domingo, 9 de dezembro de 2018

Nunca se chegou a assinar a carta dos deveres humanos


Na sua última crónica, veiculada pelo jornal Público de hoje, 9 de dezembro, Frei Bento Domingues, depois de bela síntese sobre os vários discursos messiânicos veterotestamentários – que apontam para a lei da justiça e da lealdade em que os ora contrários e inimigos passarão a conviver pacificamente e, mais do que a tolerar-se, se aceitarão em regime de reciprocidade – e de atestar como Jesus e os discípulos dos primeiros tempos assumiram, reinterpretaram e universalizaram o antifatalismo dos profetas, põe o dedo na ferida que sangra numa Europa cansada da Paz formal que logrou alcançar, durante 70 anos, após duas guerras mundiais de efeitos verdadeiramente ecotrágicos.
Verificando que “está mais do que demonstrada a ferocidade que pode ser desencadeada entre pessoas, nações e povos”, patenteada diariamente “em diversos cenários de crueldade, com meios de comunicação que a celebram e incitam ao eu motor, o ódio do outro”, diz que “foi possível subscrever a Carta dos Direitos Humanos”, mas “nunca se conseguiu assinar a dos Deveres”.
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É verdade o que refere o insigne cronista, mas, apesar de as pessoas serem ciosas dos direitos e os badalarem a torto e a direito, sobretudo os que a si próprias dizem respeito, não faltaram tentativas de elaboração e apresentação de documentos programáticos que elencam o conjunto de deveres que o homem e, em especial o cidadão, devem assumir.
Não estou a referir-me a códigos deontológicos ou a códigos de conduta de grupos profissionais, sociais ou políticos, que encapotem, por vezes, ações de mérito dúbio, mas de documentos que pretendem ser programáticos e universais.     
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Assim, de acordo com o Observador, de 27 de abril deste ano de 2018, chegou à ONU para ser dada a conhecer mundialmente, no dia 25 de abril, a Carta de Deveres e Obrigações, inspirada no discurso que o nosso Nobel da Literatura José Saramago fez em 1998 e que propõe “a simetria” dos deveres humanos, pois, de acordo com Pilar del Rio, devemos “exigir que se cumpram os direitos”.
Segundo Pilar del Río, presidente da Fundação José Saramago e viúva do escritor português, então citada pela agência de notícias espanhola Efe, o texto é o resultado de vários anos de trabalho de académicos, especialistas e cidadãos e visa defender a “ética da responsabilidade”.
A Carta pretende complementar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, propondo “a simetria” dos deveres humanos. Assim, no seu primeiro artigo, declara que todas as pessoas têm “o dever de cumprir e exigir o cumprimento dos direitos” reconhecidos por essa Declaração, pois, como a viúva de Saramago assegura, “não queremos ser nem amedrontados, nem intimidados, nem resignados, nem indiferentes e, para isso, temos que cumprir os nossos deveres. Em primeiro lugar, exigir que se cumpram os direitos”.
Foi esta antiga jornalista espanhola quem, juntamente com outros promotores da iniciativa, entregou a Carta a vários altos responsáveis das Nações Unidas, incluindo o secretário-geral da ONU, António Guterres. O documento fora também discutido com embaixadores de países ibero-americanos e o objetivo era dá-lo a conhecer ao resto do mundo, aos cidadãos, figuras da cultura e Governos, pois, como sublinhou, “é um projeto que nasce no âmbito ibero-americano, mas com vocação universal”.
A Carta está estruturada em 23 artigos que reúnem uma ampla gama de deveres para as pessoas, desde o de não discriminar até ao de respeitar a vida, passando por obrigações como o respeito da liberdade ideológica e religiosa e a participação nos assuntos públicos.
A iniciativa, como ficou dito, partiu originalmente do discurso que Saramago (1922-2010) proferiu ao receber o prémio Nobel da Literatura, em 1998, quando instou a que os cidadãos, além de defenderem os seus direitos, reivindicassem os seus deveres. Dizia José Saramago, naquele ano de 1998 em que se celebrava o 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Tomemos então nós, cidadãos comuns, a palavra: Com a mesma veemência com que reivindicamos os direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez assim o mundo possa ser um pouco melhor.”.
A este respeito, em artigo de opinião veiculado pelo JN de 13 de março de 2016, Carvalho da Silva – conhecedor do trabalho que estava a ser desenvolvido por grupos de trabalho que se vinham organizando na América Latina e na Península Ibérica, também com a participação de intelectuais e atores sociais de outras regiões, com vista à elaboração de uma Carta Universal de Deveres Humanos – sustentava:
Temos o dever de impor garantias de dignidade, de princípios éticos e morais no acesso a direitos sociais fundamentais ou ao conhecimento e à cultura, nas relações de trabalho, na relação com a natureza, com os patrimónios coletivos, com a política. Essas garantias e princípios têm imenso valor. Contudo, ele não é traduzível em cifrões nos processos de negócios da mercantilização em curso. E a dignidade não se negoceia!”.
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Em 12 de fevereiro 2011, o Padre Anselmo Borges, deixava já no DN,  uma síntese da célebre “Declaração universal dos deveres humanos”, uma vez que, “para superar a crise e para que a esperança não seja mera ilusão, wishfull thinking, precisamos todos de ser fiéis às nossas responsabilidades e cumprir os nossos deveres”.
E referia que, já na discussão do Parlamento revolucionário de Paris sobre os direitos humanos, em 1789, se tinha visto que “direitos e deveres têm de estar vinculados”, pois “a tendência para fixar-se nos direitos e esquecer os deveres” tem “consequências devastadoras”.
Segundo Anselmo Borges, a elaboração dum documento paradigmático deste teor vem de 1997 (portanto, antes do célebre discurso de Saramago), após debates que se estenderam por dez anos. Então, o Interaction Council (Conselho de Interação) de antigos chefes de Estado e de Governo, como Maria de Lourdes Pintasilgo, V. Giscard d’Estaing, Kenneth Kaunda, Felipe González, Mikhail Gorbachev, Shimon Peres, fundado em 1983 pelo Primeiro-Ministro japonês Takeo Fukuda, sob a presidência do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, propôs a Declaração Universal dos Deveres Humanos, tendo ocupado lugar destacado na sua redação o teólogo alemão Hans Küng.
Diz Anselmo Borges que o Preâmbulo sublinha:
O reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de todos implica obrigações e deveres; a insistência exclusiva nos direitos pode acarretar conflitos, divisões e litígios intermináveis, e o desrespeito pelos deveres humanos pode levar à ilegalidade e ao caos; os problemas globais exigem soluções globais, que só podem ser alcançadas mediante ideias, valores e normas respeitados por todas as culturas e sociedades; todos têm o dever de promover uma ordem social melhor, tanto no seu país como globalmente, mas este objetivo não pode ser alcançado apenas com leis, prescrições e convenções”.
Na Declaração, em 19 artigos, está subjacente a plena aceitação da dignidade de todas as pessoas, a sua liberdade e igualdade inalienáveis, e a solidariedade de todos. Eis a síntese:
O texto distribui-se em: princípios fundamentais para a humanidade; não violência e respeito pela vida; justiça e solidariedade; verdade e tolerância; e respeito mútuo e companheirismo.
“1. Princípios fundamentais para a humanidade. Cada um/a e todos têm o dever de tratar todas as pessoas de modo humano, lutar pela dignidade e autoestima de todos os outros, promover o bem e evitar o mal em todas as ocasiões, assumir os deveres para com cada um/a e todos, para com as famílias e comunidades, raças, nações e religiões, num espírito de solidariedade: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
“2. Não violência e respeito pela vida. Todos têm o dever de respeitar a vida. Todo o cidadão e toda a autoridade pública têm o dever de agir de forma pacífica e não violenta. Todas as pessoas têm o dever de proteger o ar, a água e o solo da terra para bem dos habitantes atuais e das gerações futuras.
“3. Justiça e solidariedade. Todos têm o dever de comportar-se com integridade, honestidade e equidade. Dispondo dos meios necessários, todos têm o dever de fazer esforços sérios para vencer a pobreza, a subnutrição, a ignorância e a desigualdade, e prestar apoio aos necessitados, aos desfavorecidos, aos deficientes e às vítimas de discriminação. Todos os bens e riquezas devem ser usados de modo responsável, de acordo com a justiça e para o progresso da raça humana.
“4. Verdade e tolerância. Todos têm o dever de falar e agir com verdade. Os códigos profissionais e outros códigos de ética devem refletir a prioridade de padrões gerais como a verdade e a justiça. A liberdade dos media acarreta o dever especial duma informação precisa e verdadeira. Os representantes das religiões têm o dever especial de evitar manifestações de preconceito e atos de discriminação contra as pessoas de outras crenças.
“5. Respeito mútuo e companheirismo. Todos os homens e todas mulheres têm o dever de demonstrar respeito uns para com os outros e compreensão no seu relacionamento. Em todas as suas variedades culturais e religiosas, o casamento requer amor, lealdade e perdão e deve procurar garantir segurança e apoio mútuo. O planeamento familiar é um dever de todos os casais. O relacionamento entre os pais e os filhos deve refletir o amor mútuo, o respeito, a consideração e o cuidado.”.
Refletindo sobre o porquê de as regras sobre os deveres humanos sumirem desses documentos internacionais, cheguei à conclusão de que as pessoas que os redigiram não simpatizavam com o estabelecimento de regras sobre os deveres ou, então, não conseguiram convencer os demais dessa necessidade. Afinal, se o fizessem também obrigariam as pessoas pertencentes às classes sociais mais abastadas. Escrever sobre os direitos de todos já é difícil; porém, fazê-lo sobre os deveres de todos – ricos ou pobres – é pior.”.
E, depois de falar da génese da predita Declaração, realça o teor do seu artigo 19.º, que estipula:
Nada nesta Declaração pode ser interpretado como concedendo a qualquer Estado, grupo ou pessoa o direito de se dedicarem a qualquer atividade ou a executarem qualquer ato que se traduza na negação de qualquer dos deveres, direitos e liberdades estabelecidos nesta Declaração e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948”.
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Por seu turno, em 1963, pela Encíclica Pacem in Terris, São João XXIII, coloca os deveres a par dos direitos, porque ambos “emanam direta e simultaneamente” da “própria natureza” da pessoa humana, “dotada de inteligência e vontade livre” (cf n.º 9).
Depois, no âmbito da indissolúvel relação entre direitos e deveres na mesma pessoa, diz que “direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável” (n.º 28). Como exemplo, assegura que “o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo” (n.º 29) e que, “no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais” (n.º 30). E, encarecendo a reciprocidade de direitos e deveres entre pessoas diversas, sublinha: “quem reivindica os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dá menor atenção, assemelha-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói” (id et ib).
No atinente à colaboração mútua, o Papa Roncalli estabelecia:
Todos devem trazer a sua própria contribuição generosa à construção de uma sociedade na qual direitos e deveres se exerçam com solércia e eficiência cada vez maiores (n.º 31). Não bastará, por exemplo, reconhecer o direito da pessoa aos bens indispensáveis à sua subsistência, se não envidarmos todos os esforços para que cada um disponha desses meios em quantidade suficiente (n.º 32). A convivência humana, além de bem organizada, há de ser vantajosa para seus membros, pelo que se requer que estes não só reconheçam e cumpram direitos e deveres recíprocos, mas todos colaborem também nos múltiplos empreendimentos que a civilização contemporânea permite, sugere, ou reclama (n.º 33).”.
Em relação ao sentido de responsabilidade, é referido:
Exige a dignidade da pessoa humana um agir responsável e livre, pelo que importa, para o relacionamento social que o exercício dos próprios direitos, o cumprimento dos próprios deveres e a realização dessa múltipla colaboração derivem sobretudo de decisões pessoais, fruto da própria convicção, da própria iniciativa, do próprio senso de responsabilidade, mais que por coação, pressão, ou qualquer forma de imposição externa. Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano: nela as pessoas veem coarctada a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a demandar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento.” (n.º 34).
E, em prol da Convivência fundada sobre a verdade, a justiça, o amor a liberdade, vinca-se: 
A convivência entre os seres humanos só poderá ser considerada bem constituída, fecunda e conforme à dignidade humana, quando fundada sobre a verdade, como adverte o apóstolo Paulo: ‘Abandonai a mentira e falai a verdade cada um ao seu próximo, porque somos membros uns dos outros’ (Ef 4,25). Isso se obterá se cada um reconhecer devidamente tanto os próprios direitos, quanto os próprios deveres para com os demais. A comunidade humana será tal como acabamos de a delinear, se os cidadãos, guiados pela justiça, se dedicarem ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios deveres; se se deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens; e se tenderem todos a que haja no orbe terrestre uma perfeita comunhão de valores culturais e espirituais. Nem basta isso. A sociedade humana realiza-se na liberdade digna de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade das próprias ações.” (n.º 35).
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Em suma, como adverte Pilar del Rio, urge a simetria dos direitos e dos deveres. Para quando? Não basta elaborar a Carta e anunciá-la ao mundo: é preciso que os Estados a subscrevam, assumam, cumpram e façam cumprir!
 2018.12.09 – Louro de Carvalho

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