Depois
de considerar o presépio como centro do Natal por ser o sítio onde Deus Se
colocou no mundo dos homens e que Maria tornou no primeiro altar de adoração
familiar com abertura escancarada a todos (vd “Tu também tens de ser o presépio”, 2 de
dezembro), é
pertinente considerar outras vertentes do mistério da condescendência divina
para com o homem perdido no pecado por via do seu egocentrismo, culto
exacerbado do prazer e da inveja, já que a soberba da vida, o orgulho dos olhos
e a concupiscência da carne toldam a prontidão do Espírito.
Neste
sentido, quis refletir sobre a atitude de disponibilidade para aceitarmos o
mistério pondo-nos na atitude de confiante espera do Senhor para que Ele nos
conduza aos sítios onde Ele vive a pobreza e o descarte para que, mediante a
nossa humildade cooperante, o mundo se torne cada vez mais segundo o coração de
Deus pela via da reconciliação com o projeto divino, da renúncia aos erros e da
forte vivência e promoção da alegria. Com efeito, o Senhor veio historicamente
nascendo em Belém, há dois mil anos, como prometido a Abraão, lembrado pelos
profetas, esperado pelo Povo; vem agora e continua a vir, na Igreja, nos
corações – pela Palavra, pela Eucaristia e pela caridade fraterna; e virá, no
fim dos tempos e nós O aguardamos na esperança orante e no trabalho. (vd
“Não podemos viver de esperas, mas devemos viver na espera”,
1 de dezembro).
Neste
esforço de reflexão, deparei-me com a figura de Maria, que se voluntariou para
serva do Senhor, deixando que em Si e por Si se cumprisse a Palavra de Deus. E,
como a Palavra de Deus é o próprio Filho de Deus, que em Maria Se tornou carne
humana, Ela é simultaneamente a morada da Palavra, a serva da Palavra e a
oferente sempre discreta da Palavra ao Mundo – o modelo do ser e da ação da
Igreja e de cada um dos crentes (vd “Maria, a beleza luminosa no
Advento/Natal”, 8 de dezembro). E ontem, 15 de dezembro, com o
texto “Natal, ‘O abraço misericordioso’ –
exposição fundada numa parábola”, pretendi ver o Natal como o desejável
encontro de Deus – bondoso, paciente e respeitador – com o homem, que O
abandonou, se sente sozinho e oprimido pela miséria, para que o Pai bondoso
possa acolher o filho perdido que se reencontrou, correr até junto dele e o
abraçar, mandar vesti-lo com a nova túnica, calçar-lhe as sandálias típicas da
casa do Pai, colocar-lhe o anel no dedo, mandar matar o vitelo gordo e convocar
todos para a festa, festa em que é desejo do Pai que o filho mais velho, que
nunca transgredira, pelos vistos, uma ordem do Pai (considerava-o
um patrão), se
integre com alegria e solidariedade. Com efeito, na casa do Pai, não patrão, os
filhos não cumprem ordens, partilham das preocupações e alegrias da família,
que são as alegrias e preocupações do Pai, com vista à abertura da Casa a
todos, pois, nela todos têm o seu lugar sem se invejarem, atropelarem,
apertarem ou se sobreporem.
***
Hoje, no
III domingo do Advento, o da alegria da comunidade peregrina que divisa o seu
Senhor, o que a enche de alegria a ficar plena aquando do ósculo e do amplexo
do Senhor, seu Pai e doravante amoroso companheiro de todas as horas, tenho
diante dos olhos a parábola do bom samaritano, explanada no capítulo 10 do
Evangelho de Lucas (vd Lc 10,30-37):
“Tomando a palavra, Jesus respondeu:
Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos
salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram,
deixando-o meio morto. Por coincidência, descia pelo caminho um sacerdote que,
ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele
lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou
ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as
feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois
denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e o que gastares a
mais pagar-to-ei quando voltar.
‘Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas
mãos dos salteadores?’
Respondeu [o doutor da Lei]: ‘O que usou de misericórdia para com ele’.
Jesus retorquiu: ‘Vai e faz tu também o mesmo’.”.
Este homem
espancado e prostrado na berma do caminho, sem capacidade para se erguer, é bem
a imagem de cada um de nós, quando nos esquecemos de Deus e das exigências do
espírito, que são fundamentais no ser e no devir do homem e da comunidade que
ele integra. E, quando isso acontece, o homem deixa de sentir a pertença à
comunidade, sente-se um estranho e isola-se. Pode mesmo considerar os outros
como inimigos: em vez de pontes, levantam-se barreiras ou cavam-se fossos. E
tudo pode acontecer.
Mas nós
também estamos bem representados naqueles salteadores: cheios de manha e força,
surgiram de súpito, roubaram e maltrataram, não se incomodando com os danos
causados, mas somente com a satisfação dos seus intentos e interesses.
E também
ficamos bem na fotografia com o sacerdote e o levita, que ofuscados pelo
serviço do Templo ou com medo de se conspurcarem com sangue alheio, optaram
pela indiferença saloia e passaram quanto mais longe melhor.
Ora, era
urgente mudar esta situação. Mas os salteadores, satisfeitos com a sua proeza
indigna, fugiram; o sacerdote e o levita, levados pelo falso zelo ou pelo
escrúpulo, seguiram a sua vidinha. E o desgraçado do caminhante morreria na
berma do caminho abandonado de todos.
Eis que passa
um samaritano, pelos vistos não de boas graças com os judeus. Não obstante, “chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de
compaixão; aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele”.
São nove
formas verbais a caraterizar a ação do samaritano: chegar ao pé dele, ver,
compadecer-se (encher-se
de compaixão), aproximar-se,
ligar as feridas, deitar azeite e vinho, colocar sobre a
montada, levar para estalagem e cuidar.
E não podemos
esquecer que o samaritano quis implicar no cuidado o estalajadeiro: “Trata bem
dele e o que gastares a mais pagar-to-ei quando voltar”.
É
precisamente este dinamismo que Deus tem para com quem está ferido e sozinho,
vítima da maldade e da indiferença. Queremos ósculo ou abraço de Deus melhor do
que este?
E Deus bem
quer tratar de forma adequada os salteadores. Eles fugiram, mas Deus não
desiste. Quer britar a indiferença, o excesso de zelo cultual e o escrúpulo dos
sacerdotes e levitas, o que se torna difícil, porque no seu coração empedernido
estão convictos de que são os santos, ao passo que os outros é que são
pecadores. Mas Deus há de arranjar forma de lhes dar uma oportunidade, porque
Deus não desiste!
E a melhor
forma de Deus se fazer “bom samaritano” foi e é vir ao mundo na figura de
menino, crescer como os demais homens e passar pelo mundo a fazer o bem, ensinando,
escutando, rezando e curando e, por fim, entregando-se à morte por amor e triunfando
pela ressurreição. Este Deus feito homem e bem próximo de nós, de cada um de
nós, como o pastor das suas ovelhas, é Jesus. Conhece todas e cada uma das suas
ovelhas, chama cada uma pelo seu nome; e elas ouvem a sua voz. Mas Ele não
descansa enquanto não juntar ao redor de Si todas as ovelhas: as fiéis, as
perdidas, as maltratadas, as sozinhas ou descartadas, as violentadas e exploradas,
as sem vez nem voz, as maltratantes, as exploradoras e violentas, as que fogem,
as que têm excesso e desvio de zelo, as escrupulosas. Por isso, criou a família
dos discípulos para correrem mundo e fundarem comunidades que, em toda a parte
e até ao fim dos séculos, sejam testemunhas desta proximidade e deste ósculo e
abraço de Deus em Jesus Cristo ao homem. Como o samaritano Deus e o Seu Cristo
querem implicar a todos no cuidado do Evangelho, neste agregar todos em redor
do único Pastor e médico das nossas almas.
São estes
homens e estas mulheres – a quem somos convidados a juntar-nos – que junto de
nós e connosco replicam diariamente a oração da paternidade divina “Pai nosso,
que estais nos Céus…”, a sementeira da fraternidade, porque filhos do Pai
comum, somos irmãos.
Assim, sendo
o Natal o Abraço do Pai a cada um dos filhos, há de consequentemente ser o
abraço da fraternidade.
Por isso,
aceitemos ser transportados à estalagem do cuidado das feridas, ergamo-nos,
enverguemos a túnica nova, calcemos as sandálias, ponhamos o anel no dedo, mandemos
matar o vitelo gordo, convidemo-nos uns aos outros para a festa, a festa de
Deus, a festa dos homens.
E, assim, se
formos mais fortes que o mundo, a onda consumista, em vez de nos atrair e
arrastar, servirá de paisagem emoldurante da Festa de Natal, enquanto festa de
Deus e do Homem. E a paz passará a ser o estilo de vida de todos.
Assim vale a
pena o Natal, o Natal que desejo a todos os amigos e amigas!
2018.12.16 – Louro de Carvalho
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