domingo, 16 de dezembro de 2018

Natal: o abraço do Deus misericordioso, próximo do homem ferido



Depois de considerar o presépio como centro do Natal por ser o sítio onde Deus Se colocou no mundo dos homens e que Maria tornou no primeiro altar de adoração familiar com abertura escancarada a todos (vd “Tu também tens de ser o presépio”, 2 de dezembro), é pertinente considerar outras vertentes do mistério da condescendência divina para com o homem perdido no pecado por via do seu egocentrismo, culto exacerbado do prazer e da inveja, já que a soberba da vida, o orgulho dos olhos e a concupiscência da carne toldam a prontidão do Espírito.
Neste sentido, quis refletir sobre a atitude de disponibilidade para aceitarmos o mistério pondo-nos na atitude de confiante espera do Senhor para que Ele nos conduza aos sítios onde Ele vive a pobreza e o descarte para que, mediante a nossa humildade cooperante, o mundo se torne cada vez mais segundo o coração de Deus pela via da reconciliação com o projeto divino, da renúncia aos erros e da forte vivência e promoção da alegria. Com efeito, o Senhor veio historicamente nascendo em Belém, há dois mil anos, como prometido a Abraão, lembrado pelos profetas, esperado pelo Povo; vem agora e continua a vir, na Igreja, nos corações – pela Palavra, pela Eucaristia e pela caridade fraterna; e virá, no fim dos tempos e nós O aguardamos na esperança orante e no trabalho. (vd “Não podemos viver de esperas, mas devemos viver na espera”, 1 de dezembro).
Neste esforço de reflexão, deparei-me com a figura de Maria, que se voluntariou para serva do Senhor, deixando que em Si e por Si se cumprisse a Palavra de Deus. E, como a Palavra de Deus é o próprio Filho de Deus, que em Maria Se tornou carne humana, Ela é simultaneamente a morada da Palavra, a serva da Palavra e a oferente sempre discreta da Palavra ao Mundo – o modelo do ser e da ação da Igreja e de cada um dos crentes (vd “Maria, a beleza luminosa no Advento/Natal”, 8 de dezembro). E ontem, 15 de dezembro, com o texto “Natal, ‘O abraço misericordioso’ – exposição fundada numa parábola”, pretendi ver o Natal como o desejável encontro de Deus – bondoso, paciente e respeitador – com o homem, que O abandonou, se sente sozinho e oprimido pela miséria, para que o Pai bondoso possa acolher o filho perdido que se reencontrou, correr até junto dele e o abraçar, mandar vesti-lo com a nova túnica, calçar-lhe as sandálias típicas da casa do Pai, colocar-lhe o anel no dedo, mandar matar o vitelo gordo e convocar todos para a festa, festa em que é desejo do Pai que o filho mais velho, que nunca transgredira, pelos vistos, uma ordem do Pai (considerava-o um patrão), se integre com alegria e solidariedade. Com efeito, na casa do Pai, não patrão, os filhos não cumprem ordens, partilham das preocupações e alegrias da família, que são as alegrias e preocupações do Pai, com vista à abertura da Casa a todos, pois, nela todos têm o seu lugar sem se invejarem, atropelarem, apertarem ou se sobreporem.
***
Hoje, no III domingo do Advento, o da alegria da comunidade peregrina que divisa o seu Senhor, o que a enche de alegria a ficar plena aquando do ósculo e do amplexo do Senhor, seu Pai e doravante amoroso companheiro de todas as horas, tenho diante dos olhos a parábola do bom samaritano, explanada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas (vd Lc 10,30-37):
Tomando a palavra, Jesus respondeu:     
Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia pelo caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e o que gastares a mais pagar-to-ei quando voltar.
‘Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?’
Respondeu [o doutor da Lei]: ‘O que usou de misericórdia para com ele’. Jesus retorquiu: ‘Vai e faz tu também o mesmo’.”.
Este homem espancado e prostrado na berma do caminho, sem capacidade para se erguer, é bem a imagem de cada um de nós, quando nos esquecemos de Deus e das exigências do espírito, que são fundamentais no ser e no devir do homem e da comunidade que ele integra. E, quando isso acontece, o homem deixa de sentir a pertença à comunidade, sente-se um estranho e isola-se. Pode mesmo considerar os outros como inimigos: em vez de pontes, levantam-se barreiras ou cavam-se fossos. E tudo pode acontecer.
Mas nós também estamos bem representados naqueles salteadores: cheios de manha e força, surgiram de súpito, roubaram e maltrataram, não se incomodando com os danos causados, mas somente com a satisfação dos seus intentos e interesses.
E também ficamos bem na fotografia com o sacerdote e o levita, que ofuscados pelo serviço do Templo ou com medo de se conspurcarem com sangue alheio, optaram pela indiferença saloia e passaram quanto mais longe melhor.
Ora, era urgente mudar esta situação. Mas os salteadores, satisfeitos com a sua proeza indigna, fugiram; o sacerdote e o levita, levados pelo falso zelo ou pelo escrúpulo, seguiram a sua vidinha. E o desgraçado do caminhante morreria na berma do caminho abandonado de todos.     
Eis que passa um samaritano, pelos vistos não de boas graças com os judeus. Não obstante, “chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão; aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
São nove formas verbais a caraterizar a ação do samaritano: chegar ao pé dele, ver, compadecer-se (encher-se de compaixão), aproximar-se, ligar as feridas, deitar azeite e vinho, colocar sobre a montada, levar para estalagem e cuidar.
E não podemos esquecer que o samaritano quis implicar no cuidado o estalajadeiro: “Trata bem dele e o que gastares a mais pagar-to-ei quando voltar”.
É precisamente este dinamismo que Deus tem para com quem está ferido e sozinho, vítima da maldade e da indiferença. Queremos ósculo ou abraço de Deus melhor do que este?
E Deus bem quer tratar de forma adequada os salteadores. Eles fugiram, mas Deus não desiste. Quer britar a indiferença, o excesso de zelo cultual e o escrúpulo dos sacerdotes e levitas, o que se torna difícil, porque no seu coração empedernido estão convictos de que são os santos, ao passo que os outros é que são pecadores. Mas Deus há de arranjar forma de lhes dar uma oportunidade, porque Deus não desiste! 
E a melhor forma de Deus se fazer “bom samaritano” foi e é vir ao mundo na figura de menino, crescer como os demais homens e passar pelo mundo a fazer o bem, ensinando, escutando, rezando e curando e, por fim, entregando-se à morte por amor e triunfando pela ressurreição. Este Deus feito homem e bem próximo de nós, de cada um de nós, como o pastor das suas ovelhas, é Jesus. Conhece todas e cada uma das suas ovelhas, chama cada uma pelo seu nome; e elas ouvem a sua voz. Mas Ele não descansa enquanto não juntar ao redor de Si todas as ovelhas: as fiéis, as perdidas, as maltratadas, as sozinhas ou descartadas, as violentadas e exploradas, as sem vez nem voz, as maltratantes, as exploradoras e violentas, as que fogem, as que têm excesso e desvio de zelo, as escrupulosas. Por isso, criou a família dos discípulos para correrem mundo e fundarem comunidades que, em toda a parte e até ao fim dos séculos, sejam testemunhas desta proximidade e deste ósculo e abraço de Deus em Jesus Cristo ao homem. Como o samaritano Deus e o Seu Cristo querem implicar a todos no cuidado do Evangelho, neste agregar todos em redor do único Pastor e médico das nossas almas.
São estes homens e estas mulheres – a quem somos convidados a juntar-nos – que junto de nós e connosco replicam diariamente a oração da paternidade divina “Pai nosso, que estais nos Céus…”, a sementeira da fraternidade, porque filhos do Pai comum, somos irmãos.
Assim, sendo o Natal o Abraço do Pai a cada um dos filhos, há de consequentemente ser o abraço da fraternidade.
Por isso, aceitemos ser transportados à estalagem do cuidado das feridas, ergamo-nos, enverguemos a túnica nova, calcemos as sandálias, ponhamos o anel no dedo, mandemos matar o vitelo gordo, convidemo-nos uns aos outros para a festa, a festa de Deus, a festa dos homens.
E, assim, se formos mais fortes que o mundo, a onda consumista, em vez de nos atrair e arrastar, servirá de paisagem emoldurante da Festa de Natal, enquanto festa de Deus e do Homem. E a paz passará a ser o estilo de vida de todos.
Assim vale a pena o Natal, o Natal que desejo a todos os amigos e amigas!
2018.12.16 – Louro de Carvalho

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