AR (Assembleia
da República) aos
parlamentares, das presenças em plenário e das informações relativas às
moradas, a ilegalidade do seguro de saúde de que beneficiam os deputados e as
dúvidas que persistem sobre as informações pessoais dos deputados, podendo
estar desatualizadas – informação não confirmável por falta de supervisão do
Parlamento sobre estes dados.
O Expresso
revelou, em abril, que os deputados insulares recebiam um duplo reembolso pelas
deslocações às ilhas. Além dos 500 euros semanais pagos pela AR, podem reclamar
ainda nos CTT o pagamento dessas viagens se forem superiores a 86 euros, no
caso da Madeira, ou a 134, no caso dos Açores – situação que levou Ferro
Rodrigues a pedir a apreciação da Subcomissão de Ética e da Comissão Eventual
de Transparência (Só em
2017 foram pagas mais de três milhões de euros em viagens e deslocações). Ora os deputados que recebem estas
ajudas podem estar a incorrer em fraude fiscal porque, se tiverem sido
ressarcidos por viagens que realizaram, tais valores deveriam ser
tributados em sede de IRS como rendimentos de trabalho dependente.
Assim, deverá
a Autoridade Tributária ou a UTAO averiguar se os deputados não estarão a
incorrer em situação que possa configurar evasão fiscal ao perceberem réditos
indevidos.
A este
respeito, os juízes recomendam à AR o acatamento das conclusões da Subcomissão
de Ética, que apela à revisão do valor de subsídios de deslocação e a uma
fiscalização mais eficaz da justiça destes pagamentos, criticando o facto de
estes subsídios serem pagos sem que haja necessidade de apresentar um
comprovativo de viagem. E, além de alertar para a necessidade de atualização das
suas informações pessoais, o documento do TdC imputa responsabilidades aos
deputados, que estão obrigados a “atualizar os dados de titularidade de IRS
junto da entidade patronal”. Com efeito, a situação pode agravar-se já
que os subsídios de deslocação pagos aos deputados são calculados com base
naqueles dados, podendo dar-se, por exemplo, o caso de haver deputados a
receber ajudas de deslocação tendo em conta uma morada não efetiva.
Por outro
lado, os juízes avisam ainda que o seguro de saúde a que os deputados têm
direito é ilegal, pois, desde 2007 a lei em vigor impossibilita que as
entidades públicas financiem seguradoras. Porém, o Parlamento defende-se
alegando que o seguro existe desde 1990 e que “não existe motivo” para
quebrar o acordo. Quer constituir-se no regime de exceção, já que os demais
subsistemas de saúde aplicáveis aos trabalhadores da administração pública –
caso da ADSE – também estavam constituídos há muito mais tempo e o Estado
deixou de os financiar.
***
No portal do TdC, antes do acesso ao Parecer sobre a
Conta da Assembleia da República relativa ao ano económico de 2017 (PROCESSO N.º
9/2018 – AUDIT), aprovado
em sessão de 23 de novembro, após as peças de contraditório remetidas, a 18 de
outubro, pelos partidos com assento parlamentar e pelo Conselho de
Administração da AR, vem uma síntese da análise feita e das recomendações que o
Tribunal houve por bem fazer.
Assim, a auditoria à
conta da AR relativa a 2017 teve por objetivos “verificar a contabilização
adequada das receitas e das despesas” e “a respetiva regularidade e legalidade,
a fim de suportar a emissão do Parecer cometido ao TdC”.
O resultado constitui
uma base aceitável para formular a opinião de que a conta reflete de forma
apropriada a posição financeira da AR em 31 de dezembro de 2017, o desempenho
financeiro e a execução orçamental relativos àquele ano. E o TdC entende que “o
juízo sobre a conta é favorável”. Porém, “chama a atenção para as situações
relativas às despesas de transporte dos deputados” (no montante
de 3,1M€ em 2017) que, de
acordo com os critérios da RAR (Resolução da Assembleia da República) n.º 57/2004, “foram dispensadas da apresentação de
documentos que comprovem os custos e, consequentemente, não foram objeto de
prestação de contas por cada deputado, pelo que, nos termos do Código do IRS,
poderão ser consideradas como rendimentos do trabalho”. Na verdade, o TdC
considera que “tais critérios são insuficientes para formular um juízo de
auditoria sobre se as deslocações foram ou não realizadas e, consequentemente,
sobre a conformidade legal dos pagamentos autorizados”. No caso dos deputados
residentes nas RA (Regiões Autónomas), os
valores pagos relativamente às viagens aéreas não consideram o subsídio social
de mobilidade, a que cada deputado tem direito enquanto residente nessas
Regiões.
As operações
examinadas, no quadro dos testes realizados por amostragem não evidenciaram
erros de conformidade legal e regulamentar ou de cálculo em matéria das
remunerações e outros abonos aos deputados, ao pessoal dos Serviços da AR e das
transferências de subvenções para os partidos, campanhas eleitorais e grupos parlamentares.
Assim, o Tribunal concluiu que as operações subjacentes são legais e regulares,
com exceção das despesas com contratos de seguro de doença dos deputados (no montante
de 15,9m€ em 2017). E
justifica:
“As despesas relativas ao seguro de saúde
dos Senhores Deputados não se encontram previstas no artigo 16.º do Estatuto
dos Deputados, só podendo aqueles auferir remunerações ou vantagens de caráter
patrimonial se estiverem fixadas por lei, nos termos do artigo 32.º do Estatuto
Remuneratório dos Titulares dos Cargos Políticos, o que não sucede com os
seguros de saúde. Acresce que o financiamento, por orçamentos públicos, de
seguros de saúde privados está proibido pelo artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006,
de 29 de dezembro. As despesas autorizadas, os compromissos assumidos e os
pagamentos efetuados com o seguro de saúde não são conformes às leis
aplicáveis.”.
Nestes termos, o TdC
recomenda
- Ao
Plenário da AR, através do Presidente da AR, a revisão do regime jurídico da
RAR n.º 57/2004 relativa ao abono de ajudas de custo e de transporte dos deputados,
em ordem a que o montante dos pagamentos de deslocações efetuados pela AR
corresponda aos custos incorridos pelos deputados com deslocações efetivamente
realizadas, bem como a revisão do regime de previsto no Estatuto dos Deputados.
E
- Ao
Conselho de Administração da AR que, enquanto não for revisto aquele regime
jurídico, fixe um valor para as deslocações dos deputados residentes nas RA que
tenha em conta o subsídio social de mobilidade, como foi já preconizado pela
Subcomissão de Ética.
***
Entretanto,
foi agendada para hoje, dia 5, uma conferência de líderes parlamentares
extraordinária, convocada de emergência na semana passada pelo Presidente da AR,
para discutir os casos relacionados com as viagens dos deputados, com as
moradas falsas e com as presenças-fantasma em plenário (e troca
de “passwords”),
que ficou marcada pelas palavras duras de Ferro Rodrigues, sublinhando que, embora
esta prática não constitua uma ilegalidade, é preciso mudar o
sistema.
Para Ferro
Rodrigues, ao invés do que declarara dantes, “é de toda a conveniência a
atualização e ajuste de alguns dos procedimentos e conceitos”. Nesse
sentido, concordou com a proposta do Conselho de Administração da AR de criação
de um grupo de trabalho “com vista a estudar e a recomendar as alterações” com
as despesas e reembolsos de viagens de deputados – posição que foi transmitida
aos líderes parlamentares naquela conferência extraordinária.
O Presidente
da AR deixou claro que as alterações devem entrar em vigor na atual
legislatura, antes das eleições legislativas previstas para novembro do próximo
ano (o parlamento tem dez
meses para arrumar a casa).
No diz que
respeito às falsas presenças na AR – Plenário, comissões e outras – (vg do secretário-geral do PSD, José
Silvano, e, depois, dos deputados sociais-democratas Duarte Marques e José
Matos Rosa e chegaram a Feliciano Barreiras Duarte que votou o Orçamento
sem estar presente), reconheceu
que “parece inquestionável a existência de irregularidades”. E defendeu que os
deputados e os grupos parlamentares a que pertencem terão de ser
“responsabilizados”. Disse a este respeito:
“Quando
alguns (poucos) deputados põem em causa o prestígio da democracia
representativa, com isso não pactuo. O que se exige é mais responsabilidade e
responsabilização individual (de cada deputado) e coletivas (de cada grupo
parlamentar), sancionando as irregularidades.”.
Sabe-se que, entretanto, o Ministério Público já anunciou que vai abrir um
inquérito ao caso das falsas presenças de José Silvano no plenário da AR.
Ferro
Rodrigues, sustentando que não pretende ser “o polícia dos deputados”, transmitiu
aos diversos líderes das bancadas partidárias que se afigura “indispensável
distinguir a simples ligação do computador do registo das presenças”. No
entanto, considera “inaceitáveis quaisquer formas de funcionalização dos
mandatos parlamentares, equiparando o registo de presenças dos deputados ao
modelo em vigor para os funcionários”, pois, como salientou, “todos os
deputados são titulares do órgão de soberania Assembleia da República”.
***
O exposto
merece uma clarificação. Nos regimes de ditadura, nas monarquias teocráticas e
nas monarquias absolutas, o legislador não está sujeito à lei, pois, como diz
Fernão Lopes no Prólogo à Crónica de Dom Pedro, a lei é o Príncipe mudo e o
Príncipe é a lei com voz. Porém, em regimes democráticos, maxime de democracia representativa, ninguém está acima da lei nem
deve estar fora da lei. Por isso, o legislador é um coletivo, seja o
Parlamento, seja o Governo. Ora cada membro do Governo ou cada deputado não é o
legislador; e até uma portaria refere “que manda o Governo através do Ministro”
X... ou “do Secretário de Estado” Y… E o colégio não é responsável criminalmente
pelo incumprimento, mas cada membro do colégio na medida em que prevarique.
Mesmo quando a lei obriga o Governo a fazer algo, como regulamentar uma lei num
determinado prazo, isso traz a responsabilidade política e, se mais alguma
houver, cabe ao Primeiro-Ministro, cidadão responsável pela atividade
governativa, embora caiba a todos os membros do Governo a solidariedade
política. Assim, os deputados parecem querer ser a lei com voz e não se sujeitar
ao Príncipe mudo, que já não o é por ser o povo, que vota e critica e que eles
representam. Porém, pondo-se em cima da lei e falando cima da burra que não
cometem ilegalidades nem infringem a ética, traem o povo. Corrijam-se ou
substituam-se!
2018,12.05 – Louro de Carvalho
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