sábado, 15 de dezembro de 2018

No centenário da morte de Sidónio Pais, o pragmático Presidente-Rei


A autoridade do Presidente da República não estava, de momento, a ser contestada. Porém, a 14 de dezembro de 1918, Sidónio Pais resolveu ir ao Porto para esclarecer a situação com o comando militar local. Já tinha sido alvo dum atentado a 5 de dezembro, nas festas do primeiro aniversário da revolução sidonista. Quando saía de Belém, um aluno de pilotagem, cujo pai era maçon (como o Presidente) tentou alvejá-lo, mas a pistola encravou-se. Por isso, a 8, um bando sidonista saqueou o Grémio Lusitano, sede do Grande Oriente. E pouco mais se fez para impedir novo atentado. Assim, na noite de 14 de dezembro, José Júlio Costa (deixara em casa um dossiê intitulado “A morte do Dr. Sidónio), um militante esquerdista convencido de que o Presidente ia restaurar a monarquia, esperou-o na estação do Rossio, em Lisboa. Havia polícia no local, mas Sidónio apareceu à frente, destacado da comitiva, pelo que o assassino não teve dificuldade em alvejá-lo a tiro de revólver, atingindo-o no peito (cf Rui Ramos, in Observador, de 8-12-2018).
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Por ocasião do centenário do assassinato do Presidente Sidónio Pais, o Panteão Nacional, em Lisboa, tem, até março, patente uma exposição, inaugurada a 13 de novembro, que inclui objetos apresentados pela primeira vez ao grande público, evocativa do Presidente assassinado, bem como a época em que viveu.
Sidónio Pais: retrato do país no tempo da Grande Guerra” é o título da mostra que reúne “objetos extraordinários, não só relativamente ao Presidente, como à época – e estamos a falar de uma época conturbada, com o final da I Grande Guerra e as aparições em Fátima –”, disse à agência Lusa Isabel de Melo, diretora do Panteão Nacional, que recordou ter Sidónio sido o primeiro presidente “a preocupar-se com a sua imagem pública, o ‘marketing’, a forma como se deixava fotografar – só de uma certa maneira – e a sua promoção política”.
Segundo Isabel de Melo, deve-se a Sidónio “a criação do Serviço de Audiovisuais do Exército e, na exposição, temos filmes da participação portuguesa na Grande Guerra e das várias visitas presidenciais que fez, assim como do seu funeral”.
A exposição reúne vários objetos pessoais, “nomeadamente uma magnífica espada, que ele usava sempre, uns binóculos, assim como objetos ligados à arte de montar, pois fazia gosto em cavalgar e apresentar-se montado num cavalo branco”, como contou a diretora do Panteão Nacional, referindo “o apoio fundamental da família” na concretização da mostra. Conta-se, ainda, entre os objetos pessoais, um cofre com a imagem de Sidónio, um colar de pérolas que foi oferecido, aquando do casamento duma das filhas, “pelas mulheres portuguesas, acompanhado por uma lista com os nomes e os respetivos donativos para a aquisição desse presente”.
A mostra inclui ainda vários objetos relativos à atividade universitária de Sidónio Pais (foi lente de Matemática na Universidade de Coimbra), nomeadamente publicações suas.
Paralelamente, “no sentido de contextualizar a época”, a mostra inclui vários objetos de arte, nomeadamente esculturas de Teixeira Lopes, Francisco dos Santos e Simões de Almeida, entre outros, e pinturas de Amadeo de Souza-Cardoso, Abel Salazar e Eduardo Viana, uma custódia magnífica em prata lavrada do Santuário de Fátima, oferta da Quinta da Regaleira [em Sintra], de autoria do italiano Luiggi Manini, além de várias fotografias. Assim, inclui também a descrição “de um ambiente quase misterioso e fantástico”, pelo jornalista Augusto de Castro, dum encontro com o Presidente Sidónio Pais, que, no fim do curto mandato, se isolou no Palácio da Pena.
Augusto de Castro narra a forma como, subindo a rampa da Pena, iluminada por archotes empunhados por soldados, estes transmitiam sinais autorizando a sua passagem pelas sucessivas barreiras de segurança, até encontrar o Presidente no meio dos seus papéis oficiais, isolado e afirmando-se muito só. Sidónio liderou uma insurreição contra o Governo liderado por Afonso Costa e, a 11 de dezembro de 1917, tomou posse como Presidente do Ministério (equivalente ao atual cargo de primeiro-ministro), acumulando as pastas ministeriais da Guerra e dos Negócios Estrangeiros. A 27 de dezembro, assumiu as funções de Presidente da República até nova eleição, em aberta rutura com a Constituição da República, que ajudara a redigir. Em março de 1918, assumindo um poder presidencial absoluto, estabeleceu o sufrágio direto e universal para a eleição do Presidente da República e, em abril desse ano, submeteu-se ao escrutínio popular, tendo sido eleito. E exerceu as funções de Chefe de Estado de maio desse ano até ao seu assassinato, aos 46 anos, em dezembro de 1918.
Encontra-se sepultado no Panteão Nacional desde a abertura do monumento, em 1966. E, segundo Isabel de Melo, curiosamente, desde então, é dos poucos túmulos onde nunca faltam flores frescas, além dos de Amália Rodrigues [trasladada em 2001] e de Eusébio [trasladado em 2015]”.
Em 1966, além de Sidónio Pais, foram também trasladados para o Panteão Nacional os presidentes Teófilo Braga e Óscar Carmona, e os escritores João de Deus, Almeida Garrett e Guerra Junqueiro, que se encontravam no Mosteiro dos Jerónimos. E, mais tarde, Manuel de Arriaga, Almeida Garrett, Humberto Delgado; Aquilino Ribeiro e Sophia de Mello Breyner.
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Militar, professor universitário e político, Sidónio Pais e o regime político que protagonizou foram pioneiros na Europa, sendo redutor reduzir-lhe o significado e a importância aos traços autoritários com que exerceu o cargo de Presidente da República. Este é o balanço feito ao DN – a propósito do centenário da morte da figura que Fernando Pessoa imortalizou num poema evocativo como Presidente-Rei – por três historiadores: Ana Paula Pires, António José Telo e João Medina.
Sidónio Bernardino da Silva Pais nasceu a 1 de maio de 1872 em Caminha, Viana do Castelo, e foi assassinado a 14 de dezembro de 1918, na Estação do Rossio, em Lisboa, pelo republicano radical José Júlio da Costa – que via no Presidente, antes ministro plenipotenciário em Berlim – “um alemão e cúmplice” dos germânicos no desastre de La Lys, ocorrido durante o seu mandato.
Sidónio liderou o golpe de Estado que, a 5 de dezembro de 1917, derrubou o governo de Afonso Costa, assumindo, três dias depois, o cargo de Presidente da Junta Revolucionária. No dia 11, tornou-se Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros e, a 27, Presidente da República até nova eleição – sendo (formalmente) empossado a 9 de maio de 1918 após eleito por sufrágio direto.
Para António Telo, professor catedrático de História na Academia Militar, as mudanças por ele implementadas “estão na base da transformação do Estado na Europa a seguir” à Grande Guerra, havendo casos em que evoluiu para uma democracia de massas” e outros “de ditadura”.
“Ao princípio tinha uma ampla base de apoio, que ia da esquerda radical e anarquista até à extrema-direita e ao integralismo, que deixava de fora só os radicais republicanos”. Mas, com o tempo, foi perdendo aderentes, a começar pelos republicanos moderados, passando pelo movimento sindicalista – diz o professor da Academia Militar, para quem a “crispação do regime sidonista” daí resultante se traduziu em “medidas repressivas” e na institucionalização “do que já era a polícia política de Afonso Costa” e que em Sidónio se vai tornando “menos democrático”.
Por sua vez, Ana Paula Pires entende que o sidonismo reunirá um conjunto de caraterísticas que estarão presentes “em diferentes regimes autoritários na Europa do Sul durante o pós-guerra”. Mas, segundo a investigadora, “reduzir o significado histórico” do regime “a esta asserção é algo redutor”, pois a obra de Sidónio “deve sempre ser analisada não só pelo que conseguiu realizar como, também, pelas reformas e mudanças que pretendia levar a cabo até ser assassinado”. Com efeito, se “enviou para o exílio toda a elite política da primeira fase do regime, como Afonso Costa, Bernardino Machado, derrubou o governo, destituiu o Presidente da República e substituiu as vereações municipais por comissões”, a verdade é que “acabou por manter a República” e “conseguiu de forma extraordinária ser aclamado como um ‘salvador’, um ‘messias’, o ‘Presidente-Rei’, como lhe chamou Fernando Pessoa”.
António Telo, sobre esta “procura dos banhos de multidão” do Presidente, recorda que o capitão de artilharia (depois, major) se apoiará na ligação direta com a população, onde procurará “a legitimidade do regime”. Na verdade, “sempre que aparece, há uma explosão de apoio popular” – diz o professor, alertando para uma consequência negativa dessa opção por parte dum adepto da ordem – que “põe claramente em causa a segurança” do Presidente e facilita os vários atentados de que foi alvo, o que “aumenta o seu prestígio, a aura de coragem e de não ter medo”.
João Medina, professor catedrático de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que publicou, em 2007, “o estudo de uma personagem cativante, efémera e contraditória” intitulado “O ‘Presidente-Rei’ Sidónio Pais”, evoca-o como militar e professor universitário que foi “uma figura excecional e sedutora” nos primeiros anos da República marcados por “total balbúrdia” política. A forma como foi morto “sagrou-o como príncipe de eterna memória” no imaginário português e que “tem um lugar especial” na história portuguesa como alguém de quem gostaram republicanos e monárquicos – destaca João Medina, assegurando que, apesar das suas tendências autoritárias, “é um grande equívoco” pensar-se que Sidónio fora “um precursor do regime salazarista” – já que a “única coisa em comum” entre o militar e o economista “é terem sido professores universitários”. Assim, segundo o professor, o regime de Salazar nada deve ao sidonismo, a não ser a ideia de ditadura. Mas é uma ditadura diferente: Salazar é um homem solitário, nada carismático, “é um homem frio que lê os seus discursos”, ao passo que “Sidónio Pais improvisava, era eloquente” nas suas intervenções públicas.
Sobre este ponto, Ana Paula Pires tem uma posição semelhante:
O que podemos dizer é que na base social do golpe sidonista vai estar reunida a mesma frente social que irá fazer o 28 de Maio de 1926 e derrubar o liberalismo republicano”.
Segundo a académica, “a revolta militar liderada por Sidónio Pais, a 5 de dezembro de 1917, agregou em seu redor o consenso de todos os descontentes com a política do Partido Democrático” de Afonso Costa – “unionistas, evolucionistas, socialistas, monárquicos, católicos, o Exército e até a União Operária Nacional” – o que, embora o afastamento a que o movimento operário foi sujeito pelos radicais, tenha ajudado a explicar que “um oficial do Exército praticamente desconhecido tenha conseguido derrubar em escassos dias o Governo”.
Segundo António José Telo (que também foi diretor do Instituto de Defesa Nacional), Sidónio “não é um teórico, não é um ideólogo sobre o que deve ser a sociedade futura”, mas o oposto, “um prático, um indivíduo que, sem ter uma visão de longo prazo quando começa a sua ação, vai-se adaptando à situação” – pelo que, olhando para ele e seu passado, ninguém diria que estava fadado para este destino: “Era maçon, republicano, um democrata dentro dos parâmetros do século XIX, relativamente apagado”. Mas curiosamente, a posteriori, surge como figura cheia de contradições. Era maçon, mas é apresentado na propaganda dos opositores como perseguidor da maçonaria; sendo republicano, favorece os monárquicos; sendo democrata, aparece como ditador; inclusive aparece como germanófilo, quando os ingleses o consideravam um amigo.
Ana Paula Pires sublinha:
As investigações mais recentes têm contribuído para desmontar a alegada germanofilia de Sidónio Pais, mostrando que o antigo ministro plenipotenciário de Portugal em Berlim sempre se preocupou com o cumprimento das obrigações da República para com os seus aliados”.
Essas investigações puseram a descoberto, de forma mais sistemática, a construção da economia de guerra durante o sidonismo e que foi com este regime “que a elite económica nacional deixou de temer o Estado intervencionista, apreciando as suas vantagens”, se controladas e enquadradas.
Essa ação de Sidónio, complementa António Telo, visou “disciplinar a economia nas condições da guerra”, em que tabelas de preços fazem racionamento e intervêm junto das empresas, dizendo o que podem ou não produzir. E, como Sidónio reviu o contrato social vigente, “é um pioneiro, acha que o Estado tem de intervir na sociedade de forma mais ativa” num tempo “marcado por um conjunto de eventos traumáticos como a fome e a pandemia” (superior à da peste negra), com dezenas de milhares de mortos só em Lisboa e correspondendo a “cinco vezes mais” que os nossos mortos na Grande Guerra. Se isso “obriga a reorganizar o Estado em termos de saúde”, a estrutura política sidonista é um dos pontos em que a evolução “é mais clara”: segue o exemplo americano, cortando com o parlamentarismo, e adota o sistema presidencialista, com base na Constituição Americana. E cria um regime em que o presidente é eleito por voto direto, “não condicionado por razões de dinheiro ou saber ler e escrever”; só exclui o voto feminino.
Na revisão do contrato político, sobressai “a mudança da relação com a Igreja” e com o mundo rural, depois dos anos de “guerra aberta com o regime republicano”. O Presidente vira-se para a parte esquecida da sociedade portuguesa pelos republicanos. E “muito do mito de Sidónio, do caráter quase místico com que é encarado, vem do mundo rural, da mudança de relação com a Igreja”, tendo em pano de fundo “uma mensagem de renascimento patriótico alicerçada nas Forças Armadas e, em particular, no Exército”, conclui António José Telo.
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Por sua vez, Rui Ramos, num seu ensaio no Observador a 8 de dezembro, analisa em pormenor a ascensão, a queda abrupta do regime sidonista e a ideia que ficou no imaginário popular, em parte trabalhada por Fernando Pessoa, que iniciou um ensaio sobre o Presidente-Rei, mas não o concluiu. E, entre outros, destaca três pontos, que assinalo em complemento com o exposto acima: o desconhecimento público da personagem ao tempo, a corrida ao poder sem um plano a prazo e a mudança pela criação duma elite própria e pela aura popular que obteve.   
Filho de gente pobre, conseguiu um lugar docente na universidade e o posto de major de artilharia (sem enquadrar tropas), depois ter articulado os estudos na Universidade (Coimbra) com os da Escola do Exército (Lisboa), e chegou a ministro plenipotenciário em Berlim, sendo, de resto, comedido, metido no jogo e dado a aventuras extraconjugais. Ascende ao poder sem um plano a prazo, mas o seu pragmatismo e espírito reativo leva-o a encontrar soluções e a inovar. E, por populismo, atenção aos esquecidos pelo poder e certa arte de fazer pontes, de restaurador da ordem e segurança públicas constituiu-se em pai-salvador, embora sem herança ideológica.
Assim, se, na ótica de Lamarck, a função faz o órgão, o cargo fez o político.
2018.12.15 – Louro de Carvalho    

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