Com o 1.º
domingo do Advento, inicia-se o novo Ano Litúrgico e o seu 1.º ciclo, o do
Natal.
O comércio
já vem enxameando, desde fins de outubro, as ruas e praças, as montras e lojas
e os spots publicitários de motivos e
objetos natalícios, como também – é justo registá-lo – de campanhas a favor de
quem precisa e de agendamento de encontros e outros atos de confraternização
com familiares, vizinhos e amigos.
Na ótica do
combate à banalização consumista que, muitas vezes, encandeia, adorna e atordoa
o Natal com as luzes, decorações e sons do mundanismo, fazemos o esforço de
evidenciação da profundidade do mistério do Natal centrando-nos em Jesus menino
que, pelo Seu Nascimento, deu o primeiro passo na Terra para a cruz redentora,
que possibilita a presente e a eterna confraternização dos filhos de Deus na e
com a comunhão trinitária.
Por isso,
fiquei algo espantado quando anotei que o Papa Francisco e o Bispo do Porto (que têm razão) recomendaram a colocação antecipada do Presépio e da
Árvore de Natal nas igrejas, nas casas de família, nas ruas e nas praças. E
hoje, dia 2 de dezembro, o sacerdote que celebrou a missa transmitida pela
Rádio Renascença frisou que muitos e muitas que não são crentes celebram o
Natal e dizia “ainda bem”, porque festejam a vida, o nascimento, a convivência.
E o Papa, na
mensagem que dirigiu ao simpósio sobre as igrejas que deixam de estar ao culto
e que podem ser destinadas a fins profanos não sórdidos, segundo o cânone 1222
do Código de Direito Canónico, disse que o fenómeno de muitas igrejas, necessárias
até há poucos anos, mas não hoje, seja por falta de fiéis e de clero, seja por
uma distribuição diferente da população nas cidades e nas zonas rurais, não
deve ser acolhida com ansiedade pela Igreja. Ao invés, este fenómeno deve ser
interpretado como um sinal dos tempos “que nos convida a uma reflexão e nos impõe
uma adaptação”.
Talvez
também o consumismo natalício, muito fomentado pelo comércio e pelas relações
socioeconómicas, nos possa levar a uma oportuna reflexão e a encarar
catequeticamente este pretenso alargamento dos festejos. Por isso, em vez de
tentarmos obstruir o cortejo das vaidades, talvez seja mais conveniente tentar
alinhá-lo pela linha da eficácia e tolerância evangélicas: continuar a semear o
trigo, mas não impedir primariamente o crescimento conjunto do joio ou das
ervas neutras. Não desistindo, mas sendo criteriosos!
***
Só por
motivos metodológicos se distinguem Natal e Advento. Advento (do nome latino adventus,
us – chegada, por sua vez derivado do verbo advenire: vir, chegar, vir até junto de) significa vinda, chegada até junto de nós.
Obviamente, no contexto cristão, trata-se da vinda de Jesus, o Messias. Ao
longo dos tempos, Deus aproximou-se dos homens e falou-lhes implicitamente
pelos sinais natureza e explicitamente pelos patriarcas, juízes, reis e
profetas. Agora, fala-nos por seu filho Jesus Cristo. O Advento já celebra a
vinda de Jesus, que tira o pecado do mundo – e nesse sentido, chamamo-Lo Messias em hebraico e Cristo em grego – como foi prometido ao
longo do Antigo Testamento. Pelo Natal (no latim, dies natalis – dia do nascimento – de que o tempo assumiu o
adjetivo “natalis” como nome deixando cair o “dies”), celebramos a vinda de Jesus pela modalidade factual
do nascimento a partir do seio virginal de Maria onde fora concebido por obra do
Espírito Santo.
Diga-se que
um só dia do calendário seria exíguo para celebrar tão misterioso e portentoso
mistério da Encarnação do Verbo de Deus.
Por isso, em
douta antropagogia, a Igreja, embora centre a celebração na Solenidade do Natal
do Senhor, fá-la preceder de quadra preparatória em que releva (para nossa edificação) mensagens, factos e figuras humanas – precursores da
vinda de Jesus –, tal como subsequentemente lhe apõe uma oitava festiva para a
sapiência e a deglutição do augusto mistério e, ainda, mais uns dias para
absorvermos o dinamismo do Evangelho da Infância até ao Batismo do Senhor.
***
Entre os
vários motivos natalícios, destaca-se o presépio como lugar central do Natal.
Devo, contudo, anotar que originariamente o “presépio” (em grego, “φάτνη” – phátnê: em latim: praesepium
ou praesepe) é a manjedoura, que por sinédoque passou a designar
também a gruta, estábulo, cabana.
Diz o
Evangelho de Lucas que Maria deu à luz o Seu filho primogénito, O envolveu em
panos e O reclinou sobre uma manjedoura (cf Lc 2,7). Porém, deve ter-se em conta que a manjedoura está
abrigada na gruta ou cabanal e que ali foram acolhidos os visitantes e
adoradores do menino.
Ora, do meu
ponto de vista, a manjedoura passou, com o Natal, a ser o primeiro altar, na
Terra, de adoração familiar: Maria e José acarinharam o menino,
apaparicaram-no, beijaram-no, contemplaram-no e mostraram-no a quem aparecia, nomeadamente
anjos e pastores.
Recordo que
Bento XVI, na homilia da missa na Esplanada de Marienfeld, em Colónia, a 21 de agosto, no
âmbito da XX Jornada Mundial da Juventude (JMJ), falou do sentido da adoração:
“A palavra grega ressoa proskynesis. Ela significa o gesto da
submissão, o reconhecimento de Deus como a nossa verdadeira medida, cuja norma
aceitamos seguir. Significa que liberdade não quer dizer gozar a vida, considerar-se
absolutamente autónomo, mas orientar-se pela medida da verdade e do bem, para,
assim, nos tornarmos nós próprios verdadeiros e bons. Este gesto é necessário,
mesmo se a nossa ambição de liberdade num primeiro momento resiste a esta
perspetiva. […]. A palavra latina para adoração é ad-oratio contacto boca a boca, beijo, abraço e, por
conseguinte, fundamentalmente amor. A submissão torna-se união, porque Aquele a
quem nos submetemos é Amor. Assim, submissão adquire um sentido, porque não nos
impõe coisas alheias, mas liberta-nos em função da verdade mais íntima do nosso
ser.”.
Então, para
adorar, pomo-nos de pé, inclinamo-nos, ajoelhamos, prostramo-nos, sentamo-nos
consoante o que nos parece ser a postura do amado, de quem nos abeiramos. Antigamente,
ao invés do que muitos pensam, o trono real estava perto do solo. Logo, para
“adorar” o rei, o único que estava sentado, era mister fletir, ajoelhar ou prostrar-se,
dependendo da estatura do súbdito (isto antes da instituição de
práticas humilhantes). É, assim,
preciso colocar a boca de modo a podermos beijar a pessoa amada e falar-lhe,
ouvi-la para lhe podermos responder e podermos vir a falar em seu nome a
outrem. Todavia, mais do que a posição física para adorar importa adorar em
espírito e verdade (cf Jo 4,23.24).
A adoração
deve ser cultivada em família, mas não pode fechar-se nela. Imaginemos que
Maria e José se tinham trancado na gruta de Belém e escondiam o menino… Mas
não: aquele primeiro altar familiar abriu-se à adoração de quem acorreu ali: os
anjos fizeram-se ouvir a cantar Glória a Deus no Céu e paz na Terra aos homens
do seu agrado (cf Lc 2,14); entretanto,
um deles fora avisar os pastores que pernoitavam nas imediações da cidade:
“Não temais, pois anuncio-vos uma grande
alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um
Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um
menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.” (Lc 2,10-12).
E os pastores
apostolaram-se reciprocamente “Vamos a
Belém ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer”. Foram apressadamente e encontraram
Maria, José e o menino deitado na manjedoura. Depois de terem visto, começaram
a divulgar o que lhes tinham dito a respeito daquele menino. Todos os que
ouviram se admiravam do que lhes diziam os pastores. Quanto a Maria, conservava
todas estas coisas, ponderando-as no seu coração. E os pastores voltaram,
glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme
lhes fora anunciado (Lc 2,15-20).
***
Ora tudo
isto tem em vista dizer-nos que a vinda do Senhor, o nascimento de Jesus não
aconteceu somente há dois mil anos. Este mistério sucede hoje em realização
permanente na Igreja e pela Igreja, que tem a missão de oferecer Jesus ao mundo
e de oferecer o mundo a Jesus. Mas ela só cumpre cabalmente esta missão se
todos e cada um aceitarmos ser a manjedoura atual onde Jesus está reclinado e
exposto à aprendizagem e adoração de todos a começar pelos pobres – que são
também o presépio onde devemos ver e adorar Jesus e cuidar dele. E isso faz-se
com as palavras da boca originadas na cabeça e com o coração terno e aberto.
Depois, nós também devemos ser a gruta que protege este tesouro menino e acolhe
todos os que vierem por bem, nunca lhes tolhendo a entrada, mas facilitando-lha.
Por isso, o
presépio – manjedoura e cabanal – sou eu e és tu. E seremos cada mais presépio
se aceitarmos ser anjos que fazem e cantam a glória de Deus e a paz entre os
homens e pastores que também vêm adorar e incitam os outros à adoração.
Para tanto,
teremos também de ser outros sinais do presépio: a árvore, ao resistirmos aos ventos e dificuldades da vida e
semearmos a esperança; a luz, quando iluminamos com a nossa vida o caminho
dos outros com a bondade, paciência, alegria e generosidade; o sino,
quando chamamos, envolvemos e convidamos, congregamos e procuramos unir; as
decorações, as nossas virtudes, que são as cores que embelezam a nossa
vida; os anjos, quando cantamos para o mundo uma mensagem de paz,
justiça e amor; a estrela, quando levamos alguém ao encontro com o
Senhor; os magos, quando damos o melhor que temos sem termos em conta a
quem o damos; o presente de Natal, ao sermos verdadeiros amigos e irmãos
de todos os seres humanos; os cantares de Natal, quando conquistamos e
irradiamos a harmonia dentro de nós; os votos de Natal, se
perdoamos e restabelecemos a paz, mesmo quando sofremos por isso; a ceia,
quando saciamos com pão e esperança o pobre que está ao nosso lado; a noite,
quando, humildes e conscientes, recebemos no silêncio da noite o Salvador do
mundo, sem ruídos nem grandes celebrações, sendo o sorriso da confiança e
ternura na paz interior de um Natal perene que estabelece o reinado de Deus,
dentro de cada um de nós.
O Natal somos nós, quando decidimos nascer de novo em cada dia e deixar
que Deus entre e permaneça na nossa alma, na nossa vida. Se efetivamente assim
acontecer, se assim o quisermos, o presépio será mesmo lugar de encontro em casa, na igreja e na rua!
***
Por isso e para isso, ante as dificuldades, mesmo que catastróficas,
temos que ousar erguer-nos e levantar a cabeça porque a nossa libertação está
próxima. Mas devemos ter cuidado connosco: o nosso grande inimigo será o
coração pesado pela intemperança (a falta
de tempero ou de moderação) ou devassidão (viver não vivendo, andar ao
toledo, em roda livre, sem leme), a embriaguez (do álcool, das drogas, dos
prazeres, das ambições) e as preocupações (ainda que lícitas) da vida. E,
sobretudo, devemos vigiar e orar em todo o tempo, para que possamos livrar-nos
de tudo o que vai acontecer
e comparecer diante do Filho do homem (vd Lc 21,28.34.36).
E teremos de crescer e abundar na caridade, uns para
com os outros e para com todos e progredir cada vez mais numa santidade
irrepreensível (cf 1 Ts 3,12.13; 4,1).
O presépio és tu, o presépio sou eu, o presépio somos nós; e
o nosso presépio são os pobres!
2018.12.02
– Louro de Carvalho
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