Já escrevi sobre o veto que o Presidente da República,
ao abrigo do artigo 136.º, n.º 4, da constituição, opôs ao decreto do Governo
sobre a contagem do tempo de serviço reduzindo-o a 2 anos, 9 meses e 18 dias. E
notei duas coisas: o Presidente não contesta a substância do decreto, mas apenas
os procedimentos; e a nota da Presidência não absorve os 9 anos, 4 meses e dois
dias, mas apenas o tempo que decorre de 2011 a 2017 (7 anos).
Quanto aos procedimentos, parece – e eu já o anotava –
que Marcelo entende que o Governo quis atuar nos termos prescritos na Lei do
Orçamento para 2019, quando ela ainda não estava em vigor, antecipando-se à sua
vigência, o que eu dizia ter o Governo trabalhado antes do tempo. E, neste
sentido, ter-lhe-á parecido que a ronda negocial convocada pelo Governo e a
suplementar requerida pelos sindicatos não terão configurado uma diligência
séria. Assim, atentando nestas duas vertentes – trabalho antes da vigência da
lei, o que raramente acontece, e abordagem superficial da matéria – poderão ter
justificado o veto.
Não penso que sejam despiciendos os aspetos formais,
mas, se não houver uma oposição de substância ao decreto, o veto só vem adiar o
problema e poderá prejudicar os destinatários, aliás como aduz o Governo, a meu
ver de forma cínica e hipócrita.
Por outro lado, se eu hoje fosse professor no ativo
não ficaria tranquilo com a redação da lei do Orçamento para 2019 no
atinente a esta matéria, porquanto o
artigo 17.º da Lei do Orçamento, sobre “tempo
de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integrados em corpos especiais”,
estabelece:
“A expressão remuneratória do tempo
de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integrados em corpos especiais,
em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de
um determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o
efeito, é objeto de negociação sindical, com vista a definir o prazo e o modo
para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e a
compatibilização com os recursos disponíveis”.
Assim, também a Assembleia da República não está
nitidamente pela contagem integral do tempo de serviço, mas pela obrigação de
negociação, embora com vista à concretização e definição de prazos, o que pode
esbarrar com a disponibilidade ou indisponibilidade de recursos. E já sabemos
que não há dinheiro para os governos honrarem os compromissos com os seus
trabalhadores, os da administração direta do Estado, parecendo que o vai
havendo para os das empresas públicas e participadas. Mas há dinheiro, sempre
houve e continuará a haver, para a banca, para as parcerias público-privadas,
para a encomenda de estudos e pré-projetos de leis e para satisfazer os contratos
swap ou as rendas excessivas da EDP e
outras.
***
Quanto ao Presidente da República, como digo, não sei
o que ele pensa, mas dá-me a ideia de que pretende estar de bem com António
Costa, com Mário Centeno, com os partidos à esquerda, como Rio e Cristas, com a
Europa e com os professores.
Não digo nem pergunto como David Dinis no ECO: “Quando queima, o Presidente
foge?”. E não pergunto se isto foi um veto, porque o foi. Porém, fico sem saber,
como o colunista mencionado, o que
defende afinal “o Presidente sobre os professores” ou “para que serve a
popularidade de 80% se não for para influenciar as decisões e dizer o que se
pensa”.
Na verdade, podemos dizer com exatidão que Marcelo “vetou a lei do Governo sobre os professores”
– facto que não surpreende, se atendermos ao aviso prévio que o Presidente
tinha feito: deixaria passar o Orçamento para decidir a seguir, tendo em
consideração as deliberações dos órgãos da Região Autónoma da Madeira, liderada
pelo PSD, e da Região Autónoma dos Açores, liderada pelo PS. Ora, a Lei do
Orçamento está promulgada e entrará em vigor a 1 de janeiro de 2019; e “os governos regionais decidiram recuperar
toda a carreira perdida dos professores, um argumento politicamente relevante
já que, se um deles é um Governo à espreita de eleições, o outro é socialista e
não tem eleições à vista”, como escreve David Dinis.
Sendo assim, o veto político teria de incidir na substância e não apenas
nos procedimentos.
Ora, David Dinis, agarrando-se à nota da Presidência que justifica o veto,
entende que ela não diz nada na prática. E, a propósito dela, diz:
“Parece aquela velha rábula do
Ricardo Araújo Pereira sobre o Marcelo/comentador, não é? É um veto? Sim. Mas
será mesmo um veto? Não, é capaz de não ser.”.
O Presidente diz que devolve o decreto ao Governo para que o Governo
renegocie com os sindicatos. É óbvio que Marcelo não ignora que o Governo
negociou e que negociou duas vezes. Mas achou a negociação infrutífera ou
insuficiente (vou mais pela insuficiência), pelo que
se agarrou ao aspeto procedimental para devolver o decreto e pegou na alegada
atividade negocial feita antes da vigência da lei, sendo que supostamente não
terá havido tempo para assimilar a norma que obriga à negociação. Por alguma
razão séria, o legislador estabelece uma vacância entre a promulgação e
publicação da lei e a sua entrada em vigor.
Assim, parece que “o objetivo do Presidente foi só vetar com um argumento
procedimental, para não ter que se pronunciar sobre o que importa”. E o
colunista citado faz a pergunta que eu gostaria de fazer e formulo à minha
maneira: se Marcelo – presidente, cidadão e comentador – acha bem ou mal que se
contem só os 2 anos, 9 meses e 18 dias de carreira congelada dos professores,
se quer que se contem 7 anos (2011-2017) ou se acha
que efetivamente se devem contar os 9 anos, 4 meses e 2 dias, que os sindicatos
dos professores querem e como Açores e Madeira decidiram contar.
O predito colunista entende que “Marcelo
chutou para o Governo e fugiu da polémica”. Eu não vou tão longe na
asserção, mas que isso parece, ah lá isso parece!
***
Como era de esperar, David Dinis, não queria o veto
presidencial, mas queria que Marcelo ou não vetasse o decreto ou que o vetasse
anulando a deliberação governativa da recuperação dos 2 anos, 9 meses e 18 dias
– alinhado como está com aqueles para quem os professores não têm qualquer
direito ao ressarcimento do que lhes foi tirado. Diz a este respeito:
“Este tema não é coisa pouca. Decidir se, ao contrário
do que foi decidido em cada orçamento desde 2010, incluindo nos primeiros
orçamentos desta maioria de esquerda, deve ser letra morta, é uma questão
política da maior sensibilidade. Decidir se o Estado deve aplicar mais 400
milhões por ano para dar um direito aos professores que eles não têm até aqui é
decisivo para os orçamentos futuros – sobretudo se tivermos em conta que aquilo
que for decidido para a Educação vai ter que ser replicado em tantas outras
carreiras especiais (polícias, militares, agentes da justiça, etc, etc, etc).”.
Por outro lado, faz deste caso “um teste à coerência do Presidente”,
dizendo que este “não pode receber a Fenprof em Belém (lá está
subjacente o asco a Mário Nogueira) às terças
e às quintas e, depois, receber Mário Centeno às quartas e às sextas-feiras,
incentivando as contas certas”, ou seja, “Marcelo não pode dizer ‘sim’ e ‘não’
na mesma frase, sobre o mesmo assunto”, porque “Marcelo já não é um comentador,
é o nosso Presidente”.
Aqui é que David Dinis se engana ou entra em contradição com o que escreve
a seguir. Do meu ponto de vista, o erro de Marcelo, sem esquecer a sua
intervenção pública positiva em muitos casos, é mesmo continuar a ser
comentador, pronunciando-se sobre tudo e todos, a não ser que o caso já tenha
sido comentado por si ou seja manifestamente incómodo. De resto, antecipa-se
sobre diversas matérias antes que o Governo as equacione ou o Parlamento
delibere. Recordo, a este respeito, que opinou que não é oportuna uma revisão
da matéria eleitoral em tempo de eleições, como não é oportuna uma alteração na
composição do Conselho Superior do Ministério Público, dizendo que não é
necessário rever a Constituição neste aspeto, mas apenas que o Presidente
promulgue e que ele não promulgará. Interveio em matéria financeira, substituindo-se
ao Tribunal Constitucional, ao qual não submeteu nenhum diploma, porque se
encarrega de fazer o crivo da constitucionalidade, como tem intervindo, para
condicionar, em educação, prometeu, a propósito dos incêndios de 2017, a recuperação
da casa do Manuel (que chorava e ele abraçou) em três meses (e ele morreu antes) e já opinou sobre a futura Lei de Bases da Saúde, referindo que se revê nas linhas
programáticas de Maria de Belém Roseira.
***
E já agora um apontamento sobre a expressão “o nosso
presidente”.
David Dinis diz que respeita muito “o que Marcelo conseguiu construir como Presidente de
todos os portugueses”, mas diz que nunca acreditou em presidentes de “todos” os
portugueses e que “nunca tinha visto um a consegui-lo quase em pleno”. E
discorre em crítica positiva:
“Admiro Marcelo pela maneira como preenche
os espaços em branco, não dando margem a que outros, menos sensatos, se
instalem. Admiro-o também pelo modo como corre o país, como abraça os que
sofrem, como sorri para os que o esperam. Sou até testemunha como Marcelo
merece a popularidade que tem: ele volta aos sítios, investe tempo com as
pessoas, decora os nomes, ouve mesmo o que lhe dizem. Marcelo é, provavelmente,
o ser mais humano da política portuguesa – e isso não faz dele só um bom
cristão, faz dele um bom Presidente.”.
Mas mostra-se insatisfeito dizendo que isso tudo não basta, porque a
popularidade não pode ser um objetivo nem a via para a reeleição. E o colunista
parece querer que o Presidente seja mais interventivo, porquanto escreve:
“A popularidade de um Presidente só serve
realmente ao país se o Presidente quiser sê-lo na plenitude: assumir riscos quando
eles são importantes, assumir decisões quando elas são centrais para o destino
comum. A popularidade de um Presidente só nos serve realmente se ela servir,
também, para ele dizer não, para traçar fronteiras, para definir limites.”.
Por fim, acaba por escrever mais do que aquilo que eu
suspeitava:
“O meu problema com o “veto-que-não-é-veto”
não é achar que o diploma devia ter sido aprovado ou que, em alternativa, devia
ter sido chumbado. Não é por achar que esta decisão só vai adiar o problema e
deixar mais uns milhões de lado a Mário Centeno. Não é por achar que os
partidos, na Assembleia, conseguem ou não chegar a um consenso sobre que regras
aplicar às carreiras dos professores – ou sequer por achar que as eleições são
um mau conselheiro para uma decisão tão importante. […] O meu problema com o
“veto-que-não-é-veto” é mesmo pressentir que, quando o ar queima, o Presidente
sai de cena. E por ter a firme convicção que não é bem para isso que nós
elegemos um Presidente, direta e uninominalmente, caso único no nosso sistema
democrático.”.
E evoca o que António Costa referiu “quando a tensão sobre Tancos parecia
estar ao rubro”, uma frase que passou ao lado de muitos: “ao Presidente cabe o mais fácil, ao Governo o mais difícil – que é
executar as políticas”. E, sentenciando que “isto só é verdade se o Presidente quiser”, diz que, “neste caso,
dos professores, foi exatamente o que aconteceu”.
Concordo com a verificação, pois o Presidente fala de tudo, mas reserva-se
quando o tema é manifestamente incómodo, mas não concordo com as motivações do
colunista.
Preferia um veto que incidisse sobre a substância do decreto do Governo (falo em
decreto, porque é essa a designação do diploma que chega à mesa presidencial
para promulgação. Só depois é que é lei, se o decreto veio do Parlamento, e
decreto-lei – ou decreto regulamentar se se trata dum regulamento –, se o
decreto provém do Governo), pois
também gostaria de testar a coerência do Presidente, visto que parece querer
agradar a gregos e a troianos.
E penso que os sindicatos não podem parar, se querem alcançar o seu
objetivo de defesa dos direitos dos professores. Já temos o precedente açoriano
e madeirense. Porquê a discriminação?
2018.12.28 –
Louro de Carvalho
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