É
uma grande afirmação do Cardeal-Patriarca de Lisboa em entrevista a Paulo
Rocha, da agência Ecclesia, publicada
em 24 de dezembro sob o título “Do Natal
numa gruta em Belém da Judeia ao escondimento do facto religioso na atualidade”,
em que afirma que, “como
no presépio, é pela verdade que a Igreja se tem de afirmar, sobretudo num tempo
em que as pessoas são pouco institucionais na prática religiosa, analisa
acontecimentos sociais e projeta o ano 2019 para a Igreja Católica e para a
sociedade”.
Questionado sobre se, como
o Natal de Jesus no escondimento, o escondimento do dado religioso é “um problema
para a Igreja Católica”, o Patriarca de Lisboa reage dizendo que o escondimento “é uma caraterística constante das coisas que
realmente acontecem”. Com efeito, ficamos “apanhados e deslumbrados” pelo que
tem impacto e é facilmente mediatizado. Porém, o que “realmente acontece e
determina” a nossa vida não é “tão patente, mas mais profundo” e “só com o
tempo se manifesta e se repara”. Terá acontecido isso “com o Natal de Jesus”.
É verdade que, “para
ser relevante para a sociedade”, urge “dar-lhe lugar de destaque”, o que tem
sido feito, mas para não ser outra coisa como às vezes alguns pretendem. Como
diz Dom José Tolentino Mendonça “O Natal não é ornamento, é fermento” (como o Reino, digo eu), “bela ideia porque corresponde à verdade das coisas”
– acentua Dom Manuel Clemente, que discorre:
“O que sabemos dos 30 anos da vida de Jesus,
a maioria do tempo que passou neste mundo? Poucas coisas: não foi em Belém, mas
na Nazaré da Galileia, na oficina de José, com pouca gente e numa terra que não
dava muito nas vistas… Até se perguntava em Jerusalém se ‘de Nazaré poderá vir
alguma coisa boa?’.”.
E, apesar de tudo ser “o mais discreto possível”, o
Cardeal diz do início a vida pública de Jesus:
“Aos 30 anos, a um sábado, vai à sinagoga,
leu uma passagem que lá estava, escrita há séculos, do profeta Isaías: ‘O
Espírito de Deus está sobre mim, enviou-me a ensinar o Evangelho aos pobres’.
E, a partir dessa altura, Ele faz isso mesmo: vai para as margens do lago, com
gente simples, que adere e depois vai-se embora e fica um pequeno grupo… E daí
a dois, três anos, em Jerusalém, foi morto numa cruz. E não foi nada de ‘espetacular’,
porque além dele foram, pelo menos, mais dois condenados. Tudo é discreto,
quase irreconhecível.”.
Ora, “o que o tornou tão
relevante” foi “a verdade que trazia”, que acabou por se impor. E Dom Manuel
Clemente acentua:
“Daí a dois, três dias aquele pequeno núcleo
que ficou sabe que Ele está vivo e nunca mais o deixou de dizer, como dizemos
nas liturgias: “O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós”. A maneira
como Ele viveu, tão verdadeira e tão discreta ao mesmo tempo, é uma maneira
vencedora. E, porque vence, convence!”.
E contrapõe à asserção do entrevistador, de que Jesus
e o pequeno núcleo foram aos lugares-chave da sociedade, que era tudo “muito
periférico”. Com efeito, a sociedade era o império romano, que reunia o Norte
de África, a Ásia Menor e a Europa com a figura de Octávio César Augusto. Era o
cume da humanidade na organização, civilização e cultura. Mas Jesus não nasceu
em Roma, em Atenas ou Alexandria – os centros culturais de então –
nem mesmo em Jerusalém. Nasceu no lugarejo de Belém, vindo, depois, a viver
e crescer num sítio mais periférico, Nazaré da Galileia dos gentios, onde se
juntava tudo. É tudo tão a partir da periferia que só a absoluta verdade que
trazia acabou por se tornar convincente. Depois, o templo de Jerusalém caiu, o
Fórum Romano é conhecido só por arqueologia e, na cultura, grande parte
do que sobrou “foi o que os cristãos acabaram por veicular”.
***
Tudo isto diz às mulheres e
aos homens da Igreja Católica que a lição do
Natal “é a grande discrição de Deus”, ou “a humildade de Deus”.
Deus, que em Jesus Cristo se revela de maneira tão convincente, “vive-se
inteiramente, serenamente, humildemente” – diz Dom Manuel Clemente, que
assegura ser exatamente por isso mesmo que “o Evangelho é enviado aos pobres,
no sentido material e num sentido da humildade, dos que estão disponíveis para
acreditar, não deslumbrados pelas grandezas deste mundo, mas que percebem que a
grandeza deste mundo é a que Cristo viveu e oferece”. E o insigne entrevistado
anui à afirmação de Paulo Rocha de que “isso pode ser uma provocação para 20
séculos de história de uma instituição”,
acrescentando: “mas todos os dias”.
E, admitindo que a Igreja enquanto instituição “pode não propor o Evangelho” com a discrição
querida por Cristo, faz aqui a grande afirmação já vertida em epígrafe, que “a
Igreja é como as palhas do presépio”, mas apostando em que sejam palhas
bonitas e, para que o sejam, a palha “de vez em quando precisa de ser arejada”.
É uma das imagens mais belas da Igreja, do meu ponto
de vista. Acolhendo-O, serve de suporte à visibilidade e à ação de Cristo; tem
de O conter sem o limitar, mas expondo-O à adoração e contemplação. Porém, tem
a contenção humilde, sem ser escrupulosa, de não O tocar diretamente, pois a
Mãe envolveu-O em panos, e a missão de convocar e acolher os demais.
***
Quanto a estudos de opinião
como o que se realizou recentemente na região de Lisboa, que indica o aumento
de crentes sem religião, o Cardeal-Patriarca explica isso “com o facto de vivermos numa sociedade e numa cultura,
como referem os filósofos pós-modernos, muito líquida, muito diluída, muito
pouco sólida em si mesmo” e também “muito pouco institucional”, o que “não tem
a ver com a verdade da instituição” comparativamente
com “a verdade de Jesus”. E, falando da necessidade das instituições, diz Dom
Manuel Clemente:
“É a instituição em si! Tudo o que seja
institucional, informal, organização, que continua a ser indispensável para que
nós nos encontremos e tenhamos ritmos de encontro, de transmissão. É necessária
a instituição família, escola, Estado, a instituição universitária, também a
instituição Igreja. Tudo o que transporta uma ideia precisa de ter uma
organização.”.
Porém, compreende que a nossa apetência, a nossa
sociocultura “não é institucional”; é, antes, “muito desinstitucional”, pois “as
coisas refluem muito para cada um, para conexões que se fazem e desfazem
segundo cada um, segundo a vontade, o tempo”, pelo que “tudo quanto seja formal
e institucional não é muito apetecido”.
Assegurando que Jesus
terá sido o primeiro desinstitucional, reconhece, não obstante, que, “depois
cria o grupo, que imediatamente funda”, de modo que, desde o começo da
sua vida pública e do anúncio do Evangelho, “começa também o grupo”.
Não assente que tenha sido a fragilidade das
instituições a provocar a fragilidade
do fator religioso, mas que o muda no modo de ele “se viver,
conviver e transmitir”. E aludindo ao predito estudo, verifica:
“Há uma percentagem, que ainda é
maioritária, que se diz católica, depois cresce o número dos crentes sem
religião, mas que são crentes, e depois há outras pertenças religiosas. As
pessoas não são menos religiosas, mas são mais religiosas por si. Ou seja,
menos institucionais nessa prática religiosa.”.
E tira as devidas e óbvias consequências deste facto
de as
pessoas serem mais religiosas por si: maior convicção naquilo em que
cremos; maior compreensão no modo “como estas realidades se transmitem”; maior
convicção e transparência no fator institucional em função da cultura do
encontro. E vinca:
“Cada um de nós que aqui se mantém sabe
porque se mantém e prossegue: porque a transmissão religiosa no seu caso
funcionou. Isto é, se nascemos em famílias cristãs, se temos bons encontros,
com boa gente, na Igreja, no espaço religioso e até na sociedade que nos
transmite Evangelho vivo, isso convence-nos. Por isso, a única maneira de estas
coisas prosseguirem, mesmo num tempo tão desinstitucional como é o nosso, é a
convicção dos que se mantêm e que propõem.”.
Quanto à questão de as lideranças católicas deverem
intervir na sociedade, propondo essa chave de leitura religiosa cristã, diz que
“ é uma questão de ter mais ou menos atenção”. E explicita:
“Não faltam indicações, aqui em Portugal, em
relação às grandes questões mais fraturantes. Alguma vez faltou ou falta uma
palavra clara e até pedagógica dos bispos portugueses em notas sucessivas sobre
ideologia género, aborto, eutanásia? Não faltam indicações! É preciso estarem
atentos… Hoje há uma possibilidade de informação como nunca houve. Depois, no
que diz respeito à presença pública, ela tem de ser feita em termos de
sociedade, de cidadania. E essa cidadania é protagonizada por cada cristão e
por cada cristã, onde está.”.
E, sobre a força das lideranças hodiernas em
contraponto com a suposta fragilidade
das instituições, esclarece que isso não se aplica às lideranças institucionais clássicas, mas às protagonizadas por
“quem vive a sério aquilo que está a
dizer” e a fazer.
***
Instado a falar dos acontecimentos
de 2018 e das perspetivas para 2019, começa por responder ao grande problema dos abusos
sexuais por parte de membros do clero considerando
que se trata de “uma grande fragilidade”, sendo “uma grande tristeza que
tenham acontecido”, o que figura “um
momento de correção e purificação”, que “se tem de levar muito a sério para que não aconteçam e sobretudo se
previnam”. E encara a reunião de fevereiro dos presidentes das
conferências episcopais sobre o tema como “uma oportunidade para
se esclarecer este ponto”, o que sucederá “com opiniões ‘balizadas’ de muita
gente que o tem estudado e que pode dar as melhores indicações para que estas
situações se ultrapassem e sobretudo se previnam”.
Questionado sobre se podemos
esperar uma posição mais concertada nos diferentes países, diz que as
indicações de Roma “são muito claras” para “o acompanhamento dos casos e a sua
resolução com a colaboração dos próprios, das vítimas, das famílias, das
autoridades policiais, e tudo isto com espírito evangélico de recuperação das
pessoas”. E atesta:
“Tudo isso tem sido feito e vai continuar a
ser feito. Tem de ser um problema resolvido no conjunto: na religião, na
sociocultura, no global. Com certeza que a reunião de fevereiro será mais uma
contribuição para que isso se consiga.”.
Sem fazer uma previsão do
ano 2019, contudo, aborda alguns pontos. Desde logo, a Jornada Mundial da Juventude no Panamá (“as Jornadas da Juventude, desde o Papa São João Paulo
II, ganharam uma força e uma presença na vida da Igreja, sobretudo na sua
juventude, muito forte), onde estarão os que forem de Portugal e de outras partes do mundo. E, no final, o Papa
anunciará o lugar da próxima, no verão de 2022. “Lisboa candidatou-se e a
candidatura está lá”, mas não foi a única que apareceu e, por isso, o Papa
decidirá.
Das greves pensa que indicam que as
pessoas dos diversos setores socioprofissionais “têm insatisfações grandes que
as levam às greves”. É um direito. E diz que, “na sociedade, os direitos
conjugam-se com direitos: as pessoas têm esse direito que tem de ser conjugado
com outro direito”. E explica dando exemplos:
“No caso das pessoas que trabalham na área
da saúde têm os seus direitos, lutam por eles, e há também os direitos dos
utentes, das pessoas que têm doenças e precisam de ser assistidas. E é preciso conjugar
esses direitos. A mesma coisa se diga das prisões nesta quadra, dos
funcionários das prisões, concretamente dos guardas prisionais: têm as suas
insatisfações, apresentam-nas, fazem greves, o que é um direito que tem de ser
conjugado depois com o direito que têm os presos e as suas famílias à
assistência, ao acompanhamento. É sempre a procura de conjugar direitos
distintos, mas que só na sua conjugação se resolvem.”.
Sobre a “boa política” de serviço às
populações e de procura do bem comum, proposta na Mensagem para o LII Dia
Mundial da Paz, em que o Papa aponta os 12 vícios que deslustram a política,
enfraquecem a democracia e podem pôr em perigo a paz social”, o Cardeal
disserta:
“A política é a vida da “polis”, da cidade,
da sociedade. Nas sociedades democráticas, isto faz-se pela participação de
cada cidadão e faz-se pelos vários patamares de participação, desde o
autárquico ao internacional, no nosso caso também a União Europeia, e só se
pode fazer por representação, a todos os níveis da sociedade.”.
E acrescenta outro fator muito contemporâneo: “para lá
desta participação institucionalizada, há uma participação mediatizada e
imediata, que torna difícil a conjugação democrática”, a das redes sociais. A
este respeito, continua na sua dissertação:
“Afinal, falamos com quem? Por outro lado,
sabemos tudo, a partir de seleções que são feitas, o que se passa em todo o
lado. O que ganha uma globalização de tal ordem que quem sabe impor-se e tem
qualidades pessoais e de apresentação e eloquência e de persuasão para isso,
rapidamente pode concentrar à sua volta grandes apoios (que também rapidamente
podem desaparecer). Esta desconjugação do que deveria estar mais conjugado e a
desinstitucionalização do que são os modos de participação democrática, a
globalização e mediatização, que ao mesmo tempo é uma individualização, porque
cada um clica ou não clica no que quer ou não quer, aparece ou não aparece
quando é ou não convocado… Tudo isto torna a vida democrática mais complicada e
hoje em dia a vida política, que continua a ser uma nobre vocação, requer uma
consistência pessoal, uma determinação, uma resiliência que dantes não eram tão
precisas.”.
Em relação ao Brexit que
pode ser um dos sintomas da desconjugação apontada, que pode afetar até o
projeto da União Europeia, supõe que “a ideia que dá é que tudo foi muito precipitado” e que a deram “desde logo os próprios ingleses, no dia a
seguir, uns muitos eufóricos outros muito perplexos e ainda hoje não se
resolveu o assunto”.
A propósito das eleições
europeias de 2019, espera que não haja grandes abstenções e que “as pessoas participem mesmo, que tenham
consciência de que o projeto europeu, com as deficiências que tem, foi uma
realidade muito bem concebida na sua origem”. Com efeito, com “um desígnio
grande”, a Europa começou “por organizar a coletivamente aqueles bens e matérias-primas
que eram necessários para o desenvolvimento europeu, depois da II Guerra
Mundial (o carvão e o
aço); [e] garantiu-nos 7 décadas de paz”,
depois duma “sucessão de guerras civis europeias ao longo dos séculos”. Assim,
formula o seguinte voto:
“Que nada disto se perca! Que as pessoas
tenham consciência do que está em jogo, de que o enfraquecimento da União
Europeia seria uma fatalidade para todos nós e um enormíssimo retrocesso e de
que, se deixarmos que, por abstenção nossa, grupos mais determinados preencham
o Parlamento Europeu com deputados antieuropeus, seria tremendo, com
consequências muito nefastas.”.
E das nossas eleições
regionais e legislativas, que acontecem depois duma legislatura singular na
história da democracia, espera: “informação, participação, discernimento, campanhas
eleitorais bem feitas, programas claros, melhor ligação entre deputados e a
população” para que tudo
“resulte numa votação com mais consciência e mais determinada”, não só à volta
deste ou daquele político, mas sobretudo do que “se dispõe a fazer” e a que “se
compromete”.
***
Enfim, uma entrevista do melhor que vi no Cardeal-Patriarca,
rica em termos de Jesus, do Natal da Igreja, da Sociedade e da Política.
Olhando para trás e lembrando a figura única dum ilustre vigário-geral da
diocese de Lamego, o Monsenhor Manuel de Almeida, é caso para clamar a Dom
Manuel Clemente agora como os seminaristas diziam, quando ele pregava, ao Dom Manuel
de então: “Afifa-lhe, Manel!”.
2018.12.29 –
Louro de Carvalho
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