Na sua última crónica, veiculada pelo jornal Público de hoje, 9 de dezembro, Frei Bento
Domingues, depois de bela síntese sobre os vários discursos messiânicos veterotestamentários
– que apontam para a lei da justiça e da lealdade em que os ora contrários e
inimigos passarão a conviver pacificamente e, mais do que a tolerar-se, se
aceitarão em regime de reciprocidade – e de atestar como Jesus e os discípulos
dos primeiros tempos assumiram, reinterpretaram e universalizaram o
antifatalismo dos profetas, põe o dedo na ferida que sangra numa Europa cansada
da Paz formal que logrou alcançar,
durante 70 anos, após duas guerras mundiais de efeitos verdadeiramente ecotrágicos.
Verificando que “está mais do que demonstrada a ferocidade que pode ser desencadeada
entre pessoas, nações e povos”, patenteada diariamente “em diversos cenários de crueldade, com meios
de comunicação que a celebram e incitam ao eu motor, o ódio do outro”, diz
que “foi possível subscrever a Carta dos Direitos
Humanos”, mas “nunca se conseguiu assinar a dos Deveres”.
***
É verdade o que refere o insigne cronista, mas,
apesar de as pessoas serem ciosas dos direitos e os badalarem a torto e a
direito, sobretudo os que a si próprias dizem respeito, não faltaram tentativas
de elaboração e apresentação de documentos programáticos que elencam o conjunto
de deveres que o homem e, em especial o cidadão, devem assumir.
Não estou a referir-me a códigos deontológicos ou
a códigos de conduta de grupos profissionais, sociais ou políticos, que encapotem,
por vezes, ações de mérito dúbio, mas de documentos que pretendem ser programáticos
e universais.
***
Assim, de acordo com o Observador, de 27 de abril deste ano de 2018, chegou à ONU
para ser dada a conhecer mundialmente, no dia 25 de abril, a Carta de Deveres e Obrigações, inspirada
no discurso que o nosso Nobel da Literatura José Saramago fez em 1998 e que propõe “a simetria” dos deveres
humanos, pois, de acordo com Pilar del Rio, devemos “exigir que se cumpram os
direitos”.
Segundo Pilar
del Río, presidente da Fundação José Saramago e viúva do escritor português, então
citada pela agência de notícias espanhola Efe,
o texto é o resultado de vários anos de trabalho de académicos, especialistas e
cidadãos e visa defender a “ética da responsabilidade”.
A Carta pretende
complementar a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, adotada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
propondo “a simetria” dos deveres humanos. Assim, no seu primeiro artigo,
declara que todas as pessoas têm “o dever
de cumprir e exigir o cumprimento dos direitos” reconhecidos por essa Declaração, pois, como a viúva de
Saramago assegura, “não queremos ser nem amedrontados, nem intimidados, nem
resignados, nem indiferentes e, para isso, temos que cumprir os nossos deveres.
Em primeiro lugar, exigir que se cumpram os direitos”.
Foi esta
antiga jornalista espanhola quem, juntamente com outros promotores da
iniciativa, entregou a Carta a vários altos responsáveis das Nações Unidas,
incluindo o secretário-geral da ONU, António Guterres. O documento fora também
discutido com embaixadores de países ibero-americanos e o objetivo era dá-lo a
conhecer ao resto do mundo, aos cidadãos, figuras da cultura e Governos, pois,
como sublinhou, “é um projeto que nasce
no âmbito ibero-americano, mas com vocação universal”.
A Carta está
estruturada em 23 artigos que reúnem uma ampla gama de deveres para as pessoas,
desde o de não discriminar até ao de respeitar a vida, passando por obrigações
como o respeito da liberdade ideológica e religiosa e a participação nos
assuntos públicos.
A iniciativa,
como ficou dito, partiu originalmente do discurso que Saramago (1922-2010) proferiu ao receber o prémio Nobel da Literatura, em
1998, quando instou a que os cidadãos, além de defenderem os seus direitos,
reivindicassem os seus deveres. Dizia José Saramago, naquele ano de 1998 em que
se celebrava o 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Tomemos então nós, cidadãos comuns, a
palavra: Com a mesma veemência com que reivindicamos os direitos,
reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez assim o mundo possa
ser um pouco melhor.”.
A este respeito,
em artigo de opinião veiculado pelo JN
de 13 de março de 2016, Carvalho da Silva – conhecedor do trabalho que estava a
ser desenvolvido por grupos de trabalho que se vinham organizando na América
Latina e na Península Ibérica, também com a participação de intelectuais e atores
sociais de outras regiões, com vista à elaboração de uma Carta Universal de
Deveres Humanos – sustentava:
“Temos o dever
de impor garantias de dignidade, de princípios éticos e morais no acesso a
direitos sociais fundamentais ou ao conhecimento e à cultura, nas relações de
trabalho, na relação com a natureza, com os patrimónios coletivos, com a
política. Essas garantias e princípios têm imenso valor. Contudo, ele não é
traduzível em cifrões nos processos de negócios da mercantilização em curso. E
a dignidade não se negoceia!”.
***
Em 12 de
fevereiro 2011, o Padre Anselmo Borges, deixava já no DN, uma síntese da célebre “Declaração universal dos deveres
humanos”, uma vez que, “para superar a crise e para que a esperança não seja
mera ilusão, wishfull thinking,
precisamos todos de ser fiéis às nossas responsabilidades e cumprir os nossos
deveres”.
E referia que, já na discussão do
Parlamento revolucionário de Paris sobre os direitos humanos, em 1789, se tinha
visto que “direitos e deveres têm de
estar vinculados”, pois “a tendência para fixar-se nos direitos e esquecer
os deveres” tem “consequências devastadoras”.
Segundo Anselmo Borges, a
elaboração dum documento paradigmático deste teor vem de 1997 (portanto,
antes do célebre discurso de Saramago),
após debates que se estenderam por dez anos. Então, o Interaction Council (Conselho de Interação) de antigos chefes de Estado e
de Governo, como Maria de Lourdes Pintasilgo, V. Giscard d’Estaing, Kenneth
Kaunda, Felipe González, Mikhail Gorbachev, Shimon Peres, fundado em 1983 pelo
Primeiro-Ministro japonês Takeo Fukuda, sob a presidência do antigo chanceler
alemão Helmut Schmidt, propôs a Declaração
Universal dos Deveres Humanos, tendo ocupado lugar destacado na sua redação
o teólogo alemão Hans Küng.
Diz Anselmo Borges que o
Preâmbulo sublinha:
“O reconhecimento da dignidade e dos
direitos iguais e inalienáveis de todos implica obrigações e deveres; a
insistência exclusiva nos direitos pode acarretar conflitos, divisões e
litígios intermináveis, e o desrespeito pelos deveres humanos pode levar à
ilegalidade e ao caos; os problemas globais exigem soluções globais, que só
podem ser alcançadas mediante ideias, valores e normas respeitados por todas as
culturas e sociedades; todos têm o dever de promover uma ordem social melhor,
tanto no seu país como globalmente, mas este objetivo não pode ser alcançado
apenas com leis, prescrições e convenções”.
Na Declaração, em 19 artigos,
está subjacente a plena aceitação da dignidade de todas as pessoas, a sua liberdade
e igualdade inalienáveis, e a solidariedade de todos. Eis a síntese:
O texto distribui-se em: princípios fundamentais para a humanidade;
não violência e respeito pela vida; justiça e solidariedade; verdade e tolerância; e respeito mútuo e companheirismo.
“1. Princípios fundamentais para a humanidade. Cada um/a e todos têm o
dever de tratar todas as pessoas de modo humano, lutar pela dignidade e autoestima
de todos os outros, promover o bem e evitar o mal em todas as ocasiões, assumir
os deveres para com cada um/a e todos, para com as famílias e comunidades,
raças, nações e religiões, num espírito de solidariedade: não faças aos outros
o que não queres que te façam a ti.
“2. Não violência e respeito pela vida. Todos têm o dever de respeitar
a vida. Todo o cidadão e toda a autoridade pública têm o dever de agir de forma
pacífica e não violenta. Todas as pessoas têm o dever de proteger o ar, a água
e o solo da terra para bem dos habitantes atuais e das gerações futuras.
“3. Justiça e solidariedade. Todos têm o dever de comportar-se com
integridade, honestidade e equidade. Dispondo dos meios necessários, todos têm
o dever de fazer esforços sérios para vencer a pobreza, a subnutrição, a
ignorância e a desigualdade, e prestar apoio aos necessitados, aos
desfavorecidos, aos deficientes e às vítimas de discriminação. Todos os bens e
riquezas devem ser usados de modo responsável, de acordo com a justiça e para o
progresso da raça humana.
“4. Verdade e tolerância. Todos têm o dever de falar e agir com
verdade. Os códigos profissionais e outros códigos de ética devem refletir a
prioridade de padrões gerais como a verdade e a justiça. A liberdade dos media acarreta o dever especial duma
informação precisa e verdadeira. Os representantes das religiões têm o dever
especial de evitar manifestações de preconceito e atos de discriminação contra
as pessoas de outras crenças.
“5. Respeito mútuo e companheirismo. Todos os homens e todas mulheres
têm o dever de demonstrar respeito uns para com os outros e compreensão no seu
relacionamento. Em todas as suas variedades culturais e religiosas, o casamento
requer amor, lealdade e perdão e deve procurar garantir segurança e apoio
mútuo. O planeamento familiar é um dever de todos os casais. O relacionamento
entre os pais e os filhos deve refletir o amor mútuo, o respeito, a
consideração e o cuidado.”.
Inês Büschel, no seu blogue (https://blogdaines.wordpress.com/2015/07/25/deveres-humanos-e-direitos-humanos-duas-declaracoes-universais-complementares/), refere, em 25 de julho de 2015:
“Refletindo sobre o
porquê de as regras sobre os deveres humanos sumirem desses documentos
internacionais, cheguei à conclusão de que as pessoas que os redigiram não
simpatizavam com o estabelecimento de regras sobre os deveres ou, então, não
conseguiram convencer os demais dessa necessidade. Afinal, se o fizessem também
obrigariam as pessoas pertencentes às classes sociais mais abastadas. Escrever
sobre os direitos de todos já é difícil; porém, fazê-lo sobre os deveres de
todos – ricos ou pobres – é pior.”.
E,
depois de falar da génese da predita Declaração, realça o teor do seu artigo
19.º, que estipula:
“Nada nesta Declaração pode ser interpretado
como concedendo a qualquer Estado, grupo ou pessoa o direito de se dedicarem a
qualquer atividade ou a executarem qualquer ato que se traduza na negação de
qualquer dos deveres, direitos e liberdades estabelecidos nesta Declaração e na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948”.
***
Por seu turno, em 1963, pela Encíclica Pacem in
Terris, São João XXIII, coloca os deveres a par dos direitos, porque ambos “emanam
direta e simultaneamente” da “própria natureza” da pessoa humana, “dotada
de inteligência e vontade livre” (cf
n.º 9).
Depois, no âmbito da indissolúvel relação entre direitos e
deveres na mesma pessoa, diz que “direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o
seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável” (n.º 28). Como exemplo, assegura que “o direito à existência liga-se ao dever de
conservar-se em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver
dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um
conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo” (n.º 29) e que, “no relacionamento humano, a determinado direito
natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse
direito por parte dos demais” (n.º 30). E, encarecendo a reciprocidade
de direitos e deveres entre pessoas diversas, sublinha: “quem reivindica os próprios direitos, mas se
esquecem por completo de seus deveres ou lhes dá menor atenção, assemelha-se a
quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói” (id et ib).
No atinente à colaboração mútua, o Papa
Roncalli estabelecia:
“Todos devem trazer a sua própria contribuição generosa à construção de
uma sociedade na qual direitos e deveres se exerçam com solércia e eficiência
cada vez maiores (n.º 31). Não
bastará, por exemplo, reconhecer o direito da pessoa aos bens indispensáveis à
sua subsistência, se não envidarmos todos os esforços para que cada um disponha
desses meios em quantidade suficiente (n.º 32). A convivência humana, além de bem organizada, há de ser vantajosa para
seus membros, pelo que se requer que estes não só reconheçam e cumpram direitos
e deveres recíprocos, mas todos colaborem também nos múltiplos empreendimentos
que a civilização contemporânea permite, sugere, ou reclama (n.º 33).”.
Em relação ao sentido de responsabilidade, é referido:
“Exige a dignidade da pessoa
humana um agir responsável e livre, pelo que importa, para o relacionamento
social que o exercício dos próprios direitos, o cumprimento dos próprios
deveres e a realização dessa múltipla colaboração derivem sobretudo de decisões
pessoais, fruto da própria convicção, da própria iniciativa, do próprio senso
de responsabilidade, mais que por coação, pressão, ou qualquer forma de
imposição externa. Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada
tem de humano: nela as pessoas veem coarctada a própria liberdade, quando, pelo
contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a
demandar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento.” (n.º 34).
E, em prol da Convivência fundada sobre a verdade, a justiça, o
amor a liberdade, vinca-se:
“A convivência entre os seres
humanos só poderá ser considerada bem constituída, fecunda e conforme à
dignidade humana, quando fundada sobre a verdade, como adverte o apóstolo
Paulo: ‘Abandonai a mentira e falai a verdade cada um ao seu próximo, porque
somos membros uns dos outros’ (Ef 4,25).
Isso se obterá se cada um reconhecer devidamente tanto os próprios direitos,
quanto os próprios deveres para com os demais. A comunidade humana será tal
como acabamos de a delinear, se os cidadãos, guiados pela justiça, se dedicarem
ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios deveres; se se
deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias,
fazendo os outros participantes dos próprios bens; e se tenderem todos a que
haja no orbe terrestre uma perfeita comunhão de valores culturais e
espirituais. Nem basta isso. A sociedade humana realiza-se na liberdade digna
de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, assumem a
responsabilidade das próprias ações.” (n.º 35).
***
Em suma, como adverte Pilar del Rio, urge a simetria dos direitos e dos
deveres. Para quando? Não basta elaborar a Carta e anunciá-la ao mundo:
é preciso que os Estados a subscrevam, assumam, cumpram e façam cumprir!
2018.12.09 – Louro de Carvalho
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