A autoridade
do Presidente da República não estava, de momento, a ser contestada. Porém, a
14 de dezembro de 1918, Sidónio Pais resolveu ir ao Porto para esclarecer a
situação com o comando militar local. Já tinha sido alvo dum atentado a 5 de
dezembro, nas festas do primeiro aniversário da revolução sidonista. Quando
saía de Belém, um aluno de pilotagem, cujo pai era maçon (como o Presidente) tentou alvejá-lo, mas a pistola encravou-se. Por isso,
a 8, um bando sidonista saqueou o Grémio Lusitano, sede do Grande Oriente. E pouco
mais se fez para impedir novo atentado. Assim, na noite de 14 de dezembro, José
Júlio Costa (deixara em casa um dossiê intitulado “A
morte do Dr. Sidónio”), um
militante esquerdista convencido de que o Presidente ia restaurar a monarquia,
esperou-o na estação do Rossio, em Lisboa. Havia polícia no local, mas Sidónio apareceu à frente, destacado da
comitiva, pelo que o assassino não teve dificuldade em alvejá-lo a tiro de
revólver, atingindo-o no peito (cf Rui
Ramos, in Observador, de 8-12-2018).
***
Por ocasião do centenário do assassinato do Presidente
Sidónio Pais, o Panteão Nacional, em Lisboa, tem, até março, patente uma
exposição, inaugurada a 13 de novembro, que inclui objetos apresentados pela
primeira vez ao grande público, evocativa do Presidente assassinado, bem como a
época em que viveu.
“Sidónio Pais:
retrato do país no tempo da Grande Guerra” é o título da mostra que reúne “objetos
extraordinários, não só relativamente ao Presidente, como à época – e estamos a
falar de uma época conturbada, com o final da I Grande Guerra e as aparições em
Fátima –”, disse à agência Lusa Isabel
de Melo, diretora do Panteão Nacional, que recordou ter Sidónio sido o primeiro
presidente “a preocupar-se com a sua imagem pública, o ‘marketing’, a forma como se deixava fotografar – só de uma certa
maneira – e a sua promoção política”.
Segundo Isabel de Melo, deve-se a Sidónio “a criação do Serviço de Audiovisuais do Exército e,
na exposição, temos filmes da participação portuguesa na Grande Guerra e das
várias visitas presidenciais que fez, assim como do seu funeral”.
A exposição reúne vários objetos pessoais, “nomeadamente
uma magnífica espada, que ele usava sempre, uns binóculos, assim como objetos
ligados à arte de montar, pois fazia gosto em cavalgar e apresentar-se montado
num cavalo branco”, como contou a diretora do Panteão Nacional, referindo “o apoio
fundamental da família” na concretização da mostra. Conta-se, ainda, entre os
objetos pessoais, um cofre com a imagem de Sidónio, um colar de pérolas que foi
oferecido, aquando do casamento duma das filhas, “pelas mulheres portuguesas,
acompanhado por uma lista com os nomes e os respetivos donativos para a
aquisição desse presente”.
A mostra inclui ainda vários objetos relativos à
atividade universitária de Sidónio Pais (foi
lente de Matemática na Universidade de Coimbra), nomeadamente publicações
suas.
Paralelamente, “no sentido de contextualizar a época”, a
mostra inclui vários objetos de arte, nomeadamente esculturas de Teixeira
Lopes, Francisco dos Santos e Simões de Almeida, entre outros, e pinturas de
Amadeo de Souza-Cardoso, Abel Salazar e Eduardo Viana, uma custódia magnífica
em prata lavrada do Santuário de Fátima, oferta da Quinta da Regaleira [em Sintra], de autoria do italiano Luiggi Manini, além de várias
fotografias. Assim, inclui também a descrição “de um ambiente quase misterioso
e fantástico”, pelo jornalista Augusto de Castro, dum encontro com o Presidente
Sidónio Pais, que, no fim do curto mandato, se isolou no Palácio da Pena.
Augusto de Castro narra a forma como, subindo a rampa da
Pena, iluminada por archotes empunhados por soldados, estes transmitiam sinais
autorizando a sua passagem pelas sucessivas barreiras de segurança, até
encontrar o Presidente no meio dos seus papéis oficiais, isolado e afirmando-se
muito só. Sidónio liderou uma insurreição contra o Governo liderado por Afonso
Costa e, a 11 de dezembro de 1917, tomou posse como Presidente do Ministério (equivalente ao atual cargo de primeiro-ministro), acumulando
as pastas ministeriais da Guerra e dos Negócios Estrangeiros. A 27 de dezembro,
assumiu as funções de Presidente da República até nova eleição, em aberta
rutura com a Constituição da República, que ajudara a redigir. Em março de
1918, assumindo um poder presidencial absoluto, estabeleceu o sufrágio direto e
universal para a eleição do Presidente da República e, em abril desse ano,
submeteu-se ao escrutínio popular, tendo sido eleito. E exerceu as funções de Chefe
de Estado de maio desse ano até ao seu assassinato, aos 46 anos, em dezembro de
1918.
Encontra-se sepultado no Panteão Nacional desde a
abertura do monumento, em 1966. E, segundo Isabel de Melo, curiosamente, desde
então, é dos poucos túmulos onde nunca faltam flores frescas, além dos de Amália
Rodrigues [trasladada em 2001] e de
Eusébio [trasladado em 2015]”.
Em 1966, além de Sidónio Pais, foram também trasladados
para o Panteão Nacional os presidentes Teófilo Braga e Óscar Carmona, e os
escritores João de Deus, Almeida Garrett e Guerra Junqueiro, que se encontravam
no Mosteiro dos Jerónimos. E, mais tarde, Manuel de Arriaga, Almeida Garrett,
Humberto Delgado; Aquilino Ribeiro e Sophia de Mello Breyner.
***
Militar, professor universitário e político, Sidónio
Pais e o regime político que protagonizou foram pioneiros na Europa, sendo
redutor reduzir-lhe o significado e a importância aos traços autoritários com
que exerceu o cargo de Presidente da República. Este é o balanço feito ao DN – a propósito do centenário da morte
da figura que Fernando Pessoa imortalizou num poema evocativo como
Presidente-Rei – por três historiadores: Ana Paula Pires, António José Telo e
João Medina.
Sidónio Bernardino da Silva Pais nasceu a 1 de maio de
1872 em Caminha, Viana do Castelo, e foi assassinado a 14 de dezembro de 1918,
na Estação do Rossio, em Lisboa, pelo republicano radical José Júlio da Costa –
que via no Presidente, antes ministro plenipotenciário em Berlim – “um alemão e
cúmplice” dos germânicos no desastre de La Lys, ocorrido durante o seu mandato.
Sidónio liderou o golpe de Estado que, a 5 de dezembro
de 1917, derrubou o governo de Afonso Costa, assumindo, três dias depois, o
cargo de Presidente da Junta Revolucionária. No dia 11, tornou-se Ministro da
Guerra e dos Negócios Estrangeiros e, a 27, Presidente da República até nova
eleição – sendo (formalmente) empossado
a 9 de maio de 1918 após eleito por sufrágio direto.
Para António Telo, professor catedrático de História na Academia Militar, as
mudanças por ele implementadas “estão na base da transformação do Estado na
Europa a seguir” à Grande Guerra, havendo casos em que evoluiu para uma
democracia de massas” e outros “de ditadura”.
“Ao princípio tinha uma ampla base de apoio, que ia da
esquerda radical e anarquista até à extrema-direita e ao integralismo, que
deixava de fora só os radicais republicanos”. Mas, com o tempo, foi perdendo
aderentes, a começar pelos republicanos moderados, passando pelo movimento
sindicalista – diz o professor da Academia Militar, para quem a “crispação do
regime sidonista” daí resultante se traduziu em “medidas repressivas” e na
institucionalização “do que já era a polícia política de Afonso Costa” e que em
Sidónio se vai tornando “menos democrático”.
Por sua vez, Ana Paula Pires entende que o sidonismo
reunirá um conjunto de caraterísticas que estarão presentes “em diferentes
regimes autoritários na Europa do Sul durante o pós-guerra”. Mas, segundo a
investigadora, “reduzir o significado histórico” do regime “a esta asserção é
algo redutor”, pois a obra de Sidónio “deve sempre ser analisada não só pelo
que conseguiu realizar como, também, pelas reformas e mudanças que pretendia
levar a cabo até ser assassinado”. Com efeito, se “enviou para o exílio toda a
elite política da primeira fase do regime, como Afonso Costa, Bernardino
Machado, derrubou o governo, destituiu o Presidente da República e substituiu
as vereações municipais por comissões”, a verdade é que “acabou por manter a
República” e “conseguiu de forma extraordinária ser aclamado como um
‘salvador’, um ‘messias’, o ‘Presidente-Rei’, como lhe chamou Fernando Pessoa”.
António Telo, sobre esta “procura dos banhos de
multidão” do Presidente, recorda que o capitão de artilharia (depois, major) se apoiará na ligação direta com a população, onde
procurará “a legitimidade do regime”. Na verdade, “sempre que aparece, há uma
explosão de apoio popular” – diz o professor, alertando para uma consequência
negativa dessa opção por parte dum adepto da ordem – que “põe claramente em
causa a segurança” do Presidente e facilita os vários atentados de que foi alvo,
o que “aumenta o seu prestígio, a aura de coragem e de não ter medo”.
João Medina, professor catedrático de História na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que publicou, em 2007, “o estudo
de uma personagem cativante, efémera e contraditória” intitulado “O ‘Presidente-Rei’ Sidónio Pais”,
evoca-o como militar e professor universitário que foi “uma figura excecional e sedutora” nos primeiros anos da República
marcados por “total balbúrdia”
política. A forma como foi morto “sagrou-o
como príncipe de eterna memória” no imaginário português e que “tem um lugar especial” na história
portuguesa como alguém de quem gostaram republicanos e monárquicos – destaca
João Medina, assegurando que, apesar das suas tendências autoritárias, “é um
grande equívoco” pensar-se que Sidónio fora “um precursor do regime salazarista” – já que a “única coisa em comum” entre o militar e o
economista “é terem sido professores universitários”. Assim, segundo o
professor, o regime de Salazar nada deve ao sidonismo, a não ser a ideia de
ditadura. Mas é uma ditadura diferente: Salazar é um homem solitário, nada
carismático, “é um homem frio que lê os seus discursos”, ao passo que “Sidónio Pais
improvisava, era eloquente” nas suas intervenções públicas.
Sobre este ponto, Ana Paula Pires tem uma posição
semelhante:
“O que podemos dizer é que na base social do
golpe sidonista vai estar reunida a mesma frente social que irá fazer o 28 de
Maio de 1926 e derrubar o liberalismo republicano”.
Segundo a académica, “a revolta militar liderada por
Sidónio Pais, a 5 de dezembro de 1917, agregou em seu redor o consenso de todos
os descontentes com a política do Partido Democrático” de Afonso Costa – “unionistas,
evolucionistas, socialistas, monárquicos, católicos, o Exército e até a União
Operária Nacional” – o que, embora o afastamento a que o movimento operário foi
sujeito pelos radicais, tenha ajudado a explicar que “um oficial do Exército
praticamente desconhecido tenha conseguido derrubar em escassos dias o Governo”.
Segundo António José Telo (que também foi diretor do Instituto de Defesa Nacional), Sidónio “não é um teórico, não é um ideólogo sobre o que
deve ser a sociedade futura”, mas o oposto, “um prático, um indivíduo que, sem ter uma visão de longo prazo quando
começa a sua ação, vai-se adaptando à situação” – pelo que, olhando para
ele e seu passado, ninguém diria que estava fadado para este destino: “Era maçon,
republicano, um democrata dentro dos parâmetros do século XIX, relativamente
apagado”. Mas curiosamente, a posteriori,
surge como figura cheia de contradições. Era maçon, mas é
apresentado na propaganda dos opositores como perseguidor da maçonaria; sendo
republicano, favorece os monárquicos; sendo democrata, aparece como ditador;
inclusive aparece como germanófilo, quando os ingleses o consideravam um amigo.
Ana Paula Pires sublinha:
“As investigações mais recentes têm
contribuído para desmontar a alegada germanofilia de Sidónio Pais, mostrando
que o antigo ministro plenipotenciário de Portugal em Berlim sempre se
preocupou com o cumprimento das obrigações da República para com os seus
aliados”.
Essas investigações puseram a descoberto, de forma mais
sistemática, a construção da economia de guerra durante o sidonismo e que foi
com este regime “que a elite económica nacional deixou de temer o Estado
intervencionista, apreciando as suas vantagens”, se controladas e enquadradas.
Essa ação de Sidónio, complementa António Telo, visou “disciplinar a economia nas condições da
guerra”, em que tabelas de preços fazem racionamento e intervêm junto das
empresas, dizendo o que podem ou não produzir. E, como Sidónio reviu o contrato
social vigente, “é um pioneiro, acha que o Estado tem de intervir na sociedade
de forma mais ativa” num tempo “marcado por um conjunto de eventos traumáticos
como a fome e a pandemia” (superior à da
peste negra), com dezenas de milhares de mortos só em Lisboa e
correspondendo a “cinco vezes mais” que os nossos mortos na Grande Guerra. Se
isso “obriga a reorganizar o Estado em termos de saúde”, a estrutura política
sidonista é um dos pontos em que a evolução “é mais clara”: segue o exemplo
americano, cortando com o parlamentarismo, e adota o sistema presidencialista,
com base na Constituição Americana. E cria um regime em que o presidente é eleito
por voto direto, “não condicionado por razões de dinheiro ou saber ler e
escrever”; só exclui o voto feminino.
Na revisão do contrato político, sobressai “a mudança da
relação com a Igreja” e com o mundo rural, depois dos anos de “guerra aberta
com o regime republicano”. O Presidente vira-se para a parte esquecida da
sociedade portuguesa pelos republicanos. E “muito do mito de Sidónio, do caráter
quase místico com que é encarado, vem do mundo rural, da mudança de relação com
a Igreja”, tendo em pano de fundo “uma mensagem de renascimento patriótico
alicerçada nas Forças Armadas e, em particular, no Exército”, conclui António
José Telo.
***
Por sua vez,
Rui Ramos, num seu ensaio no Observador a
8 de dezembro, analisa em pormenor a ascensão, a queda abrupta do regime
sidonista e a ideia que ficou no imaginário popular, em parte trabalhada por
Fernando Pessoa, que iniciou um ensaio sobre o Presidente-Rei, mas não o concluiu.
E, entre outros, destaca três pontos, que assinalo em complemento com o exposto
acima: o desconhecimento público da personagem ao tempo, a corrida ao poder sem
um plano a prazo e a mudança pela criação duma elite própria e pela aura
popular que obteve.
Filho de gente
pobre, conseguiu um lugar docente na universidade e o posto de major de
artilharia (sem enquadrar tropas), depois
ter articulado os estudos na Universidade (Coimbra) com os da Escola do Exército (Lisboa), e chegou a ministro plenipotenciário em Berlim, sendo,
de resto, comedido, metido no jogo e dado a aventuras extraconjugais. Ascende ao
poder sem um plano a prazo, mas o seu pragmatismo e espírito reativo leva-o a
encontrar soluções e a inovar. E, por populismo, atenção aos esquecidos pelo
poder e certa arte de fazer pontes, de restaurador da ordem e segurança públicas
constituiu-se em pai-salvador, embora sem herança ideológica.
Assim, se, na
ótica de Lamarck, a função faz o órgão, o cargo fez o político.
2018.12.15 – Louro de Carvalho
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